PERRENGUE NO TREM DA MORTE

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Viajar é admirar e participar intensamente de tudo em volta, o que por si já é gratificante. Mas há outro momento divertido em qualquer viajem é o seu ´depois´, quando a trip é relembrada deliciosamente numa roda de amigos ou num boteco qualquer. E melhor ainda quando ela é recheada de perrengues e causos pitorescos para jogar conversa fora.


Texto e fotos de Jorge Soto

Aninhados confortavelmente na segurança que o passar
do tempo e a distancia proporcionam, é provável que este hiato temporal dilua a
maioria das lembranças e bons momentos de qualquer trip, mas isto apenas com viagens
´comuns´, que dispensaram a mínima superação de imprevistos e que não fogem da
inércia da acomodação. Por sua vez, isto já não ocorre com o perrengue, por sua
própria condição é eterno, dispensando inclusive a muleta gráfica de qualquer espécie
de registro, pois a memória ´afetiva´ é muito mais poderosa que a digital. Assim, o
perrengue é um dos temperos da aventura.

Eu e uma
velha amiga carioca retornávamos a terras tupiniquins após longa mochilada,
decidindo se o faríamos pelo mitológico ´Trem da Morte´. Eu não ligava muitto,
pois já era íntimo da lendária composição de trips anteriores, sendo que o
bilheteiro até já me conhecia, mas para minha amiga (jornalista global) aquilo tudo
era novidade, e o sugestivo e mórbido nome deixaram-na receosa para encarar a
trip, preocupada com segurança, higiene, etc. Enfim, coisas de mulher, embora a
má-fama fosse injustificada.

Havia outras opções para contornar os quase 650km que
nos separavam ainda da fronteira com Brasil, o ferrobus e um busão, no
entanto, o trem era a opção imediata, econômica e interessante,
antropologicamente falando. Sonho de aventura de muitas gerações, viajar no
dito cujo fechava com garbo àquele rolê de mês e pouco pelo altiplano andino,
nos brindando com um mosaico completo da situação social do país.

Deixamos Sta
Cruz de la Sierra
às 15hrs, pontualmente. Uns gringos carrancudos e de poucas palavras sentaram próximo,
num vagão entupido de gente, sentada, em pé e no chão. A viajem correu bem, sem
surpresas. Já tava habituado ao incessante sacolejo, à camelagem surreal e todo
comercio informal alavancado em cada parada, à recusa de todo quitute duvidoso
oferecido insistentemente, às esdrúxulas ´limonadas´ de balde, ao calor e mau
cheiro sufocantes, às nuvens de mosquitos irritantes, à mendicância e sujeira
generalizada, ao corre-corre dos muambeiros, à rotina de nos revezar
durante cochilos vigiando nossa bagagem, e à enorme diversidade étnica e
cultural proporcionada por aquela Babel horizontal.

Mas aquilo tinha sabor de descoberta p/ minha
amiga, que não deixava escapar nada ao seu atento olhar, fosse no interior do
apertado vagonete ou pela paisagem retratada pela janela. Algumas paradas nem
são consideradas ´estações´, são no meio do nada e o mato ressequido, ou num
povoado paupérrimo ermo com apenas casebre servindo de apoio. Outras vezes nem
pára, apenas reduz a velocidade onde se vê gente correndo (idosos, em sua
maioria) tentando embarcar com pesadas bagagens nos últimos vagões. Alguns tem
sucesso, outros não. Entretanto, no fim do dia ela me confidenciou: ´Pô, o
´Trem da Morte´ não é tão ´de Morte´ assim… tem até Primeira Classe!!´,
não escondendo seu desapontamento.

De fato, diante de tudo que passáramos ate então, o
trem estava sendo uma viajem de ´luxo´, nos proporcionando raros momentos de
paz, sossego e muito pó! Até a tradicional blitz atrás de entorpecentes por
parte dos mal-encarados milicos bolivianos – meros adolescentes c/ pesado
armamento – em nossas mochilas foi encarada c/ naturalidade. Mas ela não se
furtou de divertidos chiliques de repulsa quando entraram vendendo sopas em
sacolas plásticas e canudinho (!?) ou nacos de ´tatu c/ farofa´, um PF que os
locais devoravam sem cerimônia. Mas de maneira geral tudo corria dentro do
previsto. Porém, havia esquecido aquela máxima de Murphy que diz ´Nunca tudo pode
estar mal que não possa ser piorado..´

Antes da
meia-noite, enquanto ela dormia e eu ficava de olho na bagagem, o trem fez sua
tradicional parada em San
José
de Chiquitos, uma vila de origem guarani-jesuita que mais
parece saída de filme de faroeste. Sendo a maior estação do trajeto, havia um
tempo maior de espera. Duro foi descer, me equilibrando para não pisar em
crianças, bebês e idosos dormindo no assoalho frio e sujo do trem. Hora de
comprar também alguma coisa confiável para beliscar nos inúmeros ´comedores´
espalhados ao longo dos trilhos, uma espécie de fast-food local.

