Chuva, raios, água e frio. História de uma roubada nos Marins

5

Depois de trabalhar até as 3 da manhã do sábado, decidi que seria uma boa encarar uma trilha e dormir no topo do Pico dos Marins. Saí de São Paulo as 4h30 e cheguei a Piquete as 8h30, fazendo uma parada para café da manhã no posto de Roseira.

Chegando ao estacionamento, ainda fiquei batendo papo com o Milton, do Acampamento Base Marins. Não nos conhecíamos. Da última vez que estive lá, em 1997 o local era habitado por uma família. Dei explicações sobre as minhas intenções: subir e passar a noite no cume ou no platô logo abaixo, retornando no domingo cedo. A noite de Sábado prometia ser agradável. Cansado por conta da trilha (cerca de 4-5 horas com a mochila pesada), a noite varada de trabalho, o friozinho típico de montanha e o jantar composto de um belo pedaço de queijo, salaminho de primeira, um macarrão instantâneo, além de frutas secas e biscoitinhos de sobremesa. Certamente desabaria gostoso no saco de dormir, num programa típico de final de semana na Serra da Mantiqueira. Estava sozinho, e há quase 10 anos não fazia uma escalada destas, estava feliz.

Escalei durante boa parte da minha adolescência, por cerca de 10 anos, parando completamente com qualquer atividade de montanha em 2000 – exceto por uma trilha leve uma vez ou outra, bem esporádica. Foi mais ou menos nessa época que as obrigações da vida de adulto começavam a se fazer prementes. Bela desculpa para cultivar a preguiça e a barriga. No começo deste ano, com um sobrepeso de mais de 10 quilos e diagnosticado com pressão alta (e outras complicações) advindas da vagabundice corporal (vulgo sedentarismo), decidi que precisava voltar a malhar as pernas e braços em nossas montanhas, antes que chegasse aos 40, barrigudo e acabado, pesadelo para qualquer jovem da minha idade. Para isso tenho me esforçado a fazer alguma atividade de montanha pelo menos duas vezes por mês, além de malhar numa academia (convencional, não curto academias de escalada) durante a semana e fechar a boca (bem, eu tento). Tem dado resultado, e estou voltando à velha (boa) forma, inclusive me envolvendo mais ativamente com a comunidade, acompanhando listas de discussão, escrevendo e palpitando (coisa que sempre gostei de fazer). Mas não há empolgação para a roubada que eu me meti no Marins neste final de semana.

ROUBADA ANUNCIADA

Inicio a trilha pela estrada que sai do Acampamento Base as 9h00. Aproximadamente as 10h00 estava no topo do Careca para um descanso breve – e também um cochilo, pois o sono da noite não dormida já dava sinais. Descanso (e cochilo) por cerca de 50 minutos, estirado na pedra, sob o isolante. Retomo a marcha aproximadamente as 11h00. No caminho cruzo com uma dupla que tinha ido até o primeiro mirante e já estava retornando. Mais acima, na minha parada para o almoço, sou ultrapassado por um andarilho solitário de Itajubá, que pretendia fazer um bate-e-volta&nbsp, até o topo. O tempo estava excelente. Calor, sol. Parecia um dia de verão, com vento forte que refrescava a cuca e as costas suada, colada na mochila. Na direção oeste, de Minas, apenas pequenos cúmulos esparsos. Na direção do Vale do Ribeira, algumas nuvens mais gordinhas (com um pouco de chuva), porém longe, sobre a Bocaina, nada que me deixasse preocupado. Por volta das 13h30 me encontrava galgando a face do maciço da esquerda do conjunto (que me foge o nome), seguindo a trilha que leva, pela esquerda, ao platô da base do Marins. Era meio de Abril, e por causa do verão, a trilha estava um pouco mais complicada do que o normal. Capim alto e poucos trechos batidos, com poucas marcações e pegadas. A orientação era feita com base nas setas pintadas na rocha, e um pouco da lembrança que tinha do local, das duas vezes que estivera lá, todas no inverno.

