O X da Questão

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Ao descer pela BR 277, de Curitiba para Paranaguá na reta que antecede os viadutos, da paisagem se destaca uma sugestiva montanha que muito interessou o Giancarlo (Cover) Castanharo no início do ano dois mil.

Organizou uma expedição com o  amigo Emerson (Simepar) Stange adentrando na mata pelo leito encachoeirado do Rio Caiurú em meados de abril do mesmo ano. Superando as dificuldades já esperadas alcançaram as nascentes para em seguida penetrar nos campos e conquistar o cume todo encoberto pela característica nevoa da região. Sem nenhum visual do entorno, batizaram o morro com o nome de Pilão-de-Pedra (1363m) em homenagem a lendária formação rochosa que identificava o histórico povoado de Arraial Grande situado não muito distante dali.

Inconformado com a falta de visual fechou uma segunda expedição em companhia do Alexandre (Alex) Pacheco, Emerson (Simepar) Stange e do Maurício Scheer investindo pela mesma rota para do cume obter panorâmicas maravilhosas. Ao leste, se erguendo altiva, uma montanha fantástica que de imediato se tornou o próximo e desejado objetivo. No meio do caminho se destacava uma elevação coberta por campos que certamente forneceria a chave para a montanha mágica e imediatamente largaram suas tralhas no cume do Pilão e partiram para o ataque deste privilegiado posto de observação.

Descendo as encostas até o fundo do selado escutam assombrados uma observação do Giancarlo (Cover) Castanharo: “Vocês não vão acreditar, mas encontrei uma trilha!”. De fato uma boa trilha acompanha um formoso riacho e por ela avançam até um primeiro mirante com o objetivo do dia pouco distante, à esquerda, e a misteriosa trilha continuando para sudeste. Chegando a este cume denominaram de 1º de Maio (1333m) em referência a data da conquista e de lá puderam traçar uma possível rota para a futura investida ao pico desconhecido.

Coube ao Emerson (Simepar) e ao Fabiano, ainda mordidos de curiosidade, desvendar os segredos da Trilha Fantasma no mês seguinte. Subiram pela rota conhecida e acamparam nos campos do 1º de Maio para no dia seguinte retornar explorando as curvas da inesperada trilha e comprovar as suspeitas de que nascia junto ao Viaduto dos Padres.

Quatro meses se passaram e em outubro estavam prontos para realizar a conquista. O Emerson (Simepar) e o Fabiano guiam os irmãos Giancarlo (Cover) e Gustavo (Tavinho) com o (Alex) Pacheco pela Trilha Fantasma até o 1º de Maio onde fazem uma breve parada antes de retornar a trilha e seguir no rumo sudeste até um bosque fantasmagórico. Do alto de uma arvore azimutam 60º e abandonam a trilha para avançar a nordeste até o selado e subir as encostas desviando das gretas e dos paredões até encontrar água antes de seguir para o cume. Acampamento armado nos campos a pouca distância das pedreiras e partiram para a comemoração com o vinho branco da mochila do Pacheco. Estava conquistado o Canhemborá (1381m), nome tomado de empréstimo de um rio que nasce nas proximidades.

Tudo perfeito até junho de 2004 quando o Marcelo Brotto e o Alfredo Marcio dos Reis, seguindo as instruções do (Alex) Pacheco, acampam no alto do 1º de Maio para na manhã seguinte partirem de ataque ao Canhemborá e fuçando no cume descobrem um pequeno tubinho de alumínio estampado com a marca AGFA. Embalagem antiga de filmes fotográficos do tempo do P&B. Dentro uma folha de caderno bem dobrada e a lápis uma mensagem escrita:

“Pico X, conquistado em 25-9-66 na 3ª aproximação após 3 domingos consecutivos de lutas. Componentes: Enio C. Santos, Nelson (Estaca) Kaeher, Waldemar (Gavião) Buecken, René O. Pugsley, Arlindo Renato Toso e Adyr (Pintinho) Krohnland Pinto. Escalada em 6,50 h – Este pico foi alcançado a partir do riacho (Rio dos Padres) existente no cotovelo da auto-estrada Curitiba-Paranaguá. Azimute: 140º ”.

Abriu-se o túnel do tempo levando embora as conquistas inéditas na Serra da Igreja e muito provavelmente o Pilão-de-Pedra nada mais era do que a montanha escalada pelo Henrique Paulo (Vitamina) Schmidlin e o Fernando (Cipó) Andrzejewski quando encontraram um palanque de cerca fincado nos campos e obtiveram a primeira visão do Pico X depois usada para distrair o espírito competitivo do Waldemar (Gavião) Buecken enquanto abriam a rota oeste na Torre-da-Prata.

