Da mantiqueira aos Andes

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Em abril de 2015 eu e minha companheira Gabriela, quase por acaso, começamos nossa caminhada nas montanhas. Já havíamos praticado atividades ao ar livre como trilhas de longa duração em cachoeiras e pernoite em acampamento selvagem, mas até então não tínhamos ultrapassado a marca dos 1600 metros. Pesquisando sobre parques nacionais nos chamou a atenção o Pico das Agulhas Negras, com 2790 m, localizado no Parque Nacional do Itatiaia, decidimos então nosso próximo destino.

Saimos de São Paulo em direção à Itatiaia, RJ, onde pegamos um ônibus com o nome do parque. Chegando ao destino fomos informados que estávamos na  portaria errada, e que o acesso ao Pico das Agulhas Negras fica na parte alta do parque. Haviam duas possibilidades, voltar para cidade de Itatiaia e pegar outro ônibus ou realizar a travessia Ruy Braga, que liga a parte alta e baixa do parque com extensão de 23 km e ganho positivo de 1400 m. E lá fomos nós, apenas com um mapa dado pelo parque e equipamentos inapropriados (cobertor leve, isolante térmico adaptado para forro de telhado e muito peso extra), caminhamos 7 horas chegando exaustos ao desativado abrigo Macieiras, distante 10 km do nosso objetivo: o abrigo Rebouças. A vegetação predominante ainda era mata atlântica. No dia seguinte ao atingir o platô do Itatiaia e perceber a mudança da vegetação e do clima, avistar o Agulhas Negras, o mar de nuvens, realizar todo o esforço e a logística, com certeza foi uma experiência marcante, ali nascia uma paixão pelo montanhismo.
 
Apartir desta primeira experiência na montanha o foco de nossas atividades de lazer passou a ser o montanhismo, procuramos nos informar melhor e aos poucos fomos adequando nossos equipamentos que no início era muito precários para prática. No final de 2015 já havíamos feito as travessias Marins-Itaguaré, Petrópolis-Teresópolis e Lapinha-Tabuleiro. Foi nesse período, em Outubro de 2015, que retornei a travessia Ruy Braga, desta vez ida e volta em solitário, e em 2016 o curso básico de escalada com Eliseu Frechou. A relação com a montanha estava ficando mais séria.
 
Planejando o primeiro projeto em altitude
 
Após muita leitura, pesquisa, conversas, artigos do pessoal do AltaMontanha, Marksi e tantos outros, a vontade de conhecer montanhas mais altas foi crescendo. Eu cheguei a visitar a Adventure Sports Fair para assistir algumas palestras sobre o tema e foi onde conheci Pedro Hauck, que me deu mais algumas indicações. A Cordilheira dos Andes apareceu como a opção mais viável para a nossa primeira experiência. Elaboramos um roteiro que partia da Bolívia com destino ao Peru, e a montanha escolhida foi o Chachani localizado em Arequipa, Peru. Um 6 mil metros sem dificuldades técnicas e fácil acesso. A data estabelecida por nós foi simbólica, durante os dias 24 e 25 de dezembro, celebrando este novo caminho nas nossas vidas.
 
A montanha havia sido escolhida, os treinos que já eram pedaladas regulares e visitas a serra da Mantiqueira, ficaram mais intensos com corridas de 5 a 8 km durante a semana e escalada em rocha. Pelo fato de sermos vegetarianos nossa dieta tem algumas carências específicas. Três semanas antes da viagem começamos a tomar suplementação de ferro para auxiliar a produção da hemoglobina e ajudar na absorção do oxigênio. Para a viagem levamos barras de proteína vegan e um polivitamínico em pílula. Fora isso praticamente continuamos nossa rotina normal na cidade.
Quanto aos equipamentos, já tínhamos grande parte deles devido às nossas visitas a serra da Mantiqueira, com exceção dos que são específicos para o gelo, como o crampon, piolet e bota dupla. Como seria nossa primeira experiência, e para o Chachani não são necessários estes equipamentos, optamos por alugar ao invés de comprar, caso fosse necessário.
Estava tudo decidido, agora só restava a ansiedade de aguardar a data da partida.
 
