Trekking a Choquequirao, a “irmã” de Machu Picchu

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É impossível estar em Cusco e não ver, pelo menos uma vez ao dia, a silhueta de Machu Picchu estampada em algum lugar. O postal mais famoso do Peru (e talvez da América do Sul) está no rótulo da cerveja Cusqueña, na camisa do Club Cienciano, em pôsteres da Coca-Cola, nas portas da incontáveis agências de viagens ou até no manto de um San Pedro desfilando na Plaza de Armas. Batizada em 1911 de “the lost city of the incas” pelo norte-americano Hiram Bingham, considerado seu “descobridor”, hoje Machu Picchu é tudo menos “perdida”: cerca de 2500 pessoas visitam o sítio diariamente (500 só pelo Caminho Inca).

Se há alguma vantagem nesta exploração tão intensa, talvez seja a de que outros parques arqueológicos acabam recebendo muito menos turistas. Um deles é Choquequirao, outra cidadela inca apresentada à contemporaneidade pelo mesmo Bingham em 1909, mas muito menos badalada do que a sua irmã pop, recebendo menos de 10 mil turistas AO ANO. Em Choquequirao é possível sentar-se no centro da praça cerimonial de uma antiga cidade inca sem ser atropelado por hordas de turistas e seus guias barulhentos, talvez até imaginando-se um pioneiro nestas ruínas misteriosas, que cobrem uma área de aproximadamente 2000 hectares, dos quais se calcula que somente de 30 a 40% estejam expostos atualmente.

Ir a Machu Picchu não é problema. Há trekkings de 4 ou 5 dias pelo Nevado Salkantay, há ônibus de 90 soles a 100 dólares, há o trem (com ou sem teto de vidro), há os atalhos dos mochileiros e claro, há o Caminho Inca. Para chegar a Choquequirao só há duas maneiras: andando ou de helicóptero, como fazia a ex-primeira dama do Perú, Eliane Karp de Toledo. E a caminhada não é brincadeira: ida e volta são 65km, distribuídos em 4 ou 5 dias, começando a 2900m de altura, descendo a 1500m e voltando a 3000m, atravessando cinco micro-climas diferentes e comendo muita poeira pelo caminho.
DIA 1
O ponto de partida é Cachora, município de 3.500 habitantes a 165km de Cusco (3 horas de viagem), no departamento de Apurimac. É aí que os guias e trekkeiros alugam mulas e contratam arrieiros (a 30 soles por dia), negócio que tem crescido desde que o turismo chegou aí, no fim dos anos 90. Diferente de Águas Calientes, a cidade mais próxima de Machu Picchu que se tornou uma selva de hotéis, restaurantes e lojas de souvenirs, Cachora ainda tem aquele ar de pueblo andino, com casas de adobe, ruas de terra e mulheres levando as crianças nas costas em aguayos coloridos.
Para nosso grupo de 5 pessoas (eu, Max, seus dois clientes e o arrieiro), “contratamos” 2 mulas, que carregavam o equipamento de camping e cozinha, além da comida, água e tudo o que não usaríamos durante a caminhada. Em nossas mochilas de ataque só levávamos uma garrafa pequena de água, câmera, protetor solar, algumas frutas e barras de cereais.
Saímos de Cachora por volta das 9h30. Os primeiros 10km do trekking (dos 24 que fizemos neste primeiro dia) foram praticamente um passeio – fato que notei ao longo dos outros dois terços da trilha – cruzando campos dourados de milho e acompanhando as curvas das paredes do cânion do Rio Apurimac, com 1600m de profundidade. Os nevados Padrayoc e Wayna Cachora, que fazem parte da cadeia do Salkantay, vigiavam e protegiam nossa caminhada do alto dos seus 5500m.
Chegamos ao mirador de Cocamasana, a 2300m, perto do meio-dia. Ali, Max Flores, limenho de 39 anos que abandonou a Engenharia para guiar trekkings e havia me convidado para vir a Choquequirao, pergunta: “Está vendo aquele descampado, mais ou menos pela metade da montanha?” e apontava o paredão oposto do cânion, “ali é Santa Rosa Alta, onde vamos acampar esta noite”. Abaixo do quadradinho verde que era Santa Rosa, a trilha para chegar até lá zigzagueava montaña arriba, como uma sutura na floresta.

