1ª Travessia 7C

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Travessia inédita que recebeu esse nome por incluir em seu roteiro sete cumes populares da Serra do Ibitiraquire, sendo eles: Camapuã, Caratuva, Cerro Verde, Ferraria, Itapiroca, Taipabuçu, e Tucum. Com seus extremos na Fazenda da Bolinha/Terra Boa, e no Rio Cotia, em Bairro Alto/Antonina, via Crista dos 500 anos do Ferraria, sua extensão aproximada é de 25km, e conta com consideráveis desníveis entre cada montanha do percurso, o que a torna uma jornada de respeito.

Há tempos ela já estava nos planos, e o feriado seco e quente de 7 de setembro, foi a data escolhida pra realização, tendo em vista o cancelamento da travessia que faria no Quiriri afim de evitar o já tradicional fervo no transito de domingo à noite na BR376, por conta do retorno do feriadão.

Várias pessoas foram convidadas, mas só soube mesmo quem realmente iria quando informei que compraria as passagens antecipadamente na tarde de quarta. Na rodoviária, comprei três bilhetes pras 17:15h, pra mim, Frederico e Jurandir. Ficou certo que no dia 06/09/2012 às 17h, todos estariam no Portão “Ó” prontos pra partir.

Cheguei pontualmente e me encontrei com o Jurandir que veio de Paranaguá, que já estava junto com Frederico, o qual só conhecia virtualmente pelo Facebook. Pudemos conversar muito no ônibus, na hora perdida do transito lento que pegamos pra sair da cidade, e nas inúmeras paradas no caminho pra pegar passageiros.

O bom é que nessas viagens sempre acontecem coisas para distrair. Havia duas moças do nosso lado que conversavam alegremente sendo que uma delas era especialmente bonita. Logo aparece um veio que fica em pé ao lado do banco delas só esperando alguma chance pra puxar assunto. Como não houve, ele o fez. No começo as moças, por pura educação, deram atenção. Era o que o carrapato precisava pra grudar. Não parou mais de infernizar as meninas, com musicas de Raul Seixas e Tim Maia, e cantadas infames. Enfim, acabou com a animada conversa delas, que então totalmente sem graça, fingiam olhar a paisagem pela janela. Sorte delas e de todos os demais, que a mochila sem alças desceria antes mesmo de chegar à estrada da Graciosa. O motorista devia tê-lo obrigado a viajar no bagageiro junto com as nossas, e que foram resgatadas assim que descemos na escuridão da estradinha que leva a Fazenda da Bolinha.

Como sempre em início de caminhada, tudo é festa, e piadas fruem o tempo todo sem trégua. Mas piada mesmo foi quando o Frederico, que nesta hora já abreviamos para Fred, sacou da bagagem um capacete branco. Ele que já estava todo arrumadinho, calca de passeio e camisa de abotoar, ficou ainda mais contrastante com o cenário ao por aquilo, com a lanterna frontal vestida por cima. – Não me rache a cara de vergonha! – Disse eu rindo incontrolavelmente. – Vão achar que você é funcionário da COPEL… – Completei. Ele sempre divertido e bem humorado, alegou que estava ali justamente pra fazer a gente passar vergonha, e assim seguimos animados pela estrada. Eu e Jurandir o convidamos a andar pela escuridão, sem lanternas, pra aguçar os sentidos. Ficou impressionado com nosso minimalismo, mas parecia estar curtindo a brincadeira.

Na Bolinha, tudo estava quieto, e ninguém apareceu, acabando com a possibilidade de pastel no jantar. Seguimos pro camping que há antes de entrar na mata, ao lado do rio. Era um grande desperdício de tempo dormir ali, sendo que podíamos ir no mínimo até o Tucum, pois ainda era cedo. Mas o plano era fazer a inédita Travessia 7C de ataque. Sendo assim, teríamos que partir do ponto inicial, ou seja, o último lugar onde é possível chegar com um veículo, e não parar pra pernoite até chegar ao outro extremo com igual característica. Desta forma, se fossemos até o Camapuã ou Tucum, esse propósito seria quebrado. Então, por volta de 20h, estabelecemos acampamento.

