O Poção do Juquery

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“O que fazer num dia lindo de sol e calor, mas com pouco tempo disponível?”, foi a indagação que me veio a mente neste último domingo. A resposta veio meio que óbvia: “Parque Estadual do Juquery”, unidade de conservação localizada em Franco da Rocha (SP) á qual devia retorno após ano sem lá pisar. O fruto desta nona incursão foi não apenas uma pernada sussa de 18km que cortou o quadrante oeste do parque e findou em Caieiras; foi a xeretada duma vereda proibida que dá num antigo atrativo esquecido, no caso, um refrescante poção pra banho. Um rolê que revelou o contraste dum parque conhecido pelos seus campos de cerrado agrestes e escassez do precioso liquido, mas que esconde não apenas vales verdejantes e exuberantes como muita água refrescante.

Saltei na Estação Franco da Rocha (da linha Rubi da CPTM) pouco depois das 9hrs e pra minha surpresa não me deparei com a tradicional feirinha dominical, afim de mastigar um pastel como desjejum. Só depois tomei conhecimento que ela fora transferida pro outro lado da via férrea devido a inauguração duma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) na rua onde antes ocorria. É, muitas mudanças ocorreram neste ano de ausência por Franco da Rocha. Felizmente mudanças pra melhor, promovidas pela atual gestão municipal, pois logo depois tropecei com uma Fatec sendo construída.
Pois bem, dali podia ter tomado qualquer condução sentido Mairiporã, mas como o dia estava bonito e eu estava bem disposto decidi fazer os quase 3km que me separavam da “P2”  a pé mesmo. Esta portaria não é a principal (aquela em frente aos bombeiros) e é a mais próxima á cidade, situada no setor noroeste do parque. E lá fui eu andarilhando pelo asfalto da “Estrada do Governo”, nome popular pela qual atende a Rod. Luis Salomão Chamma (SP-023), inclusive cortando caminho pelo miolo da Vila Ramos nos finalmentes. É, já aprendi os macetes pra chegar no parque num piscar de olhos dispensando de qualquer condução.
Assim, lá pelas 9:30hr ultrapasso o discreto pórtico de madeira da “Portaria 2”, cumprimento cordialmente o guardinha e me pirulito pelo caminho principal indicado pela eficiente sinalização do lugar. Vale mencionar que esta portaria costuma fechar com freqüência, principalmente em dias de chuva pois o Rio Juquery (bem ao lado) costuma ter seu nível elevado e não raramente inunda a estrada de acesso a mesma. Não era o caso, o parque fervia de gente naquele dia claro e ensolarado. Contudo, a maior muvuca de visitantes e andarilhos se concentra nos arredores da portaria principal, a “P1”, enquanto que no sentido “Ovo da Pata” os pedestres são menos frequentes.
Pois bem, não da nem 5min pela larga e inconfundível via principal que toca na direção leste – como indo de encontro a portaria principal do parque – que adentro numa via marcada como “proibida” por uma simpática placa de madeira. Este caminho sempre despertou minha curiosidade e sei lá porque cargas dágua sempre me passou despercebido. Agora e de forma marota finalmente ia saciar minha curiosidade.
A vereda, larga e bem batida, praticamente desce quase rente ao Rio Juquery e passa a acompanhá-lo pela margem direita, sem variação alguma de desnível. Trilha agradável, tranquila e muito bonita cenicamente, pois se avista o rio de uma perspectiva diferenciada. Alternando trechos abertos e fechados, logo percebo que capivaras tem o hábito de circular por esta via proibida. Sujeirinhas frequentes destes grandes roedores confirmam esta suspeita. O caminho ora se aproxima ou afasta do rio, onde a vegetação é completamente diferente da ressequida habitual do resto do parque. Mata ciliar exuberante e robusta, cipós e barbas-de-bode pendendo de galhos que me nada lembram aquela retorcida que se encontra, por exemplo, no “Ovo da Pata”.
