Sertãozinho do Guapituba

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Quando estive a cerca de um ano no “Parque Natural Guapituba”, mal sabia que a valiosa dica sussurrada pelo seu guardião local se revelaria como uma grata e oportuna surpresa prum dia quente de verão. Me refiro ao “Sertãozinho de Guapituba”, rincão natureba localizado entre Ribeirão Pires e Mauá, região da Grande ABC (SP). Repleta de picadas que rasgam morrotes com remanescentes de mata original em meio a muita água, este é meu retorno ao lugar afim de apenas andarilhar por veredas alternativas que ladeiam o setor norte da Represa Billings. Este é o relato de mais um descompromissado bate-volta, com direito a tchibum refrescante, num recanto bucólico que ainda sequer foi descoberto pela muvuca de Paranapiacaba, frequentado apenas por pescadores locais.

Após tranquila viagem desembarquei com a Lau as 10hr na Estação Guapituba, da linha turquesa da CPTM. Tomamos a via asfaltada da frente e tocamos pra esquerda. Deixando o Pq Natural Guapituba e o minúsculo Terminal Rodoviário José  Stela, desviamos pra direita um pouco antes do portal que dá boas vindas a Ribeirão Pires. Dali em diante basta se manter na via principal, sempre sentido a Vila Mercedes, em meio aquele bairro pacato e tranquilo, repleto de igrejas evangélicas e nenhuma construção vertical. Uma charrete cruza nossa frente de repente, aludindo um certo ar interiorano ao lugar. Mas o misto de forró e funk invade nossos ouvidos apenas pra nos lembrar que ainda estamos num bairro periférico e urbanizado de Mauá.
 
Mas não tarda pra abandonar a via palmilhada por outra, que nasce pela esquerda  na quina duma baixada florestada, de modo a cruzar as coloridas construções do CDHU do Jd Primavera, agora pra sudoeste. E é por essa via que nos mantemos até o final, onde logo as vistas se abrem ao sul permitindo apreciar a região que sugere ser nosso destino: uma sucessão de colinas verdejantes e a ponta dum reflexo sutil do céu azul dum espelho dágua. O tempo oscilava entre nublado claro com algumas janelas de bom tempo, mas a promessa e garantia geral era de que se mantivesse quente e abafado.
 
No final da rua trombamos com a entrada do que parece um parque bem chique (mas na verdade é um cemitério), onde desviamos na direção dos casebres amontoados do Jd Vitória Régia. Ali, um discreto vão na mureta marca o acesso a trilha principal. Pronto, não tem mais erro. Ali basta se manter sempre no carreiro principal e ignorar qualquer saída lateral, que neste inicio alterna cascalho, chão de terra e restos de entulho. Dando então as costas ao borburinho urbanoide do precário Jd Vitória Regia pra trás, mergulhamos na morraria forrada de pasto, capim, pinheiros e eucaliptos.
 
Descendo suavemente, o caminho começa tocando pra leste, mas depois de desviar pro sul termina descendo indefinidamente pra sudoeste. Conforme se avança, o corte vertical na encosta revela dali ter sido já uma antiga estrada. A mata no fundo dos vales é secundária, enquanto as encostas das colinas em volta revelam-se descampados de pasto onde uma ou outra árvore reina solitária. Como é de se esperar, as baixadas são tremendamente alagadiças e não raramente tomadas de lama e brejo, além de cercadas por um túnel de vegetação que se resume a emaranhados de aguapés e lírios-do-brejo.
 
Numa bifurcação em “V”, logo adiante, tomamos o ramo que nos mantem sempre na direção sul, indo sempre em linha reta, com pouca variação de direção. Bordejando sinuosamente a morraria forrada de pasto, reparo que a vereda alterna chão de terra e, isto mesmo, areia! Mas conforme se avança, a mata secundária começa a nos envolver com generosa e refrescante sombra. O som de veículos transitando aumenta no ouvido sinaliza a proximidade com a vertente sul do Rodoanel Mário Covas, Trecho Leste (SP-021).
 
Num piscar de olhos desembocamos num descampado quase as margens do asfalto supracitado, onde apenas o posto de pedágio eleva-se na paisagem. O trilho felizmente se alarga num estradão de pedras que passa sob a rodovia na forma dum largo e espaçoso túnel. Este túnel, no entanto, enverniza meu palpite da vereda ter sido outrora uma estrada hoje em desuso. Pixado e com dejetos de cavalinhos por toda parte, observo no chão marcas de bikes ao largo dele, sinal que os adeptos das magrelas já conhecem estas rotas do Guapituba faz tempo.
 