Frederico havia trazido excesso de peso em comida na mochila, e tratou de se livrar dele cozinhando pra todos. Para vegetariano, a única coisa que havia era grão de bico pré-cozido. Eu tinha 1kg de amendoim e várias mexericas, mas como ele insistiu, aceitei a iguaria. No fim desceu meio na marra, pois era apenas grão de bico, sem sal ou qualquer tipo de condimento. Mas era comida, e com um pouco de sacrifício comi tudo. Já os dois apreciaram feijoada. Logo depois começamos os preparos para capotar, mas não antes da última trapalhada do dia. Jurandir com calça jeans e tênis vai até o rio. Especialista escorregar e cair em poças de água antes de deitar, só ouvimos o barulho do corpo caindo na água. Lá estava ele todo encharcado novamente, se lamentando com toda sua típica calma. Tivemos dores abdominais de tanto rir, depois que vimos que tinha somente se molhado.

Com o bivaque montado e o celular pronto para despertar 4:30, adormecemos ao som do arroio e das piadas. Nesse momento o céu já estava totalmente encoberto com uma fina serração que caia sobre nós. Nosso primeiro sono foi quebrado por uma vaca marrom que decidiu fazer tour pelo acampamento, e depois, por uma turma que vinha falando alto e com suas lanternas ligadas, as 2:40 da manhã. Quando passaram, perguntei onde iriam. Responderam que fariam um ataque ao Pico Paraná. Faz sentido, pensei. Afinal a jornada seria bem longa para eles também.

Duas horas mais tarde nosso despertador informa que a moleza acabou. Sem perder um minuto sequer começamos desmontar tudo. Durante esse tempo perguntamos pro Jurandir se viu a vaca marrom. Este nos diz que não viu vaca nenhuma e que estávamos ficando loucos. Disse sim ter visto uma galera passando ali de bicicleta. Na turma havia uma mulher com uma Monark Brisa cor-de-rosa, e outro numa Caloi barra forte de pedreiro. Ainda vinha atrás andando, e sofrendo para acompanhar, o Bonato. Véio papudo que conhecemos uma vez. Ele carregava nas costas seu tradicional saco de cebola 50kg vermelho, com alças improvisadas simulando uma mochila. Nem mesmo num acampamento tomado por fumaça azulada, a qual testemunhamos tempos atrás no Arapongas, o devaneio foi tão longe como nesse sonho maluco do Jurandir.

Eram 5:10 quando colocamos a mochila nas costas e as lanternas rasgaram o breu. Logo depois de cruzar o rio pela primeira vez, encontramos lixo no caminho. Parecia recente. Era uma caixinha de suco, e outra de água de coco. Mas surpreendente mesmo foi aos 15 minutos de caminhada encontrar descansando na trilha,três dos caras que haviam passado por nós no acampamento às 2:40h. Não entendi que diabos ficaram fazendo nestas quase três horas, para estarem somente ali ainda. Nem mesmo de muleta ou cadeira de rodas levaria todo esse tempo pra ir até ali. Dez minutos pra frente, encontramos outros dois no mesmo estado, parados, e aquele aroma alcoólico de cana no ar. Não resisti e perguntei se foram eles mesmos que passaram pelo nosso acampamento de madrugada. Após a confirmação, questionei sobre a lentidão. Disseram que estavam parando muito para descansar, e emendaram perguntando: Falta muito pro… – e eu esperando – pro… Pro pico lá? O sujeito não sabia mais nem onde estava, nem tão pouco o que fazia ali, e muito menos pra onde iria.

Pouco pra frente da arvore gigante passamos por outro, e pelo último logo adiante da última água. Com todo jeito perguntei se por acaso não tinha sido eles que “esqueceram” duas caixas de suco na trilha, e a reposta foi afirmativa. Tentei com todo jeito pedir que não deixassem mais lixo, e este prometeu se esforçar. Pedi também que desistissem de seguir pro Pico Paraná, argumentando que o trecho era demasiado longo, e que haveria vários perigos pelo caminho, onde seria fácil cair e morrer, mas este disse que tomaria cuidado, e que teriam até domingo para chegar. Nesse momento já estava clareando, e guardamos a lanternas antes de seguir, alem de pegar toda a água que pudemos.