Conhecendo o Altiplano 
 
Logo na chegada no saguão do aeroporto, El Alto, em La Paz, Bolívia, enquanto carregamos nossos equipamentos, que totalizavam 40 kg para duas pessoas, já percebemos os efeitos da altitude no corpo, principalmente a dificuldade na respiração que, com o menor esforço, nos deixava ofegante. O aeroporto está localizado a 4.060 m, um grande impacto pois havíamos partido do aeroporto de Guarulhos em São Paulo, que está a 750 m. Graças às informações já estávamos nos hidratando bem desde a partida e não sofremos com o mal da altitude. 
 
Assim começava nossa aclimatação, saindo do aeroporto descemos até a cidade de La Paz que está a 3660m, onde ficamos durante 3 dias. Escalamos em rocha em Aranjuez com nosso amigo José Callisaya, que é guia formado pela ENSA – Ecole Nationale de Ski et d'Alpinisme, em Chamonix,França. Depois de conversar com José decidimos fazer um curso básico de escalada em gelo no glaciar do Huayna Potosi, o que também ajudaria em nossa aclimatação pois atingiríamos a marca dos 4.950 m. 
 
Por indicação do Pedro Hauck alugamos nossos equipamentos com Christian, um suiço muito simpático que vive em La Paz e tem uma loja de aluguel e venda de equipamentos para montanhismo. 
 
Chegando no refúgio do Huayna Potosi percebemos o ar ainda mais rarefeito, no glaciar a progressão era lenta, as botas duplas e os crampons adicionavam um peso de 2 quilos em cada pé. Porém não tivemos grandes dificuldades. Atravessamos algumas gretas, e ao chegar em uma parede mais vertical dei a segurança para José guiar e colocar os parafusos de gelo para depois armar uma via em top rope. Depois disso foi nossa vez de experimentar a escalada em gelo. Um sonho que se realizava naquele momento, depois de tantas histórias lidas relatando aquele ambiente. A cada golpe da piqueta o gelo se espatifava e caia sobre a jaqueta impermeável, logo depois a piqueta entalada tinha que ser retirada com um leve balanço para os lados e para cima. Um movimento que, junto com o crampon fincando no gelo chute a chute, era repetido até o final da via.
 
Escalamos algumas vezes por rotas diferentes; as pequenas gretas tornavam a paisagem ainda mais interessante. Logo que o tempo fechou fomos embora, e assim deixamos o glaciar com uma vontade de quero mais, até logo Huayna Potosi.
 
  Seguimos viagem em direção ao Salar de Uyuni onde subiríamos o Vulcão Tunupa, 5 321m. No caminho paramos em Oruro, capital folclórica da Bolívia, uma cidade grande e boa para reabastecer suprimentos. Por lá acabamos fazendo um amigo, Jose Luis Magno, presidente do Clube de Montanhismo Sajama, que nos apresentou a escalada em rocha do local, Rumi Campana e Canon Colorado, com vias de até de 8º grau francês.
 
Em seguida fomos para Salinas de Garci Mendoza, um pequeno povoado, com muitas riquezas arqueológicas, a beira do Salar de Uyuni, ao norte da famosa cidade com o mesmo nome, onde pegamos uma carona até a base do vulcão Tunupa.
 
Já era por do sol quando terminamos de armar nosso acampamento nas ruínas de uma antiga casa de pedras. Na madrugada do ataque a Gabriela passou mal e vomitou muito, tivemos que abortar na hora. Fiz os primeiros socorros para que ela pudesse se estabilizar e andar até o local mais propício para o resgate. Desarmei o acampamento e com muita dificuldade caminhamos de volta o trecho de 2 km até a estrada de terra próxima, onde ela ficou esperando com os equipamentos, enquanto caminhei aproximadamente 4 km até o povoado mais próximo. Chegando lá pedi ajuda aos moradores locais, que foram muito solícitos, e para minha surpresa em poucos minutos chegou uma ambulância. Fomos até o local onde estava Gabriela, lá mesmo eles a examinaram e aplicaram uma injeção para conter o líquido. Diagnóstico: infecção intestinal. Deram uma cartela de remédios para combater a infecção, soro e foram embora. 
 