As 14h30 ouvi o barulho de trovões, bem longe. Pensei serem dos cúmulos pequenos e distantes que tinha visto sobre a Bocaina e que naquele momento poderiam estar sobre o vale. Não dei muita bola. Não era possível ver “o problema” que vinha pelo lado do vale, porque eu estava atrás da montanha. Apesar do cansaço – que já estava grande àquela altura, fruto de ainda não estar bem preparado fisicamente e de estar sem dormir (além do banquete que tinha comido na parada para o almoço) – decidi acelerar o passo para “dobrar a esquina” e poder ter uma vista do Marins e do platô. Antes, encontrei o rapaz de Itajubá, voltando. Ele decidira voltar porque estava preocupado com a chuva, e também porque estava sem equipamento (além de cansado). Meia hora depois, ao virar na aresta e ter a primeira visão do platô e da rampa do cume do Marins, vi que a coisa era mais feia do que eu supunha. Uma nuvem de “responsa”, escura-esverdeada e mal encarada. Vinha subindo do vale, que a esta altura já quase não era mais visível. O que me assustou não foi a nuvem em si, mas a quantidade de raios que vinha com ela, vários deles beliscando o chão das encostas abaixo do Marins numa freqüência alucinante. A cada 10 segundos um raio pipocava no chão ou saltava entre as nuvens. Era um cumulus nimbus (ou uma cumulus congestus bem agressiva) destes de verão, que crescem durante o dia e viram monstros no final da tarde. Cobria boa parte do vale, e certamente engoliria o Marins (e eu no meio) no seu trajeto. Tendo uma visão do platô e da encrenca atrás dele, decidi que aquela aresta era muito exposta, e que seria besteira descer até o platô e armar acampamento lá. Seria tão exposto quanto a aresta onde eu estava, além de eu ter dúvidas se o pequeno córrego que lá existe continuasse sendo um pequeno córrego (e não um rio). Somado ao efeito psicológico de “voltar”, voltando eu também estaria na face contrária à direção da tempestade, e de alguma maneira pensei/calculei que a coisa pudesse ser mais amena naquela face. Além disso, eu estava bem cansado, sozinho e um tanto quando “adrenado” (sozinho tudo parece pior).

Retornei pela trilha, buscando uma área plana, um platozinho qualquer de musgo onde eu pudesse armar a barraca e esperar a chuva passar, eu ainda tinha um pingo de esperança que ela contornasse o maciço. Na pior das hipóteses (que veio a se confirmar), eu estava no caminho de volta (não no de “ida”), podendo continuar a descer para chegar à base pouco antes de escurecer. Aí poderia ter uma boa noite de sono numa pousada em Piquete, ou tocaria de volta para São Paulo (se o sono permitisse). Eram 15h00 quando dei meia volta, no topo da aresta, antes de começar a descer para o último ponto de água (amarela).

Notei que o celular voltou a ter sinal ali na aresta. Não sei por que, mas liguei para minha esposa e contei a situação. Eu devia estar bastante assustado e acabei deixando ela mais assustada ainda. Ela só ficou mais tranqüila quando comuniquei que iria montar acampamento em algum canto, descansar (dormir) e depois decidir o que fazer. Horas antes, ainda de madrugada, sabendo que eu não tinha dormido nada e que estaria sozinho, obviamente ela chiou quando comuniquei que pegaria a estrada para ir para o Marins. Entretanto ela polidamente consentiu, para não me contrariar – sonho de todo marido! – mas ficou preocupada. Eu acho que é mal de todo montanhista bundão: ligar para algum parente quando está numa roubada, sozinho. Impressionante o que o isolamento é capaz de fazer, especialmente se você não está acostumado com ele. Devo admitir, eu me borrei com a cena que vi: o cume dos Marins enquadrado num negrume impressionante, ameaçador e elétrico, começando engoli-lo.