Frederico já havia se mandado na frente, e o encontramos pouco antes de sair na rampa do Camapuã. Debochadamente  falei a ele que já poderia desligar a lanterna, pois sol já havia nascido. Mas para minha surpresa, ele respondeu dizendo que possui um estoque interminável de pilhas, e como se a lanterna fizesse alguma diferença diante da luz do dia, seguiu com a mesma ligada.

Subimos a rampa tranquilamente e logo chegamos ao Camapuã. O primeiro dos 7C estava feito. Fizemos uma pausa curtir o visual, e foi ali também o primeiro lanche do dia. Depois seguimos rumo ao Tucum. No fundo do vale, fomos verificar se havia água. Logo depois voltei avisando que corria fraca, mas que dava pra encher as vasilhas. Água era uma preocupação a a parte naquele dia, pois o calor mesmo pela manhã já era forte, e tudo estava muito seco. Provavelmente não haveria água nas poucas vertentes que passaríamos pelo caminho. Subindo a encosta, minutos depois atingimos o 2º cume. Não pudemos fazer registro porque o caderno havia sumido. No lugar havia apenas a bandeira brasileira, daquelas bem vagabundas, com a qual Jurandir tirou fotos. Olhando rumo ao Camapuã ainda não se via sinal de farofada.

Então deixamos o Tucum e soltamos o freio de mão,  descendo ladeira abaixo rumo ao Cerro Verde. Avistamos alguns montanhistas seguindo rumo ao Luar. Na encruzilhada próxima ao cume do Cerro, largamos a bagagem e fomos rumo ao topo apenas com as câmeras. No areião do acampamento Jurandir desenha “ 7C”. Fizemos um breve registro no livro de cume, e mais algumas fotos do astronauta Frederico, vestido com calça, camisa de manga comprida, capacete, lanterna frontal, e óculos de sol, que era a única coisa combinando com o sol escaldante das 10.

Sem demora partimos da terceira montanha rumo ao Itapiroca, acreditando que podíamos encontrar água no fundo do vale, o que não aconteceu. Mas ainda havia uma “Última esperança”, e era nas grandes rochas depois do primeiro descampado. Ficou batizado com esse nome quando chegamos lá e encontramos um filete de água gelada e cristalina escorrendo tímido pela rocha. Fizemos uma importante pausa ali para beber e colher toda água que pudéssemos. Preparei 400ml de isotônico de tangerina, que o Frederico quase secou numa pegada. Quando percebeu, ficou meio sem jeito e começou rir da minha expressão de espanto. Bebi o pouco que restou e vazamos dali.

Com sol a pino, a subida do Itapiroca  via Cerro verde que nunca foi curta, parecia infinita. Felizmente nos campos o vento fez parceria, mas era difícil acreditar que o astronauta Fred ainda sobrevivia vestido daquela forma numa verdadeira sauna. Se fosse eu já estaria morto e em avançado estado de decomposição. Chegamos ao Itapiroca meio dia. Fizemos o relato no caderno do 4º cume, onde comemos um pouco. Não foi fácil vencer a preguiça, mas de acordo com os planos iniciais, já deveríamos estar no Caratuva, e foi este atraso que deu um xeque-mate na nossa vadiagem. Rapidamente descemos até a área de acampamento, exatamente na hora que chegavam as primeiras pessoas por ali. Trocamos algumas palavras com quem cruzávamos, mas haviam muitos pelo caminho, e até outro ET de capacete surgiu para rivalizar com o nosso.

Do fundo do vale, seguimos rumo ao Caratuva pelo novo e exclusivo traçado que construímos com Jurandir no inicio do ano: o Itaratuva. Uma rota objetiva, exclusiva para travessias. Encontramos sinais recentes de passagem sob nossa picada. Dias mais tarde descobrimos por acaso alguns amigos nossos passaram ali afim de curtir a novidade. Infelizmente levaram junto alguns novatos de montanha, o que não foi muito boa idéia por razões óbvias.

Em pouco tempo chegamos à Mirasul, donde se tem um belo visual, tanto para o que ficou pra trás, como das antenas do cume à frente, as quais já estavam bem próximas. Então adentramos a pitoresca Floresta encantada. Lugar inusitado e marcante que pede um tempo para fotos e descanso sob suas sombras refrescantes. Pouco depois às 14h, chegamos ao Caratuva, quinta montanha da 7C. Também não foi possível registro no livro pois este não estava lá.