Agora estávamos em um pequeno povoado acompanhado de algumas Cholas, mulheres com roupas típicas das regiões camponesas, esperando uma carona de volta a Oruro; precisávamos descansar pois ainda teríamos que percorrer mais de 700 km por terra até Arequipa, Peru.
 
Tentativa do Chachani
 
A cidade de Arequipa é famosa por estar próxima a muitos vulcões, o Chachani, 6075 m e o Misti, 5822 m, ainda ativo, podem ser avistados de toda a cidade. Um pouco mais afastado existem outros vulcões que estão constantemente em atividade, o Ubinas, 5672 m, ao leste e o Sabancaya, 5976 m, ao oeste, bem próximo a ele o Ampato com 6288 m.
 
A cidade está a 2300 m o que não é muito interessante para a aclimatação, mas foi bom para descansar após vários dias acima dos 3500 m. Depois de 2 dias preparando os recursos e pesquisando preços de transporte até a base da montanha, contratamos um motorista que nos levaria e buscaria na base do chachani.
 
Na manhã do dia 24, por volta das 5 da manhã, já estávamos no veículo 4×4 que nos deixaria a 5000 metros de altitude para iniciarmos a caminhada até o campo base do Chachani. Apenas 2 km de caminhada e um ganho positivo de 200 m foi uma trilha tranquila e fizemos ela com calma, desfrutando a paisagem vulcânica de colorações exuberantes. 
 
Chegando ao campo base a 5200 m, estávamos sozinhos na montanha. Fizemos nossas oferendas a Pacha Mama agradecendo e pedindo permissão para ingressar na montanha, assim depositamos debaixo de uma pilha de pedras um punhado de folhas de coca e três sementes da mesma.
 
Eram 4 da tarde quando começou a nevar mais pesado, já previsto pelo mountain forecast: 10cm de neve. Nos recolhemos para a barraca e por volta das 6 da tarde fizemos nossa ceia de natal, arroz com lentilha preparados no dia anterior, e um chocolate. 
 
Até este ponto estávamos nos sentindo bem, mas no meio da noite acordei com muita dor de cabeça e só consegui descansar um pouco depois de tomar o comprimido de bufferin.
As 4:30 da manhã o alarme dispara, era hora de fazer o ataque. Gabriela estava bem disposta e havia dormido bem sem nenhum sintoma da altitude e eu estava me sentindo melhor.
 
Preparamos um chá,  comemos algo e então começamos a caminhar. Por volta das 5 manhã  faziam -7 graus no campo base. A progressão começou bem lenta fizemos algumas paradas. As 7 da manhã o sol já estava esquentando bem, o que nos obrigou tirar uma camada da roupa. O tempo estava parcialmente encoberto, quando a neblina chegava caiam alguns flocos de neve e a temperatura baixava. 
 
Estavamos a aproximadamente  5800m quando Gabriela começou a se queixar de cansaço, descansamos e continuamos até 5900m, na crista onde já havia vista para o marco do cume. Foi onde decidimos abortar devido às condições da Gabriela. Ela estava bem, não sentia nenhum sintoma grave da altitude além do cansaço, mas tomamos esta decisão difícil para não correr riscos.
 
Ingerimos o gel de carboidrato e iniciamos a descida, o que havia demorado 3 horas foi feito em 45 minutos, logo estávamos de volta ao campo base, desarmamos tudo e fomos embora. Apesar de não termos chegado ao cume a experiência foi de grande valor, com certeza aproveitamos bem a estadia na montanha desfrutando cada momento.
 
