Arapongas, 10 anos depois

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O convite do Rodrigo para rever o Wilson no cume do Arapongas me pegou desprevenido e fora da forma física ideal para o tamanho da empreitada. A montanha não é das mais altas, mas a aproximação é longa e o declive cruel, sem entrar no mérito da vegetação que a protege. Mas foi exatamente esta vegetação infernal que mais pesou na decisão de retornar ao Arapongas dez anos após pisarmos seu cume pela primeira vez em 2006.

Ano 2016: Julio Cesar Fiori, Mauro Gomes Rodbard, Moisés Lima, Paulo Marinho e Rodrigo Ricetti.
 
Alguns dias antes havia me comprometido com a Maria (Chica) Cristina Hartmann em avaliar o desempenho e o conforto de um novo design de polainas e propor melhorias conforme o caso. Estas polainas fabricadas artesanalmente com a marca Alpamayo se propõe a resolver alguns dos problemas que mais me incomodam e ainda apresentarem vantagens multiuso para o produto. As concorrentes importadas são desenhadas principalmente para proteger a zona de encontro entre as botas e as barras das calças em solos pedregosos impedindo que a neve penetre pelas meias e congele os pés. As nacionais repetem estes conceitos e não apresentam soluções específicas para o montanhismo tropical que praticamos. Geralmente se fixam ao solado das botas com tirantes e fivelas que enroscam em paus e raízes abundantes nas matas. De tanto levar estes trancos acabam por também se desprender dos cadarços e o atrito com a vegetação fechada se encarrega de deslocá-las do lugar. Por se dedicar a ambientes frios e nevados não levam em consideração a transpiração que fica presa no emborrachado, molhadas escorregam pelas pernas para se empapuçar sobre os tornozelos. 
 
O resultado é que as meias ficam molhadas com o próprio suor, as botas cheias de gravetos e pedrinhas, os cadarços se desamarram com freqüência e amontoadas nos tornozelos em nada protegem as canelas. Aqui nos trópicos andamos com folhas mortas na altura dos tornozelos, tropeçando em raízes, escalaminhando com joelhos e canelas por cima ou por baixo de troncos de árvores e pedras cobertas de musgo, chutando aranha armadeira, escorpiões e jararacas. Polainas brochantes que necessitam ajustes a cada quilômetro mais atrapalham do que ajudam nesta selva quente e úmida que freqüentamos. 
 
Estas polainas da Alpamayo são fabricadas com duas camadas de cordura revestindo o miolo semi rígido de polipropileno dividido em cinco seções por cortes anatômicos que se adaptam perfeitamente ao contorno das canelas. Esta "blindagem" leve e flexível faz toda a diferença. Mantém a integridade da forma sob quaisquer circunstâncias, impedindo que desabe sobre os tornozelos. Auxiliada pelo gancho frontal fixado aos cadarços impede que o conjunto gire e dispensa aquelas incômodas fivelas e tiras sob os solados. Sua resistência mecânica protege as canelas dos muitos enroscos com taquaras, cipós, unhas-de-gato e amortizam batidas em pedras, raízes e paus. A forma anatômica evita que pequenas pedras e gravetos adentrem pelos canos das botas, revestem as línguas e os cadarços evitando que se desatem durante a caminhada e prolongam a vida útil do equipamento. 
 
Adicionalmente podem ser eficazes nos ataques de cobras. Serpentes peçonhentas são abundantes na mata atlântica com destaque para as corais, jararacas e jararacuçus. Os raros acidentes envolvendo picadas das corais, aranhas e escorpiões se concentram nas coxas e nádegas porque a vítima literalmente senta sobre o animal. Isto pode ser minimizado retirando-se uma das polainas e usando-a para forrar o chão, troncos ou pedras antes de encostar a bunda. As jararacas, sempre muito bem camufladas, apesar de pouco agressivas se irritam quando pisadas e desferem rápido ataque lateral geralmente abaixo dos joelhos onde as panturrilhas estão bem protegidas pelas polainas. Com as jararacuçus que preferem habitar áreas úmidas como as margens dos riachos, maiores e extremamente agressivas apesar de mais raras, o problema é o ataque frontal que atinge diretamente as canelas e também encontra boa proteção.
 
Finalmente num bivaque de emergência pode ser usado como isolante térmico ao se unir as duas partes pelo zíper plástico de fechamento. Certamente não será um pernoite para ser comemorado, mas é melhor que morrer com hipotermia. 
 