Havia um grupo no topo, com as quais conversei. Eram pessoas legais. Contei donde vínhamos e pra onde íamos, o que causou certo espanto. Breve parada para descanso e lanche, e foi nesta hora que Fred demonstrou intenções de abortar o restante da travessia, e retornar via fazenda Pico Paraná. Tentei motivá-lo a prosseguir, mas ao mesmo tempo procurei deixar a decisão final em suas mãos. Nestas horas, somente a pessoa pode decidir o melhor a se fazer. Então ele decide voltar. Mas antes, nos presenteia com todo rango que sobrou, o que foi muito bem vindo, tendo em vista nossa escassez. Despedimo-nos e ele segue para iniciar o retorno pela rota normal, enquanto eu e Jurandir embicamos rumo ao Taipabuçu, 6ª montanha da 7C.

Pouco antes de iniciar a descida para valer, ainda tivemos a satisfação de sermos abordados por uma pessoa que para nós era desconhecida, mas que nos reconheceu por ter lido as recentes noticias sobre a travessia Alfa Crucis. O nome do cara era Washington, e após uma animada conversa e uma foto juntos, seguimos reanimados para o próximo objetivo. A parada de ½ hora para descanso, lanche, e o apoio moral que tivemos no Caratuva, conferiu velocidade extra na descida das encostas inclinadas do mesmo, rumo ao Taipa. Em uma hora atingimos o cume principal onde fica o livro de registro. Eram 15:45h, e o Jurandir se encarregou de redigir um breve relato. Sem perder tempo rumamos para as próximas corcovas do Taipa.

Já passava das 16:10h quando antes de deixar os campos e mergulhar na selva, avistamos montanhistas como pequenas formigas em movimento, deixando o cume do Ferraria. Certamente cruzaríamos com eles em algum ponto do caminho rumo a última montanha da nossa travessia. A imensa descida das encostas do Taipa foi feita sem maiores dificuldades, mas o esgotamento se acentuou quando iniciamos a subida do Ferraria. O desanimo aumentava por saber o que ainda havia pela frente até chegar a Bairro alto, e mais ainda por saber que boa parte do longo trecho que faltava, e que era o mais perigoso, teríamos que percorrer na escuridão da noite.

Paramos por algumas vezes para tomar fôlego. Paradas curtas, de dois minutos em média, até que ouvimos vozes. Foi então que encontramos os quatro montanhistas que avistamos iniciando a descida do Ferraria. Trocamos algumas palavras por cinco minutos, e cada grupo seguiu sua jornada, longa, desgastante, em sentidos opostos. Pouco a frente chegamos as grandes rochas, já bem próximas ao cume. São relativamente chatas para escalar, especialmente quando se está esgotado. A recompensa vem logo acima, onde se desfruta dum belo visual recebendo uma brisa suave no rosto. É o cartão de visita do Ferraria, e informa que o cume está a meros quinze minutos acima.

Chegando ao falso cume, a vontade era de iniciar a descida da crista 500 anos imediadamente. Mas ainda teríamos que bater cartão no cume principal que estava logo adiante. Exatamente às 17:45 ficou sob nossos pés a última montanha da travessia 7C. Não havia mais nada para subir, e um belo sol poente indicava o fim do dia, mas não na nossa jornada insana. Novamente Jurandir se encarrega do relato, e logo depois de assinarmos o livro, seguimos as pressas de volta ao falso cume para iniciar a descida da crista aproveitando ao máximo o resto de luz deixada pelo sol já posto.

Ainda conseguimos descer a pirâmide do cume a tempo de contemplarmos a verticalidade da parede norte do Ferraria, mas durante o farejar da trilha no platô, só nos restou sacar as lanternas. Perseguimos no bosque as fitas que mostravam o rumo, neste lugar onde tudo parece trilha, mais ainda na escuridão total. Há muitas horas a sede já nos castigava, e tudo que queríamos era chegar onde a água corria por entre as entranhas da montanha, e assim por fim a nossa desidratação. Escutar a agradável melodia de água correndo, foi algo do além.