Outra coisa que me despertou a atenção foram ruinas pipocando ao largo da trilha, tomadas de mato. Aqui alguém favor me esclareça se elas são oriundas das antigas edificações que compunham o antigo Hospital Psiquiátrico ou da antiga fazenda proprietária do terreno. O fato é que esta vereda não deve ter nem 3km e ambos extremos desembocam no caminho principal do início, com variantes menos pisadas que dão no trecho intermediário. Não vejo motivo desta agradável rota ser vedada aos visitantes pela administração, embora as marcas de pneu de bike (e papel de bala) revelam que tem quem se arrisque a sair das rotas permitidas pela unidade de conservação.
Novamente na vereda principal retrocedo um pouco e adentro pela trilha exclusiva ás bikes. Este caminho, de pouco menos de 2km, era utilizado pra fins de pesquisa (lembro que havia um pluviômetro desativado) e ganha o alto da primeira colina desenhando uma espécie de “U”, cruza a avermelhada pista de pouso e depois toma a direção sudeste. O caminho é bonito e cênico, exibindo o vasto platozão coberto de capim avermelhado que dança sob a suave brisa daquele dia ensolarado.
Conforme previsto desemboco no “Quiosque da Seriema”, descampado marcado pelo dito cujo e um precário sanitário onde uma galera descansava á sombra daquele dia que prometia ser bastante quente. E estava mesmo, pois o suor já escorria farto pela ponta do nariz.  Ali resolvi fuxicar uma nova vereda que me passara batida noutras ocasiões e adentrava no vale vizinho ao quiosque. Observando bem rente ao capinzal é possível reparar num rastro de trilha bem evidente a olhos treinados. O mato abaixado é a dica que precisava e que num piscar de olhos me leva á beirada daquela abaulada dobra serrana. Dali já é fácil acompanhar a vereda descendo a campina e indo de encontro ao fundo do vale, onde tons verdejantes contrastam com as encostas douradas.
E lá vou eu perdendo altitude aos poucos, inicialmente na diagonal pra depois ser em curtos ziguezagues. Cada vez mais adentrando na baixada do vale as encostas parecem elevar-se a minha frente, encosta esta coroada pela tradicional torre de observação do parque, no alto. O caminho mostra-se bem batido até a hora que adentro no frescor da mata fechada, onde torna-se incrivelmente bem mais íngreme. Degraus irregulares e algum pouco mato tombado fazem com que precise me segurar na vegetação ao redor, mas nada assim do outro mundo que alguém acostumado a escalaminhadas.
Discretamente reparo decrépitas tábuas de contenção formando uma antiga escadaria, sinal que o lugar já teve estrutura pra visitação antes.
E assim, vencidos menos de 100m de desnível atingo o fundo do vale, onde caio as margens dum bucólico córrego cujo rumorejo era audível assim que deixara a campina da encosta. Uma clareira e vestígios duma mureta de canalização repleta de limo indicam que o lugar já teve visitantes. Mas a melhor coisa foi acompanhar o curso da água, rio abaixo, e ter uma boa surpresa. Desescalaminhando cautelosamente um lance fácil de pedras visguentas alcanço um patamar mais abaixo, onde o rugido duma cascatinha despertou mais meu interesse, caio as margens dum enorme poção onde estavam as águas represadas. Uma biquinha despenca da altura de dois metros naquele piscinão natureba, situado num trecho emparedado do vale e repleto de exuberante vegetação, que filtrava os raios solares lindamente lá do alto. Dali em diante o riozinho seguia seu manso e sinuoso curso pra provavelmente morrer como tributário do Juquery, bem mais adiante. Naturalmente que me brindei um merecido pit-stop naquele improvável e convidativo remanso, com direito a refrescante tchibum! Horário? Quase meio-dia..
Revigorado, não me restou opção de voltar pelo mesmo caminho. Bem que tentei buscar alguma outra saída do fundo do vale mas nadicas. Subi a encosta sem pressa, atingi o alto e me dirigi ao miolo do “Quiosque da Seriema”, onde dois guardinhas do parque já me aguardavam. “Sabia que é proibido andar nessa trilha que você estava? O guarda da torre te viu descendo e passou um rádio pra gente!”, falou um deles pra mim, passando sermão com semblante carrancudo. “Perdão, mas não havia nenhuma placa afirmando isso! E o que não ta expressamente proibido, em tese, é permitido!”, respondi educadamente.