Redenção no Nevado Mateo
 
Depois de abortar o cume no Chachani, estávamos buscando outra oportunidade para nos redimir, e nosso próximo destino era o lugar certo para isso, Huaraz distante 1400 km de Arequipa. 
Huaraz é a capital peruana do montanhismo, devido a localização próxima à Cordilheira Blanca, proporciona fácil acesso a diversas montanhas com mais de 6000m. Inclusive a mais alta do peru o Huascaran, 6768m, que dá nome ao parque.
 
Tínhamos em mente o Nevado Pisco 5750m, uma montanha mais baixa que o Chachani porém com mais dificuldade técnica, o que seria interessante para conhecer melhor a progressão em glaciar e escalada em  gelo. 
 
Nos primeiros dias em Huaraz visitamos agências especializadas em montanhismo, para conversar com os guias e viabilizar a logística de transporte e aluguel de equipamentos técnicos para neve. Aproveitamaos também para conhecer o local de escalada em rocha mais próximo da cidade, Los Olivos, com vias do 4º ao 7º grau francês.
 
E foi onde conhecemos nosso amigo Lucas, um aspirante a guia de montanha. Depois de alguma conversa ele nos convenceu a optar pelo Nevado Mateo ao invés do Pisco, devido a facilidade de acesso e tempo necessário para a montanha. Outro fator importante para essa decisão era que estávamos com pouco dinheiro, o que inclusive fez com que a Gabriela não pudesse participar desta montanha. 
 
O nevado Mateo tem 5150 m, com pouca dificuldade técnica. Apesar das paredes de gelo de até 50 graus de inclinação, é considerado um nevado indicado para sua primeira experiência neste tipo de montanha. Ele é apenas um dos cumes de uma cadeia montanhosa chamada Contrahierbas, e o ponto mais alto desta cadeia está a 5954 m. 
 
Bom, então estava decidido me juntaria a Lucas e Amanda, amiga de Lucas que apareceu na última hora para  para escalar o nevado Mateo. 
 
Partimos de Huaraz as 3 da manhã. São 82 quilômetros até o Túnel Punta Olímpica, onde o carro nos deixa na base da montanha a 4600 m, ganho positivo de 1600 metros em relação a cidade de Huaraz. Já eram 5 da manhã quando iniciamos o ataque. 
 
O tempo estava bom, novamente como o site Moutain Forecast havia previsto. Caminhamos em terreno rochoso durante meia hora até chegarmos no glaciar, onde nos encordamos e colocamos os crampons. Cada vez que meu pé afundava na neve, eu era obrigado a compactá-la, chutando para formar um degrau, permitindo o próximo passo. Tinha certeza que era ali que eu queria estar, naquele ambiente de um branco cintilante, um sentimento pleno tomava conta de mim.
 
Apartir dali em 40 minutos estávamos no cume do nevado Mateo, havia me redimido do último cume abortado. Foi uma ascensão muito fácil devido ao ganho positivo de 500 metros em 1,5 km. Ao chegar no cume nos abraçamos, comemoramos e agradecemos por estar lá. A noroeste avistamos o Chopicalqui com 6354 m, uma montanha mais técnica que demanda acampamento em glaciar. A descida foi rápida e em pouco tempo já estávamos no carro com destino a Huaraz. 
Um dia depois chegamos em Lima, capital do Peru, de onde voltamos para São Paulo. Apesar de não termos logrado todos os cumes estipulados, os imprevistos e pessoas que conhecemos no caminho nos direcionaram para lugares que, apesar de inesperados, nos mostraram que sair do roteiro pode trazer experiências positivas e surpreendentes.
 
Espero que esse artigo sirva  como incentivo para aqueles que como eu sonhava em conhecer os Andes e realizar um projeto em alta montanha, e gostaria também de agradecer ao Pedro Hauck pelo espaço, foi muito interessante poder compartilhar nossa história.
 
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