Em nossa primeira investida (https://altamontanha.com/Colunas/3881/20-de-abril-no-1o-de-maio) subimos pela Trilha Fantasma sem outras preocupações além de reconhecer o terreno e traçar uma estratégia avançando pela face nordeste, oposta a usada nas expedições anteriores conhecidas, e atingimos o já referido bosque depois de três horas no facão. Outra investida foi organizada alguns meses depois onde me acompanharam o João (Johny) Carlos de Andrade e Silva, Natan Fabrício Cordeiro de Lima, Jurandir Constantino e o Vinicius Ribeiro. Subimos pelo barro com tempo feio, chuva fraca e debaixo das árvores o ato de caminhar se tornou agradável, mas nos cumes não se via absolutamente nada em meio a garoa forte e fria. Dia excelente para esquentar o corpo num cabo de facão e do bosque avançamos pela crista orientados apenas por lembranças e puro instinto.

Carta, bússola e GPS são coisas para amador e por falta de comunicação prévia cada um imaginou que o outro levaria alguma destas tralhas inúteis, mas no meio da tarde comprovamos que estávamos no mato sem os cachorros. A controvérsia apareceu quando insisti para seguir descendo por uma calha d’água e o Vinicius subiu a encosta oposta para do outro lado encontrar nova descida d’água. Na dúvida cega é sempre melhor sentar no barro, comer o que sobrou no fundo das mochilas e falar mal dos amigos ausentes.

Com meus joelhos já incomodando na subida, a descida foi um tormento e os três magrões despencaram morro abaixo deixando um rastro de derrapadas no barro. Só o Natan ficou para trás, me acompanhando, e chegamos 45 minutos depois para ver os apressados escondidos debaixo do viaduto, tiritando de frio, mas considerando ainda pequeno o castigo, enquanto trocávamos as roupas na escuridão gelada, uma árvore próxima do carro despenca sob o peso da chuva fazendo um strike de peão onde só os fortes permaneceram impassíveis a espera da pancada.

No início de novembro o clima já é bastante quente e as butucas ficam alucinadas para encontrar uma vítima, então é hora de apressar o encerramento dos projetos pendentes e na falta de melhor companhia, o Natan me ligou marcando com um X o oitavo dia. Prontificaram-se também o Vinicius Ribeiro, Rodrigo (Xandão) Barbosa e a Rossana Reis para fechar este 2013. Pelo 1º de Maio passamos batido e da primeira descida d’água bastou poucos metros para alcançar o selado e iniciar a subida final.

A vegetação se mostrou amigável pela face sudoeste facilitando o progresso em direção a uma fratura no paredão monolítico detectada anteriormente, aos poucos apareceram enormes patacões e algumas poças de água suja entre gretas, muitas pegadas de animais e chegamos aos pés da muralha. Uma fresta barrenta povoada por caraguatás gigantes permitiu ganhar o topo do degrau para nos premiar com vento fresco e visual desimpedido, mas também com quiçaça odiosa e os facões comeram soltos na macega dura e retorcida. A coluna se movimenta desviando de gretas e mergulhando em rasas depressões para encontrar mais macega à frente.

O cume se esconde por detrás da linha do horizonte, mas conferimos sua proximidade pela comparação com o destacado esporão à esquerda e finalmente pisamos no que de longe parecia um belo gramado, mas agora se mostrava uma espessa camada de liquens pontilhada por fios de capim sobre a superfície maciça da pedra. Subida íngreme vencida em curtos zig-zags e nova depressão coberta de quiçaça se atravessa no caminho. Já cansados de facão varamos o mato no peito para despontar um tanto estropiados na elevação seguinte onde no chão ainda resistiam as marcas de acampamentos passados.

Desanimador, o cume se ergue a vinte metros cercado por um mar de profundas gretas povoadas de macega infernal, mas como nem só queijo sai ralado é por ali mesmo que nos enfiamos para enfim descansar catando carrapatos com as pernas balançando no poleiro dos urubus. A estrada distante brilhando sob o sol da tarde por detrás do Touca-de-Duende e todo o horizonte coberto de morros e matas verdejantes, algumas clareiras perdidas nos confins de Castelhanos e o fundão da baía de Guaratuba.

Encravada numa fresta estava uma caixa de cume metálica, coberta de limo e que a muito custo foi desalojada com o uso de quatro mãos, aos pares e tombou de lado despejando sua carga apodrecida no fundo da greta estreita. Lá se foi um saco de supermercado, um maço de velas para pagar promessas e o histórico tubinho de alumínio abandonado em 1966 com seu recado a posteridade. Lá se enfiou também o Natan para resgatar tais preciosidades e devolver a luz uma papa verde e gosmenta um dia chamada de caderno.

Missão cumprida, agora é só voltar para casa, deitar pelado em cima de um lençol branco e pedir para a mulher catar os carrapatos com uma pinça.

 

 

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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