CHUVA E UM PÉSSIMO ABRIGO

Às 15h40 sinto os primeiros pingos (gigantes) da chuva, chuva que começa a ultrapassar com força a escarpa, contrariando meus desejos mais íntimos. Conformado e sabendo que ia ser uma daquelas chuvas-dilúvio, de fazer qualquer anoraque olhar para você e dizer: “faz-me-rir, né?”, procurei o melhor lugar possível dos disponíveis (apesar de estar bem na piramba), num raio de 15 metros. Comecei a montar a minha barraquinha. Eu sempre usei barracas de dois lugares, do tipo iglu, auto-sustentáveis, com encaixe de sobreteto na barraca via clipe e/ou trava (nas gringas de qualidade isso é característica básica). Mas eu estava sozinho, e por isso decidira levar para experimentar uma barraca de 1 lugar, que tinha comprado no mês passado (pensando justamente em trilhas em solitário). Era usada, comprada via Mercado Livre. O modelo é (na verdade “era” – veja o porquê mais adiante) Bivak 1, da Trilhas e Rumos, “tubular”, com armação em alumínio, que pesa incríveis 1.5Kg. Estava nova e bem cuidada.

Mas esta belezinha tubular, como eu vim dolorosamente a descobrir depois (com um caldo de água gelada nas costas), não é auto sustentada, com armações que a deixam de pé e rígida sem a necessidade de fixá-la ao chão. Ela depende de, pelo menos, dois espeques bem fincados para ficar de pé. É uma barraca de turismo, para se montar num gramado liso e plano, com os espeques afundados inteiros, em um lugar protegido e tranqüilo, a poucos metros do carro. Tinha montado a dita cuja numa situação exatamente ideal: no jardim de casa… É uma barraca para quem “viaja de bike ou moto ou caminhantes solitários” segundo a descrição do site do fabricante. Apesar de parecer um equipamento avançado (lembra a famosa Solitaire da Eureka), para as condições da Mantiqueira no verão ou sob forte chuva, se mostrou uma verdadeira bomba. Não recomendo para quem pretende excursionar nas vertentes mais altas (campos de altitude), sem saber exatamente onde vai acampar (áreas nobres, lisas e de terra). No ambiente rochoso e “capinzudo” do Marins, foi difícil conciliar a pressa (pela chegada da chuva), o cansaço e o terreno inadequado para se fixar um mísero espeque, quanto mais dois, diametralmente opostos. Moral da história: a montagem da barraca ficou uma m*. Toda torta, meio inclinada e bamba, improvisação total. Não era um show de horror completo. Dava até para passar uma noite protegido do frio e de um ventinho. Mas era insuficiente e precário para o bombardeio que estava apenas começando. Um dos espeques eu consegui encaixar numa fenda de rocha, o outro, substituí por um cordino amarrado em um tucho de capim. Não havia onde encaixá-lo, e onde dava, era precário, soltava a qualquer balanço. Olhando de nariz torto para a “obra de arte” que acabara de montar, joguei a mochila dentro e me enfiei, espremido, ficando deitado, sobre o isolante. Agora era só esperar a chuva passar e torcer para que ela ficasse apenas na aparência (assustadora).