Cocamasana

Mas antes de enfrentar a subida até o acampamento era preciso, obviamente, descer até o Rio Apurimac, 800m mais abaixo. Sim, na descida todo santo ajuda, mas os joelhos não saem ilesos depois de 1h30 trotando por 7km (às vezes o caminho era tão inclinado que, para não escorregar, descíamos correndo de lado). Sem falar do sol de meio-dia, que nas alturas parece queimar a pele muito mais do que ao nível do mar.
Lavamos a poeira nas duchas frias do acampamento de Playa Rosalina, à beira do Rio Apurimac, uma das seis paradas com sombra, banheiros e uma barraquinha vendendo bebidas ao longo do caminho. Alguns destes pontos são mantidos pela Direção Regional de Cultura de Cusco e outros são particulares, como o de Santa Rosa Alta, que cobra a exorbitância de 3 soles (menos de 3 reais) por barraca montada.
Depois de um almoço leve, carregamos novamente as mulas e partimos para um dos trechos mais duros do trekking, os 3.5km (e 600m de altura) que separam Playa Rosalina e Santa Rosa Alta. Já havia passado das 15h30 e obviamente não queríamos caminhar à noite. Nossa vantagem é que o sol já não batia no lado da montanha em que tínhamos que subir, o que nos ajudava a acelerar o passo.

Playa Rosalina

E dê-lhe Chico Science & Nação Zumbi e folhas de coca para vencer as 22 curvas da trilha zig-zag para chegar ao primeiro acampamento. Percebi que, mantendo a música alta, eu deixava de ouvir minha própria respiração e, assim, não me dava conta de quão cansada poderia estar. Funcionou. Em menos de duas horas chegamos a Santa Rosa Baixa: uma casa de teto de palha com uma varanda em que uma senhora vende algumas bebidas e cozinha refeições num fogão de lenha. Daí ao acampamento de Santa Rosa Alta, a 2100m de altura, foram outros 20 minutos de caminhada. Armamos as barracas ainda com dia claro e “capotamos” depois do jantar.
DIA 2
A saída para Marampata, que já é a portaria do parque, ficou para o dia seguinte às 6h30 da manhã. Tínhamos 4km e um desnível de 700m – para arriba! – pela frente. O sol subia junto conosco, mas atingimos Marampata ainda com sombra, depois de cerca de 2h30 de caminhada. De lá tivemos a primeira visão de Choquequirao, com seus terraços-escadaria cravados na montanha.

Marampata

Depois de pagar nosso ingresso (37 soles), voltamos ao ritmo de passeio nos outros quatro quilômetros entre a portaria e o santuário. Já podíamos conversar enquanto andávamos, por exemplo, sem precisar mascar mais folhas de coca ou ouvir música para manter o piloto automático ligado. Antes das 11h30 já estávamos com acampamento montado a 15 minutos do “berço de ouro” (que é o significado de “Choquequirao” em quechua) dos Incas. Estávamos a 3100m de altura, mas rodeados por uma espessa “selva de altitude” em que abundavam orquídeas e bromélias, resultado da interação entre massas de ar quente que sobem do Apurímac e os ventos frios dos nevados ao redor.
Tínhamos um dia e meio para explorar as ruínas, que sofreram a degradação natural do clima e do avanço da vegetação, mas não foram atacadas, saqueadas e parcialmente destruídas como os templos de Qorikancha e Sacsaywaman, em Cusco. Não há mais telhados de palha cobrindo as antigas casas dos sacerdotes e membros da nobreza, mas as paredes de lajotas de pedra (não de grandes blocos em forma de quebra-cabeça como em Machu Picchu) continuam inegavelmente sólidas, firmes, irredutíveis. O abandono do sistema de drenagem e o acúmulo de águas da chuva danificou alguns terraços de agricultura, mas não o bastante para apagar as silhuetas das escadarias incrustadas nas alturas.