Decidimos que ali valeria a pena uma boa parada, para beber tudo que agüentássemos, e finalizar o que restava de comida. Ficamos bem uma meia hora por ali. Preparamos suco em pó, devoramos biscoito e salgadinhos, e finalmente ficamos simplesmente em silencio total, tentando encontrar razões para não permanecer ali para sempre. É  nestas horas que a gente sempre fica esperando o convite do outro para partir, e da graças quando este não vem. Mas a verdade é que tínhamos que ir embora, e como o Jurandir é silencioso mesmo descansado, conclui que se não partisse de mim o convite, não sairíamos dali tão cedo.

Então seguimos, e o que vinha logo a frente, era a parte mais crítica da travessia, tecnicamente falando. Teríamos que enfrentar a descida do grande degrau da Crista 500 anos. Esgotados como estávamos e a noite, isso poderia ser um problema. Todo cuidado e concentração seria pouco. Sentimo-nos aliviados quando finalizamos a passagem. A partir de agora seria administrar com cautela e em duas horas chegaríamos à trilha da Conceição, e desta, mais duas até Bairro Alto, nosso ponto final. Pelo menos era nisso que acreditávamos. Continuando a descida forte, chegamos ao Acampamento Baixo, onde fizemos uma nova e breve pausa. Pouco adiante já era audível o rugido do Rio Cotia passando ao lado do Discoporto.

Num passo cadenciado seguíamos silenciosos, o que demonstrava nosso estado deplorável. Mais uma hora se passou e parece que a Conceição nunca chegava. Mas ainda havia uma surpresa bem desagradável antes de pisarmos nela. Um bambuzal fogo deitou sobre a trilha deixando as coisas irritantemente confusas. Para completar a desgraça, no meio dos bambus fogo ainda havia uma diversidade de espinhos e urtigas. Toda essa agradável situação fez com que eu gastasse minhas já raquíticas energias com uma fantástica variedade de insultos. Não resolveu o problema, mas serviu de calmante. Diversão garantida pro Jurandir, sem dar indícios, claro. Eu mesmo me divirto depois, quando lembro depois das coisas absurdas que digo.

Eis então que finalmente chegamos a trilha da Conceição, por volta de 21:15h. Mais meia hora e estaríamos na ponte Indiana Jones, a qual estava semi destruída. No outro lado de mesma a trilha vira uma estrada e a caminhada iria render muito melhor. Mas antes de chegar nesse ponto, vejo um vulto negro cruzar velozmente o caminho poucos metros a nossa frente, e em seguida escutamos uma quebradeira na mata, bem como uns rugidos característicos. Bom, se o bicho correu é bom sinal, e nem me preocupei muito. Continuei a caminhada normalmente. Mas o Jurandir ficou muito incomodado com aquilo. Catou duas pedras arredondadas no chão, do tamanho duma laranja cada, e não sei porque que motivo seguiu batendo uma na outra. Não satisfeito, logo arremessou forte as pedras rumo a mata. Durante um bom tempo não parou de falar dita onça, e se enfezou quando disse que ele estava com medo. Isso foi combustível para eu provocá-lo ainda mais. Foi uma ótima distração até chegar ao rio Cotia.

Às 21:45 avistamos a precária Ponte Indiana Jones, onde demos por concluída e de ataque a 1ª Travessia 7C. Os pontos de referência de início e fim, foram escolhidos com cuidado levando em conta onde se pode chegar com veículos. Então contornamos pela trilha a ponte semi destruída, atingindo o leito do rio. Jurandir ainda não havia esquecido o bicho. Tomamos o famoso banho de gato (ou seria “de onça”?), e preparamos o último suco em pó. Ficamos parados um bom tempo antes de calçar novamente as botas e seguir em frente, por volta de 22:30h.

Com o corpo mais relaxado achamos que a caminhada voltaria a render melhor. Mas deu efeito contrário. Fomos tomados por um sono incontrolável. Pela primeira vez na vida começamos cair no sono enquanto caminhávamos. Chegou um momento que não havia mais como. Então em comum acordo deitamos no leito da estrada, usando as mochilas como travesseiro. Apagamos por uns 40 minutos. Ao despertar acordei o amigo e convidei-o a prosseguir. O resultado desta cochilada foi tão notável que até voltamos a conversar, fazer piadas, e rir. Já era mais de meia noite quando chegamos a Fazenda Lírio da Serra.