Aí tive a infeliz idéia de sair para fotografar os
últimos vagões, onde o povão divide o chão com galinhas, porcos, etc. Foi quando
minha atenção foi desviada por uma grande quantidade de ´mennonitas´ – espécie de
comunidade ´amish´, de traços anglo-saxônicos – e quis clicar algumas belas
integrantes ´galegas´ que destoavam em meio à população indígena local. ´ Aqui
´Os Waltons´ encontram Pachamama´, imaginei como titulo daquela cena
improvável, mas esse povo arisco costuma fugir de lentes feito diabo da cruz.
Dito e feito, foi só eles virem minha máquina que fizeram cara feia com uma
ceifadeira na mão.

Entendi o
recado, claro. Voltei pra idéia dos vagões-trash, caminhando rente à composição.
Muita gente, barulho, crianças pedindo esmola, etc, tudo em meio à precária
iluminação. Bombardeado de sons de passageiros, empurra-empurra de ambulantes
indo e vindo, foi quando me descuidei. Não notei o buraco de um aterro à frente,
onde caí desajeitadamente com todo o peso sobre a perna direita, me ralando
todo!

Ouvi algumas risadas abafadas que logo se diluiu em
meio àquela muvuca toda. Levantei rapidinho fazendo de conta que nada tinha
acontecido, sacudi minha calça suja de terra e me limpei, sem dar muita
importância a um leve ardor na canela. Em seguida fui encontrar um gaúcho que conhecêramos,
que examinou minhas mãos raladas e aconselhou lavar com urina (!?) Conversamos
+ um pouco, removendo restos de terra e sangue coagulado da mão, quando o trem
apitou anunciando sua partida. Subi frustrado, sem fome ou sede. E pior, sem
fotos.

Minha amiga
dormia profundamente e não quis incomodá-la. Foi ai que senti, no sacolejo
trepidante do trem, uma dorzinha ou queimação latejando na canela esquerda.
Cuidadosamente, tateei com a região que eu não dera importância, e fiquei
assustado com o enorme sulco que meus dedos sentiram! Resolvi então examinar
melhor o machucado na ´toillete´ do trem, que não passa de um apertado cubículo
com um buraco no chão onde se vêem os trilhos passando logo abaixo.

Lá, levantei meu moletom – tingido de sangue – e
fiquei pasmo com o q vi: no meio de minha canela havia um buraco, do
tamanho de uma grande moeda, de onde via claramente o branco reluzente da minha
tíbia esquerda, cercado de pouca carne dilacerada!!! Até hoje me pergunto
como foi que consegui essa proeza?! Confesso que a imagem me impressionou
e perdi a conta de quantas vezes amaldiçoei àquela inoportuna descida! Lavei o
ferimento com a água mineral reservada p/ nosso consumo e retornei pro banco.

Acordei e
contei à minha amiga o sucedido que – notando minha preocupação – buscou me
acalmar, alem de cuidar do ferimento com os poucos recursos que tínhamos à mão.
Ou seja, lavou novamente e colocou 2 band -aid da Turma da Mônica (!?).

Por sorte, aquela região não tinha vasos sangüíneos
maiores, sendo mais osso que carne. Ainda assim, havia risco de
infecção. Chamei o bilheteiro e solicitei um kit decente de primeiros-socorros,
explicando o ocorrido. Disse que ia ver o que achava e logo voltava. Não vi
mais o cara. Estávamos à própria sorte. Aquela noite mal dormi e, inquieto, fui
invadido por toda sorte de pensamentos, mas principalmente tomado pela incomoda
sensação de impotência, indignação e inconformismo. O risco de infecção era
real e preocupante, e ainda faltavam quase 10hrs para chegar na fronteira
brazuca!

De madruga minha colega cuidou de mim, numa
inversão curiosa de papéis, pois durante toda trip eu dera suporte total à ela,
desde peso na mochila, logística, negociações, comunicação, etc. Foi quando
consegui dormir por algumas horas. Depois ela me contou que os gringos do
vagão desceram numa estaçãozinha obscura e, não fosse sua intervenção quase
levam nossas mochilas junto, nem se desculpando pelo ´engano´. Depois disso
amarramos firmemente nossas mochilas no bagageiro, sem tirar o olho dela.