DINAMITES E CACHOEIRAS

Granizo, vento forte e raios, muitos raios. Em menos de 10 minutos a chuva deu uma bela incrementada. Raios passaram a cair cada vez mais perto (clarões muito fortes, que iluminavam como se fosse meio dia o interior da barraca). Os estalos começaram, e com eles, clarões ainda mais fortes, seguidos de verdadeiras explosões. Deus do céu, aquilo não eram trovões, eram verdadeiras explosões, como se quilos de dinamite estivessem sendo detonados a poucos metros de mim. Como se o Marins fosse uma mineração a céu aberto e em plena atividade. Apreensivo, comecei amaldiçoar a decisão de ter ido à Mantiqueira nessa época do ano, sozinho e pouco preparado (física e psicologicamente), apesar da previsão dar conta de apenas “eventuais chuvas rápidas no final da tarde” (háhá, estavam todas juntas comigo, lá no Marins…). Mais algumas explosões e de repente algo estranho no ar: um cheiro forte de ferro, de ferrugem, algo ocre, muito forte. Uma sensação estranha, diferente. Não sei dizer se foi alguma reação de adrenalina e cansaço, mas os pêlos do braço e da perna eriçaram. Na seqüência o couro cabeludo começou a coçar, como se houvessem formiguinhas andando no couro cabeludo, entre os fios. Pensei imediatamente: “Mierda! Estou no meio do caminho de um raio! PQP!”…. Se há 10 segundos eu praguejava amaldiçoava, agora eu rezava. Sair dali ou continuar correndo o risco de tomar um raio na cabeça? Sempre li que nestas situações, de eminência de queda de raio, devemos abandonar o local imediatamente. Enquanto pensava no que fazer, deitei de lado, em posição fetal, sobre a mochila e o isolante. Antes abri a mochila e espalhei tudo o que tinha pela barraca, pois não havia altura para ficar sob a mochila cheia. Subitamente o cheiro foi levado pelo vento, e a sensação “eletrizante” passou (durou menos de 1 minuto, se tanto). Mas os raios continuavam por ali, pês da vida e querendo acertar algo ou alguém. A posição do corpo não era boa. Eu encostava as costas no teto da barraca e desequilibrava o conjunto já bem torto e instável da “obra”. Decidi então dobrar o isolante em dois e ficar só sobre ele, para parar de roçar no teto. A mochila foi para os pés de novo.

Com o aguaceiro, verdadeiras cachoeiras se formaram por todos os lados. Com o vento e as minhas mexidas dentro da barraca, que incluíam pulos instintivos a cada clarão e estalo no ar – a altura da barraca é de apenas 80cm e a largura de 90cm, o resultado não poderia ter sido outro: a barraca desmontou e caiu sobre mim. O toque do nylon gelado no rosto, a força das pedras de granizo e dos pingos gelados da chuva sobre ele – e a certeza de estar numa roubada concretizada – não são nada agradáveis… Os clarões e estalos continuavam. Resolvo ficar do jeito que estava (o sobreteto da barraca vai me proteger da chuva, pensei. “vai ser uma droga, mas eu vou ficar minimamente seco”). Proteger da chuva até protegia. O problema era o volume de água que caia – e escorria para algum lugar…

Como que de pura sacanagem, pouquíssimo tempo depois de me acostumar com a nova situação (“ensacado” dentro do que restou da barraca – procurando uma saída de ar para respirar melhor), recebo uma generosa onda de água gelada nas costas,&nbsp, que me deixa completamente ensopado, além de ensopar as coisas que estavam dentro da barraca, incluindo a mochila. Pronto! Agora o Marins me presenteava com uma de suas cachoeiras temporárias, bem em cima (ou embaixo, não sei ao certo) do meu acampamento. Como um rato molhado, metido no meio de uma tempestade elétrica, tendo a certeza de que iria tomar um raio a qualquer momento, resolvi que morreria lutando!… É óbvio que eu não tive pensamentos tão nobres naquele momento. Eu simplesmente decidi que iria sair dali o mais rápido possível, de qualquer maneira, deixando tudo para trás, levando apenas o básico nos bolsos e na mão (sim, incluindo o c*, que já estava na mão fazia tempo…), num dos maiores apertos – se não o maior – que eu já vivi em um ambiente de montanha.