O fato é que quebrei o gelo inicial e dali travei uma animada e esclarecedora conversa com eles. Fiquei sabendo que aquela picada era a outrora “Trilha da Gruta dos Pitus”, antigo atrativo do parque que atualmente estava proibido o acesso por falta de manutenção (e de verba) já a um bom tempo. “Antes o pessoal ia lá, deixava sujeira, bagunçava ou se acidentava por causa da trilha íngreme e pedras escorregadias. Dai o parque preferiu proibir acesso!”, completou. Além disso, relataram das demais mazelas do Juquery, como os incêndios e visitantes pouco conscientes com preservação ambiental.  É sempre a mesma coisa: por causa de meia duzia de irresponsáveis todo mundo termina pagando o pato…
Me despedi deles dando continuidade ao rolê, agora pelo caminho principal que vai na direção do “Ovo da Pata”, que por ser domingão de dia lindo estava pra lá de muvucado. Ao invés disso tomei a rota em direção á “Arvore Solitária” e, na sequência, outra picada de magrelas que dá acesso ao setor oeste do parque. Desci até o lago, passei pela “Cachu do Moinho”, cruzei o túnel de bambus e comecei a sair daquele suave vale encravado a noroeste. Tomei a bifurcação pra esquerda (evitando o centro de detenção), agora pro sul, e simplesmente por ali me mantive indefinidamente.
Particularmente gosto muito deste setor pois é muito mais tranquilo e tem menos visitantes (a pé) por conta das grandes distâncias e por estar mais afastado das portarias. Não era meu caso, uma vez que não sairia pelo mesmo local, pra desgosto dum carcará, que aparentemente não gostou da minha presença ali.
Sempre pro sul, a meio caminho abandonei a rota principal por uma picada em meio aos arbustos, pouco antes da chegada dum minúsculo açude. Esta vereda é clandestina e dá nos bairros a leste do parque, mas é bem bonita e repleta de flores de vegetação típica de cerrado. Aos poucos os vastos descampados do parque dão lugar a um simpático bosque de eucaliptos e pinheiros, até ignorar a estreita picada que dá acesso ao Jd Nova Era. Me mantendo sempre no caminho principal alcanço um antigo posto de fiscalização do parque, hoje desativado. Dali praticamente dou adeus ao parque, tendo o Cristo caieirense me dando as boas vindas, a oeste.
Logo adiante desemboco nos fundos do 26º Batalhão da Policia Militar, já em Caieiras. Pergunto pros guardas da guarita qual estação de trem me era mais próxima, se a de Franco da Rocha ou Caieiras, e todos concordam que é a segunda. Dali é so tocar pro sul, saio pela Praça do Maçom e pelo Velódromo Municipal, até finalmente cair no centro comercial de Caieiras, cuja historia remonta ao século XIX, quando as fazendas ao largo do Rio Juquery-Guaçu fabricavam cal em enormes fornos, que posteriormente serviu de inspiração pro nome do municipio. A ferrovia trouxe desenvolvimento que de fato veio com a chegada da Cia Melhoramentos, em 1890. Como foi preciso reflorestar os morros do entorno com pinnus e eucaliptos pra produção de papel, Caieiras ganhou a alcunha de “Cidade dos Pinheirais”.
Devia ser pouco menos das 14hr quando passei num mercado e sentei do lado da estação afim de bebericar meu “Gatorade”, agora na frente da Câmara Municipal de Caieiras. Dever cumprido. Concluída com sucesso mais uma agradável e descompromissada pernadinha, que contabiliza ser a minha 9ª pela região.
Sobre o rolê propriamente dito, resta apenas a torcida pra que o PE Juquery crie condições pra livre acesso á tal “Trilha da Gruta dos Pitus”, atrativo tão bonito quanto refrescante que está simplesmente largado ao esquecimento. Esperando unicamente visitações clandestinas antes que a erosão ou o mato o engula por completo. E um lugar que não investe em si próprio e não incentiva a população a conhecer esta bela unidade de conservação perde automaticamente sua razão de ser.
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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