Finalmente,
as 9hrs da manhã seguinte chegávamos à Puerto Suarez, imundos do pó acumulado na
pitoresca viagem. Diante do corre-corre que se seguiu procurei não forçar a perna
e, junto c/ outros nativos, lotamos um táxi e partimos p/ fronteira, perto
dali. Carimbamos passaportes, trocamos o resto de moeda local por reais, e logo
caímos em Corumbá (MS). Como era bom ler novamente o português!!! Cartazes,
outdoors e até propaganda política era colírio aos olhos!!

Fui na Policia Federal e na farmácia, onde
comprei tudo que me fosse útil, enquanto minha amiga tomava conta das coisas na
rodoviária. Fui e voltei a pé, mancando feito saci! O calor daquela tarde era
quase palpável, mas mesmo assim nalguns trechos arrisquei uma
corrida, pois o busão partiria logo. Comprei também latas de cerveja pra
relaxar um pouco. Ou pelo menos tentar.

Já no busão,
nos acomodamos nos últimos bancos e longe de olhares do resto dos poucos
passageiros. O band-aid da Mônica dava lugar a uma gaze esterilizada, besuntada
em água oxigenada. A feriada agora estava mais ´limpinha´, o que já era boa
noticia. Mais tranqüilo, ela me confessa que ficara também apreensiva a noite
anterior com o ferimento, mas que tratou não transparecê-lo diante minha excessiva
preocupação.

Estávamos
visivelmente esgotados, viajando ininterruptamente, exaustos e imundos, já que
nossa última noite de sono com cama e banho fora em Sucre, uns 4/5 dias atrás. O
altiplano andino dava lugar à horizontalidade da planície pantaneira e às
escarpas escarlates de arenito típicas da Chapada dos Guimarães. Mas havia muito
chão até o final, c/ 20hrs de viagem nos separando ainda da acinzentada Sampa.

Em Miranda ,
ao lado de uma lacônica placa (´Aqui começa o Pantanal!´), paramos por
meia hora num restaurante ´self´, onde nos fartamos de comida de
verdade: mandei ver todo tipo de carne, lingüiça, feijão, saladas, polentas,
arroz e sobremesas mil! Comi de tudo que havia, exceto frango!!!! Satisfeitos,
dormimos o resto da viagem, pouco ligando pra beleza da estação seca pantaneira
emoldurada através da janela, da jacarezada descansando perfilada ao sol e dos
esquálidos rebanhos de gado à beira da estrada. Apenas atentamos à nova blitz
da Polícia Federal, que nos revistou da cabeça aos pés. Também pudera, nossa aparência
não ajudava muito: isolados no fundão ocupando uma fileira de bancos, sujos e
ainda por cima todo ensangüentado na perna, tivemos atendimento especial com
direito a revista minuciosa no banheiro, interrogatório de praxe e solicitação
de toda sorte de documentos, que por sorte estavam em dia.

Chegamos no
Terminal Barra Funda no raiar da alvorada da manhã seguinte. Fim de jornada.
Estranhamente, São Paulo parecia + uma cidade a visitar, uma extensão da
viagem. Havíamos perdido o senso de lar. E seria tolice acreditar encontrar
tudo da mesma maneira que quando partimos. De fato. Apagão? Racionamento? Cota de
energia? Que isso, gente? Após 5 semanas de rolê, parecia realmente que
chegávamos numa nova cidade, mas voltávamos repletos de histórias,
impressões e muitas boas lembranças. Fechar a trip no pitoresco trem também foi
indispensável para dar autenticidade à aventura.

Convivera com minha amiga o suficiente para
conhecermos o melhor um do outro, passamos por situações adversas que, de uma forma
ou de outra, deixava marcas na gente. Ao menos em minha perna, sim. Depois
dessa ocasião viajei mais 2 vezes no trem, sem a mesma intensidade que daquela
homérica roubada, mas com perrengues nababescos noutras etapas da mesma trip,
tipo sofrer seqüestro relâmpago em
La Paz
, caronar ao lado de um morto na patagônia, mendigar para arrumar dinheiro pra retornar ou quase morrer congelado em Potosi, entre
outros.

Mas isso já são outros quinhentos. Ai volto ao 1º
parágrafo, reforçando a idéia que as trips q ue guardamos com mais carinho são
aquelas em que nos submetemos – voluntariamente ou não – com coragem e reverência
a provações, loucuras, roubadas, riscos, fazendo assim um dia diferente ao
outro, onde navegamos conforme sopra o vento, sem necessariamente haver tempo bom
para isso. E é nessa superação que advém o crescimento e, conseqüentemente,
conhecimento. Seja ele bom ou ruim. Com isso fortalecemos apenas os valores
simples que nos movem, alem de ganhar muitas historias pra contar. Essa é a base
do chamado espírito aventureiro.


Jorge Soto

http://www.brasilvertical.com.br/l_trek.html

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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