Peguei minha headlamp, coloquei dois sachês daqueles energéticos “Gu” no bolso, enfiei o celular, a chave do carro e a carteira num saco plástico e enrolei o sobreteto da barraca no corpo (meu anorak estava imprestável, com a camada de proteção/impermeabilização de triplepoint esfarelando – longa história – eu não usava o dito cujo há cinco anos). Eu até tentei juntar tudo na mochila e colocá-la nas costas, mas com seus acolchoados (recheados de água), devia estar pesando uns 7kg, só ela. Juntando o saco de dormir (totalmente empapado), a roupa para a noite, o jantar não jantado, a mantinha de fleece (também empapada) o resto das tralhas, tudo mal arrumado (tenho dúvidas de que caberia), iria caminhar com uma mochila de quase 30 quilos, torta, grande e gorda, por uma trilha ensopada, cheia de capim e passagens estreitas e ainda de noite (mesmo com a lanterna, andar de noite é andar de noite, oras). Isso sem contar o fato de que eu estava fisicamente acabado, precisando de uma bela noite de sono (estava acordado há quase 36 horas), com câimbras nas pernas começando a aparecer. Não tive dúvidas: larguei tudo ali, sem dó.

A DESCIDA E TELEFONEMAS

Comecei a descer e percebi que, se a situação parado era ruim, andando era “relativamente” pior. Pouca (ou nenhuma) visibilidade, chuva forte, vento e a visão assustadora do temporal (e seus raios) comendo solto. Até então eu só sentira a paulera da tempestade na pele e no nariz (literalmente), enfiado dentro da barraca (ou algo que pode-se chamar de barraca). Ver a força de um temporal com os olhos bem abertos, ouvidos atentos, pele exposta e tudo mais, sozinho, cansado, encharcado e meio desorientado, a 2.000 metros de altitude, é uma experiência que eu classificaria como no mínimo “6 machadinhas ou 6 penas”. Caí em voçorocas, em valas escondidas (e que tinham água na altura da cintura) no meio do capim. Resumo da ópera: em pleno ambiente de montanha eu tive uma experiência aquática completa! Me encolhi algumas vezes pelos cantos, quando a chuva apertava mais ou eu perdia a coragem, assustado com um raio ou outro que caia perto. Encolhido, me cobria com o sobreteto da barraca e isso me dava certo conforto, um isolamento do que estava rolando lá fora. Era uma reação bem infantil de “não quero nem ver!”. Nestas horas, além de recuperar o fôlego, tirava o celular do bolso pensando se não era hora de pedir ajuda.

Em desespero e já embalado numa religiosidade que desconhecia existir dentro de mim (e fazendo promessas, sempre elas), resolvi ligar para minha mulher. Não sei por que cargas d´água, mas precisava ligar. O sinal do celular sumia e voltava. Fiquei desesperado e puto. Voltava a maldizer coisas, dessa vez as operadoras de celular, e o próprio aparelho, moderninho demais para aquela situação, dificultando ainda mais as coisas. Falar com a minha mulher era o que eu precisava fazer naquele momento, custasse o que custasse. Idéia fixa na cabeça (que já não estava muito no lugar). Estava realmente adrenado. Na paranóia de ligar, me esqueci completamente de que poderia deixá-la (em quem estivesse ao seu redor) apavorada, em São Paulo, 200 km de distância, sem nada poder fazer para me ajudar, apenas conversar. Ela poderia acionar os bombeiros (que fiasco, ser resgatado no Marins…), fazer alguma coisa exagerada ou simplesmente ficar desesperada. Mas eu não estava nem aí. Só quem se mete em roubadas sozinho sabe como são confortantes as palavras de alguém querido na hora do aperto (mesmo que esteja do outro lado do mundo). Consegui ligar. Conversa tensa. Eu não sabia se me despedia e dava orientações como: “fulano pode ficar com as minhas roupas e sapatos, beltrano com os livros, etc” ou se apenas conversava, para tentar me acalmar – e também pensar – com uma cabeça a mais – na minha situação. Estava nervoso, e sozinho não conseguia me acalmar.