Choquequirao

Choquequirao

Choquequirao

Choquequirao

Choquequirao

Choquequirao está dividida em 13 zonas diferentes, que incluem espaços cerimoniais, administrativos e residenciais, templos destinados ao Sol, à Água, à Mãe Terra (Pachamama) e aos ancestrais, além dos terraços para agricultura e das qolqas, construções circulares com muros duplos que mantinham os alimentos refrigerados. Longos aquedutos de pedra traziam água das neves do Salkantay a uma rede de canais menores que chegavam às casas e canteiros de agricultura, que foram distribuídos em degraus para aproveitar a variação de micro-climas das montanhas e possibilitar o cultivo de cereais e frutas de outras regiões.
Nesta primeira tarde de exploração da cidadela, visitamos a praça cerimonial e o setor Phaqcha Wayq’o, um conjunto de 80 terraços de agricultura construídos próximos a cascatas.
“Eram verdadeiros experts em agricultura. Não só foram capazes de plantar em terrenos ‘inclinados’ como cultivavam alimentos de várias partes do império no mesmo lugar.”, explicava Max enquanto contemplávamos a genialidade daquela horta-pomar esculpida na montanha. “Eram grandes astrônomos também, por isso tinham tanto êxito na agricultura. Pela observação dos astros eles conseguiam prever os solstícios e equinócios e assim organizar os diferentes plantios”, completou. A parte do complexo que provavelmente era destinado aos estudos astronômicos – e também ao culto às divindidades das montanhas, os apus – era o usnu, uma plataforma cortada artificialmente no topo de uma colina que se vê à direita da praça principal.
DIA 3
Depois do café da manhã partimos para o segundo dia percorrendo as ruínas, em que o ponto alto foi o setor de Llamas, outro complexo de terraços em forma de escadaria com 23 llamas cravadas em pedra branca nos seus degraus. Para chegar ao último terraço são 30 minutos DESCENDO ESCADAS, que provavelmente vão até o Apurímac, 1600m abaixo – o setor foi descoberto em 2006 e ainda não está totalmente limpo.

Escadas do rio Apurimác

“Cada um destes canteiros foi construído, não foi cavado. Os muros eram preenchidos com camadas de pedras e de terra de diferentes espessuras de acordo com o tipo do cultivo”, ressaltava Max. Isto, junto com um eficiente sistema de irrigação e drenagem, evitava que a “escada horti-fruti” desabasse pelo acúmulo de água. Na parte superior da seção Max destacou a representação de um raio na parede de um dos terraços, o que para ele é sinal da admiração e respeito que os Incas tinham pela natureza e seus fenômenos.

Dos canteiros policultores abandonados do setor de Llamas podíamos ver plantações de milho do outro lado do canion, o que me dava uma mistura de pena e raiva pela perda de técnicas agrícolas e arquitetônicas tão avançadas. Poucas vezes tive tanta vontade de viajar no tempo, queria ver aquele complexo todo funcionando, vivenciar a rotina das pessoas, como seriam seus rituais, suas roupas, suas refeições. Esse desejo só aumentou quando Max me contou que, em dias de festivais e oferendas à Pachamama, ao invés de água havia chicha (bebida fermentada com um teorzinho alcóolico) circulando pelos canais.
Foi com esse sentimento nostálgico por um passado que não vivemos que tiramos nossas últimas fotos na cidade-irmã de Machu Picchu no setor das vivendas dos sacerdotes, na parte sul do complexo. Dali ficava claro como a localização de Choquequirao, construída na crista da montanha, era um reflexo da vontade dos Incas de estarem mais próximos do Hanan Pacha, o mundo superior e vivenda dos espíritos, cuja representação era o condor.
DIAS 4 e 5
Iniciamos o retorno à civilização contemporânea no quarto dia, que foi quando mais caminhamos, percorrendo 28km, na mesma trilha da vinda. Saímos às 7h da manhã, descendo de Marampata até o Rio Apurimac naquele ritmo “trotando morreba abaixo”. Passamos por Playa Rosalina, do outro lado do cânion, antes das 9h. O sol forte nos pegou justo na subida a Cocamasana, onde chegamos perto das 13h. Dali até o acampamento Colmena, já a apenas 4km de Cachora, foram mais umas 3 horas de caminhada. Montamos as barracas por ali e jantamos relembrando nossa visita às ruínas.
O cenário das montanhas mudando de cor com a subida do sol tornou o café da manhã do dia seguinte especial, dando-nos gás para o último trecho do trekking, que passa pelos campos dourados do primeiro dia. Descarregamos as mulas e remontamos nossas mochilas em Cachora, onde tomamos um ônibus até a estrada Cusco-Abancay, para daí pegar um táxi de volta para o “umbigo do mundo”.

Machu Picchu no Perú

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