As sete horas da manhã o Mauro e o Rodrigo já haviam estacionado o carro na Casa Garber e se juntado a mim e ao Paulo no alto da serra esperando pelo Moisés. Descemos juntos até o Marco 22 onde vesti as polainas Alpamayo e despencamos serra abaixo em direção ao Rio Mãe Catira. Tudo começou uma semana antes quando o Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin me colocou em contato com o Rodrigo Ricetti que lhe comunicou ter alcançado, junto ao Mauro, o cume do Arapongas em janeiro deste mesmo ano. 
 
Na trilha barrenta foi nos contando toda a epopéia iniciada em 2012 depois de ver algumas fotos da Rossana Reis postadas na rede social. Naquela ocasião estávamos num grupo grande e eclético que contava com o pessoal dos NNM, a Rossana, o Moisés, o Elcio Douglas, o Jurandir, o Jorge Soto, muita comida boa e cachaça com catáia. Na última hora resolvi desviar da cachoeira e escalar o Dique de Diabásio por rota desconhecida. O tempo mudou para chuva  e o desgaste foi tanto que optamos por bivacar num bosque aos pés da montanha. Só o Elcio e o Jurandir insistiram em subir para o cume onde passaram uma noite de cão enquanto fazíamos a festa lá embaixo.
 
No final do ano seguinte começaram as explorações na base da tentativa e erro pelas trilhas da Graciosa. Na primeira tentativa tomaram uma bifurcação a direita que os levou até a Cachoeira das Gêmeas num golpe de sorte, na segunda rodaram em círculos como muitas vezes acontece por alí e aprenderam a respeitar aquela região, mas tanto teimaram que no mesmo dia alcançaram o Rio Mãe Catira no fundo da grota. Noutra tentativa feliz acabaram escalando o Chapéu-de-Sol e finalmente com o auxílio do Mildo Jr. alcançaram a Cachoeira da Santa, mas evitaram a escalada na tentativa de encontrar rotas alternativas. Em meados de maio de 2015 finalmente se convenceram de que a Cachoeira insistia em fazer parte da rota quando receberam "novas" informações do Nelson (Farofa) Penteado Alves na forma de velhos relatos publicados na Gazetinha. Mais seis excursões seriam necessárias para atingir o cume.
 
No alto da cachoeira paramos para o primeiro lanche, calor sufocante e até a água do rio estava quente. Venho num regime atroz para perder um pouco da barriga e naquela altura do campeonato já me sentia muito mal com a pressão baixando consideravelmente. Aquela terrível sensação de pneu murcho, cansaço e sudorese desenfreada. Dia longo pela frente e avançamos pulando pedra rio acima pelo afluente a esquerda até um pequeno riacho que desce da montanha. Pouco subimos por ele, saindo reto numa primeira curva acentuada. Vencido um curto trecho de bosque iniciamos a escalaminhada pelas encostas barrentas, agarrados a troncos e cipós, apoiados em raízes aéreas e tremulantes, contornando paredões de pedra gotejantes por entre enormes matacões destacados da montanha. De pé, agachados, rastejando ou de joelhos vamos vencendo cada obstáculo dentro da sauna quente e úmida da face sudoeste coberta pela majestosa floresta. Lindos e inóspitos recantos vão se sucedendo numa seqüência sem fim, sem descanso no terreno muito inclinado em meio às folhas mortas, troncos apodrecidos, bambus e muito barro.
 
Meu desgaste é crescente e as paradas para respirar se tornam freqüentes e cada vez mais próximas. O corpo já não suporta mais o esforço e só a força de vontade ainda resiste. Seis horas e meia andando dentro da sauna cobram seu preço. As 14h30m alcançamos o último degrau antes do cume e avançamos pela quiçaça baixa e retorcida cozinhando debaixo do sol. Anima saber que dentro do bosque a frente existe um refrescante riacho para um merecido descanso junto ao frescor da água. Comuniquei então que iria ficar por ali e tirar uma soneca enquanto eles subiam este último trecho. Inicialmente ninguém contestou “minha decisão”, o Paulo e o Moisés já me conhecendo de muitos carnavais nem deram pelota, o Mauro ficou na dele, mas com o tempo passando foi o Rodrigo que começou a argumentar.
– São apenas mais quinze ou vinte minutos de caminhada – insistia – vale um pouco mais de esforço.
 