Preocupada, e reunida em razão de um almoço (que já tinha terminado, diga-se – ao menos eu não estraguei o almoço!) com a irmã e o namorado dela, decidiram que iriam me buscar. Na volta minha cunhada e o namorado ficariam em São José dos Campos. Levariam roupas secas – eu não tinha nenhuma roupa seca, teria que voltar pelado dirigindo para São Paulo (ia ser divertido ser parado por uma blitz). A Deborah (minha mulher) viria dirigindo de volta, já que ela estava descansada e eu um caco. Eu poderia ter insistido que eles não viessem. Dormiria em Piquete, em alguma pousada, de algum jeito (pelado também, provavelmente). Mas o que eu queria mesmo era voltar para casa, de maneira que não me pareceu uma má idéia o resgate familiar (como eu sou egoísta!). Lá fora ainda alguns clarões e chuva forte, mas já nem tão assustadora. Nem me ocorreu que, ao usar o celular, eu poderia aumentar as chances de ser atingido por um raio por conta da radiação eletromagnética, num ambiente já deveras eletrizado e a ponto de soltar “faíscas” por qualquer coisa. Não sei se existe alguma relação ou estudo científico que prove (ou não) tal relação, o fato é que isso sequer passou pela minha cabeça, tamanho o desespero que me abateu.

Voltei a andar. Na verdade eu precisava andar. Ficar parado significava esfriar e começar a bater o queixo (o que aconteceu umas duas ou três vezes) e, talvez, entrar em hipotermia, o que seria muito perigoso, especialmente no estado de fadiga que eu estava (sono, haja sono!). Os raios já não estavam tão nervosos, mas ainda sim ainda me assustavam com seus clarões e explosões, como que a me lembrar que, a qualquer momento, eu poderia ser pego por um deles. No lugar do acampamento improvisado ficou quase todo o meu equipamento, enrolado dentro do que sobrou da barraca. Um pacote dobrado, a espera de um sortudo em uma situação melhor que a minha, que certamente daria risada e diria: que louco, largar tudo aqui, do nada. Na pior das hipóteses eu perderia o equipamento. Na melhor, poderia voltar para recuperá-lo, descansado. Mas para ser bem sincero, o que eu mais queria era descer, me cuidar e contratar um guia para buscar o equipo depois. De fato era o mais sensato a se fazer, dada a minha condição física e psíquica naquele momento.

Pode parecer uma roubada comum. Alguns vão até pensar, sentados confortavelmente em suas cadeiras: que amarelão! Mas uma tempestade elétrica, junto de água gelada de chuva de verão, granizo, vento e cachoeiras por todos os lados, somadas ao frio, cansaço extremo e estando a menos 2 horas de escurecer, numa trilha que, apesar do que dizem, não é tão simples nem é tão fácil para se orientar (especialmente depois do verão e a noite), não é uma coisa que se vive todo final de semana, ainda mais depois de quase 10 anos parados.

CHEGANDO, SÃO E SALVO

A descida foi bastante complicada. Errei o caminho algumas vezes. Percebia o erro logo, e tinha que voltar pouca coisa (mas ainda assim, haja piramba!). A chuva forte foi embora e no seu lugar sobrou um chuvisco fraco, com vento. Enrolado no sobreteto da barraca, como se fosse um poncho, comecei a tropeçar (e a rasgar) o nylon da barraca. Logo percebi que aquilo poderia me causar um escorregão, um pé torcido/quebrado ou coisa pior. Não tive dúvidas: rasguei o sobreteto da barraca (com direito a um resmungo “você não prestava mesmo, tá reclamando do quê?!”), diminuindo o seu tamanho. Embrulhei o nylon que restou numa pedra de totem, da trilha (ia enfiar aquilo onde? No bolso não cabia, e eu precisava das mãos para descer). A decoração do totem ficou interessante, dando um toque tibetano à trilha dos Marins… Pronto, tinha um poncho sob medida, estava mais aquecido e a trilha estava ficando mais fácil, apesar de já ter escurecido. Ficou bom e aos poucos fui me acalmando e o céu foi limpando (maldita chuva de verão, tão rápida, tão forte e tão cínica!). Calculava ainda umas 2-3 horas de descida em condições normais, não sei quantas naquela situação. Achei que seria uma boa avisar o Milton (guia do Marins que conhecera na base) da roubada que eu havia me metido, e deixá-lo de prontidão caso a coisa se complicasse ou eu não aparecesse dali a tantas horas – ou a Deborah aparecesse primeiro, de mochila nas costas e uma garrafa de chá quente, pronta para me buscar, uma Sherpa às forças! De manhã, conversando com o Milton, tínhamos falado sobre resgates que ele fizera na montanha e até brincamos com a possibilidade dele subir para me buscar. Conversamos também sobre o acidente na Ana Chata, que ocorrera na semana anterior, e as condições climáticas. Santa ironia!