Vinte minutos depois estávamos no ponto final do latão Bairro Alto/Antônina. Havia movimentação por lá. Algumas moças bem bonitas e prontas pra balada. Um carro as aguardava na frente da casa. Todo mulambento, fui lá perguntar sobre o busão. Às 6 da manhã seria o primeiro. Então decidimos nos acomodar por ali mesmo por hora. Me estiquei no banco do ponto do ônibus, enquanto Jurandir se equilibrava num cercado de troncos baixos que protegiam o jardim da rotatória. Por um momento aquilo foi suficiente, mas logo concluímos que merecíamos algo melhor. E como zumbis, seguimos errantes pelo paralelepípedo.

Passamos pelo posto de saúde e havia uma varanda. Tentei convencer  Jurandir que ali era bom para dormir, mas o mesmo achou que seriamos incomodados, então seguimos. Uns 300 metros abaixo, notamos uma movimentação de pessoas. Tinha uns caras já meio bêbados que começaram fazer piadas conosco, o que não curtimos muito. Mas o pior mesmo foi passar em frente a casa onde era a festa, que por sinal era onde estavam as meninas que pedi informações, 500 metros atrás.

Em meio a algazarra e o som alto de péssima qualidade, fomos interceptados por uma idosa meio cozida. Com o copo na mão, queria saber como viemos parar ali. Então contamos resumidamente nossa história. Eis que a senhorinha nos ofereceu sua casa pra gente passar a noite. A gente recusou, mas ela começou insistir muito, e nos puxava pela mão para entrar na casa. Então surge a sua filha e diz que se ela quisesse oferecer pouso, que fosse em outra casa, não a dela. Era a chance da gente se livrar da véia e sumir. Jurandir já queria ter feito isso muito antes, mas não consigo ser mal educado com pessoa tentando ser gentis. Mas a louca não desistiu. Disse que poderíamos ficar numa casa vazia ali do lado. Tanta bondade com estranhos e um sorriso safado na cara enquanto nos puxava pela mão, me fez cair a ficha. Francamente, somente bêbada para imaginar alguma coisa com dois gambás tipo nós. Porém nós não tínhamos bebido nada além de suco em pó, e tratamos de escapar da roubada, o que levamos mais de meia hora para conseguir. Já longe do perigo, o drama imediatamente virou comédia, e dura até hoje.

Seguimos pela estrada e logo o agito e as luzes da vila se acabaram. Continuamos caminhando pela escuridão total e o asfalto deserto. Precisávamos urgente encontrar um local razoável para estabelecer bivaque, e finalmente descansar um pouco da dura caminhada que já beiravam 24 horas. Pouco antes de chegar à Usina Parigot de Souza, o relógio marcava 2:30h. Foi quando avistamos um ponto de ônibus e atrás um mata-burro que dava numa estradinha usada apenas por pedestres que vinham da vila da Usina. Ali estava nosso hotel 5 estrelas. Sem perda de tempo sacamos isolante térmico e saco de dormir, e colocamos o celular pra despertar dali a pouco, às 5:30.

Depois do coma total quebrado somente pelo som do despertador, pulei rápido e cruzei a BR só de cueca com a lanterna numa mão, e na outra a sacola de mercado com a roupa reserva. Me atirei na água gelada do rio Cachoeira. Levei tempo até acostumar, mas depois só sai quando ouvi o busão passar se quebrando rumo a Bairro alto. Em pouco mais de meia hora estaria voltando. Se o perdêssemos, outro só na hora do almoço.

Quando voltei Jurandir já tava ensacando as coisas. Descansados, a animação era outra, e tudo que passamos mais parecia um grande filme de aventura e comédia. Já estava clareando quando o cipó voltou, e seguimos animados ao som da lataria batendo. Chegamos em Antonina e compramos as primeiras passagens rumo a Curitiba e Paranaguá na faixa das 7h. Ambos os carros já estavam encostados, e como fazia tanto tempo que não nos víamos, Jurandir quase perdeu o ônibus ao ficar de papo comigo. Teve que bater no vidro para o motorista abrir de volta a porta para ele embarcar. Piada boa já cedo! Então o camarada se foi. Pouco depois foi minha vez. Na poltrona macia dormi a viagem toda, trazendo na bagagem mais uma fantástica história para toda a vida.

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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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