Como se eu não soubesse tudo o que tinha pela frente naqueles últimos trezentos metros onde teríamos que vencer um desnível de aproximadamente noventa metros numa vegetação infernal, ressecada pelo sol inclemente. Mas já recuperado com um pouco de chocolate circulando pelas artérias chega à hora de partir para o cume. Larguei as tralhas à beira do riacho e pernas pra que te quero morro acima. No cume encontramos o tubo de PVC que instalaram em janeiro, mas nada do Wilson e insisti em procurá-lo. O Mauro e seu facão seguiram para um lado, eu para o outro e em poucos minutos encontramos o velho amarrado a um galho com a pança cheia d’água. Barbudo e com seu nariz de vela, toda preta, estava sem os óculos escuros naquele sol ofuscante. Procuramos, sem sucesso, os óculos pelo chão. Mais um enigma no Arapongas, quem roubou os óculos do Wilson? Coisa de marginal!
 
O Rodrigo mais que todos exigia o esclarecimento de outro enigma, muito mais picante e finalmente me dei por vencido e escrevi um nome na caderneta. Assombrado assegurou que nunca mais andará pela serra sem uma boa lata de sardinhas na mochila. Nunca se sabe o que a sorte nos revelará adiante, então é melhor estar prevenido.
 
Hora de descer que as nuvens já começaram a subir a serra e a caminhada vai ser longa. Mergulhamos grota abaixo agora cravando os calcanhares no barro, nos agarrando em galhos e pedras como orangotangos. Depois de uma hora e meia rolando no barro chegamos à cabeceira da Cachoeira da Santa com muita luz do dia ainda, mas também sem pressa porque em seguida sairíamos do rio e a noite em breve nos alcançaria dentro da floresta.
 
Paramos aos pés da cachoeira para admirá-la melhor enquanto o Moisés cruzava o rio e caia de peito sobre uma pedra. Lamentará esta distração por muitos dias ainda, mas o cidadão não se entrega fácil e nem tinha alternativa naquele lugar. Seguiu caminhando com dores excruciantes no tórax enquanto o Paulo sofria de dores no cóccix depois de uma sentada violenta e imprevista. Subindo em paralelo ao Rio Mãe Catira foi minha vez de me esborrachar no chão feito mamão maduro, mas por sorte cai de prancha no barro macio, sem maiores conseqüências. 
 
O dia estava longe de acabar e o Moisés com o Mauro começaram a adiantar-se após cruzar o último riacho com a intenção de resgatar o carro no alto da serra e nem andamos duzentos metros quando começamos a furar teias de aranha e por mais que procurássemos não mais encontramos pegadas subindo a trilha. Isto nos preocupou bastante, pois nos certificava que tinham tomado a trilha errada em alguma bifurcação abaixo e por mais que tentássemos não conseguíamos comunicação por rádio. Mas continuamos em frente confiando na capacidade de orientação e cabeça fria dos marmanjos.
 
A neblina se condensava nas copas das árvores e já pingava em nossas cabeças fazendo cair a temperatura e com isto me sentia cada vez melhor e mais forte. Quando comecei a gostar da caminhada foi a vez do Paulo descobrir que tinha perdido o GPS e voltou pela trilha uns vinte minutos procurando pelo aparelho. O Rodrigo foi subindo sozinho enquanto fiquei sentado no escuro para poupar as baterias da lanterna. A água pingando das copas e escorrendo pelas folhas produziam ruídos fantasmagóricos. Por um momento pareciam passos leves sobre as folhas caídas e depois o silêncio. Um galho despencava a esquerda espantando algum animal furtivo que fugia apressado pela mata. Foi uma longa espera até finalmente o facho de luz da lanterna do Paulo brilhar muito distante. Retornou quando descobriu o GPS pendurado na parte de trás da mochila, menos mal. Deslocou-se para fora da vista com algum movimento brusco no momento em que uma grande jararaca nos enfrentou no meio da trilha. 
 
O bicho estava nervoso e desperdicei uma boa oportunidade para testar as novas polainas no quesito picada de cobra. Preferi confiar na teoria sem bancar a cobaia que de resto passaram com louvor nas provas de resistência e conforto, tanto que só lembrei que as estava usando na hora de me livrar da sujeira e entrar no carro.
 
 
Estrada da Graciosa, Marco 22, Trilha da Santinha, Rio Mãe Catira, Cachoeira da Santa e Arapongas ou Ibitira Mirim.
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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