Não precisou, mas ainda sim, num gesto de imensa gentileza e simpatia, encontrei, algumas horas depois, no primeiro mirante (30 minutos acima do Careca), o Roni. Também guia da região, o Roni disse que estava subindo para “esticar as pernas”…&nbsp, Sei… O Roni estava sem lanterna, com uma capa de chuva daquelas de parque de diversão, seguido de duas figurinhas (um Beagle e um Labrador, cachorros da cidade que aprenderam a viver no mato). Tomou vários tombos (mesmo depois que emprestei meu celular, que tem uma lanterninha de leds), mas mantivemos o bom humor e viemos num papo gostoso, sobre histórias, pessoas, lendas daquela montanha (o escoteiro nunca encontrado) e afins. Ele me contou que eles ficaram preocupados, porque o vendaval tinha sido bem forte lá em baixo também. Com raios e granizo, tal como eu tinha pegado, centenas de metros acima, provavelmente no meio da nuvem. Chegamos ao Abrigo e fomos recebidos com um feijão mexicano delicioso preparado pela companheira do Roni. Bebi/comi satisfeito e aliviado. Tomei um banho quente e coloquei uma camiseta e bermudas emprestadas. A temperatura lá em baixo era amena, cerca de 10-15 graus, um tanto “friozinho” para ficar só de bermuda, camiseta e descalço, mas ainda sim bem mais confortável do que o que eu tinha passado lá em cima. Fiz uma hora (esperando a minha esposa chegar a Piquete), tomei umas cocas e um pouco de vinho (por educação, porque o meu negócio é coca-light mesmo…), enquanto escutava atento a descrição da variedade de cervejas que o Milton vende lá em cima: holandesas, brasileiras, de todo o tipo, nem em supermercado granfino de São Paulo encontramos tanta variedade! Bom de conversa o Milton… Telefone toca, pego o carro e desço até o Bairro dos Marins para um abraço apertado na minha mulher, cunhada e o namorado dela que combinaram de me esperar lá.

Prometi ajudar o Milton e o Roni no abrigo que eles estão montando lá no Marins. Pareceram-me gente muito boa, preocupada, consciente e bem intencionados. Receberam um forasteiro (como eu) como se fosse um velho amigo e se prontificaram, sem titubear, em me resgatar caso fosse necessário.

Tirando a dupla que desceu logo depois do Careca e do mineiro de Itajubá, ninguém mais apareceu no Marins nesse final de semana. Fiquei de voltar lá no próximo Sábado para recuperar o equipamento. Um deles irá buscar o pequeno tesouro durante a semana. Se volto a subir? Não tão cedo, muito menos sozinho. Ainda tenho que ver o que vou fazer com as promessas que fiz lá em cima, enquanto tomava pedrada nas costas e sentia com toda violência a força da natureza. Que bela roubada!

RÁPIDAS CONCLUSÕES

1) Não vale a pena arriscar um final de semana de verão na Mantiqueira se você não for do tipo que curte extremos ou tem um equipamento de primeira (que inclui sistema de pára-raios)… Existem outras histórias de roubadas e raios por lá. É possível ir e se dar bem? Sem dúvida. No verão pode chover e as chances de você se deparar com um temporal realmente casca-grossa e cheio de eletricidade não são tão grandes, mas devem ser consideradas (e bem).

2) Sozinho pode ser chato e perigoso. Assistiu ou leu “Na Natureza Selvagem”, daquele louco que viajava sozinho e queria distância de qualquer relacionamento mais sério? Então, na roubada é que a gente percebe muitas coisas básicas sobre a vida. Uma delas é que as coisas (alegrias e tristezas) são melhores se compartilhadas. A roubada pode se tornar “menos roubada” com alguém (duas cabeças…). Enfim, nada que um montanhista com alguma experiência não saiba ou recomende.&nbsp, Recomendação esta que eu, na pilha de subir a serra, ignorei completamente,

3) Descanse antes de pegar uma trilha (qualquer uma de dificuldade moderada ou difícil). Privação de sono acaba com o físico de qualquer um, por melhor preparado que esteja. Essas saídas de madrugada, sem dormir na sexta-feira são roubada. Se juntar com tempo ruim então, é roubada quase certa. Descanse e curta uma trilha sem stress físico e com a cabeça no lugar.

4) O restante eu deixo para quem quiser comentar ou escrever ([email protected]).

ATUALIZAÇÃO JUN/08

Durante a semana seguinte, o pessoal do Acampamento Base subiu e recuperou parte do equipo. Alguma coisa foi embora, provavelmente levada pela enxurrada, mas 95% das coisas ficaram no lugar (eu havia deixado tudo relativamente ensacado e preso).

Voltei no final de semana seguinte para buscar as tralhas, e aproveitei para deixar algum equipamento para ser usado pelo pessoal de lá. Alguns meninos das fazendas próximas, gente bem simples, já ajudou e freqüentemente ajuda a encontrar gente perdida, dá apoio, etc, de maneira que é sempre legal dar uma força para os “locais”.

Lá no Acampamento Base eles já têm uma maca. Levei algumas coisas de montanha e badulaques gerais (para fins de resgate) como doação. Não canso de frisar que o pessoal do Acampamento Base foi muito gentil. Não me deixaram pagar pelo resgate dos equipos e ainda por cima lavaram as minhas coisas (roupas, sleeping, etc) que ficaram imundas de terra. Um gesto simples, mas para mim muito bonito. Fiz novos amigos neste meu retorno às montanhas, mesmo com uma bela pitada de medo e susto!

Compartilhar

Sobre o autor

5 Comentários

  1. Pablo Marcos Reis em

    Li toda a história. Foi realmente uma roubada, uma aventura que se mostrou um pesadelo, mas que terminou com final feliz. Pretendo ir ao pico dos Marins pela primeira vez em julho, acho q não correrei risco de pegar uma tempestade dessas aí.

  2. Relato hilário, eu ri bastante, e desculpe por fazê-lo da desgraça alheia. Piadas a parte, parabéns por toda perseverança, e por ter aguentado firma a situação. Em maio deste ano (2018) um montanhista francês, casado com uma brasileira, que acabará de ganhar uma prova de trekking no Peru, se perdeu nos Marins, e veio a falecer de hiportemia, em situação muito similar a sua. Então sim, você corria sério risco de vida, e no geral até que se comportou muito bem, continuo a se movimentar, usou o sobreteto de poncho, evitou a hiportemia, contato alguém. Foi basicamente um auto resgate. Parabéns pela boa desenvoltura do texto, tornou uma situação perigosa muito divertida ao leitor. Quero ir ao pico dos Marins, ainda em setembro, topa voltar lá?

    • Clodoaldo Alves em

      Estive nessa trilha também , todo despreparado pernoitamos no pico quase congelamos, mas acho que em nossa vida tudo tem um propósito como diz as escrituras ,o que e costumeiro no tolo e esquece nas horas normais o que prometeram nas horas crusiais.

  3. Adriano sniper Urtigao em

    Passei por uma situação assim na serra do japi, mas a sua foi bem pior, porque no meu caso me escondi em uma “sala” da estação repetidora ao lado de uma torre kkkk, imagine os raios. Quando consegui descer a cidade de Cabreuva estava arrasada.

Deixe seu comentário