Do outro lado do túnel tropeçamos com um precário estradão de pedras bifurcando em duas direções, ambas indo de encontro á morraria pelada salpicada de capões de mata, porém em direções distintas. Tendo estudado previamente o trajeto deduzi que  as rotas a minha frente resultavam  num circuito, ou seja, se entrasse numa saia pela outra. Optei então por experimentar a  vertente da esquerda e assim foi.
 
Mergulhamos então na vereda da esquerda praticamente acompanhando á distancia o asfalto, sentido leste. A minha direita bordejo o sopé da morraria coberta por reflorestamento de eucaliptos enquanto a esquerda vou ladeando a extensa área de várzea coberta de mato que nos separa do Rodoanel. O caminho é incrivelmente bem batido, havendo eventualmente mato tombado ou troncos no meio da trilha, mas de fácil transposição. Cruzo dois córregos neste inicio de pernada, sendo o segundo generosamente agraciado com um pocinho natureba, rente a trilha. Ele serve inclusive pra coletar o precioso liquido, caso esteja escasso nos cantis.
 
Mas após chapinhar por alguns brejos, cruzar um samambaial queimado, desviar duma vasta área de várzea e trombar com uma discreta bica na encosta, nossa rota começa a desviar pra sudeste, onde já avisto de longe a pontinha reluzente dum braço minúsculo da Represa Billings. Assim, num piscar de olhos desembocamos quase as margens do espelho dágua do reservatório acima citado. O braço da Billings seguia sinuoso pra oeste, cercado de mata abundante, embora suas margens estivessem de largura considerável e cobertas de capim e aguapés por conta da estiagem dos meses anteriores.
Assustando uma garça que até então meditava rente á agua, a picada desvia abruptamente pro sul e passa simplesmente a acompanhar as margens da represa, ora próximo ora distante. 
 
Vários mocós com sinal de fogueira surgem no trajeto até que alcanço uma área descampada provavelmente de pesca, dado o pouco lixo e diversos baldes contendo restos de crustáceos e ossadas de peixe. Uma pausa básica pra clicar a bela panorâmica que se descortina a sudoeste, privilegiando a represa que se alarga o suficiente no horizonte, cercada de muito verde. Vestigios de civilidade só são vistos de relance, pontilhados por algumas poucas chácaras ou do risco alvo da Rod. Indio-Tibiriça (SP-031) na outra margem, longe ao sul.
 
A vereda então abandona a margem da represa pra adentrar na direção oeste, certamente pra evitar um trecho alagadiço da margem. A vereda terrivelmente erodida e enlameada reforça minha suposição, mas a exuberância e frescor da mata tornam a mudança provisória da paisagem mais interessante. Mas a rota não tarda a voltar a acompanhar novamente o espelho dágua pela margem, sempre pro sul e com algum mato crescido na frente, em suaves sobes e desces numa alta encosta forrada dum bonito bosque de eucaliptos. Esse ritmo se mantém durante um bom tempo até que a direção desvia lentamente pra sudoeste, sempre tangenciando a beirada da represa. Ao mesmo tempo, esta variação sutil de rota nos brinda com novas perspectivas da Billings, cujo espelho dágua reflete subitamente um céu límpido e isento de qualquer interferência atmosférica. 
 
Mas ao atingir um setor onde a vereda novamente adentra na mata pra desviar de outro setor alagadiço, reparamos numa minúscula e estreita prainha lacustre, escondida numa encosta inclinada. Foi ali onde encontramos as únicas pessoas do rolê, no caso, um pescador e seus dois filhos pequenos. O tiozinho voltava reclamando não ter pego nada pois “..agora tava ruim pra pegar tilápia e carpa, pois é época de piracema que dá no outro lado da represa..”. E não era pra menos, pois ao longe, do outro lado num outro estreito braço da represa, podia-se avistar uma dupla de jovens jogando rede da água.
 
Nos despedimos do tiozinho e ficamos ali, descansando e mastigando o lanche das mochilas. Mas claro que antes nos brindamos com um refrescante mergulho nas águas da Billings. Horário? Pouco depois do meio-dia e meio! Durante o descanso pudemos apreciar bem a paisagem em volta. O enorme espelho dágua refletindo o céu opaco claro se esticava de ponta a ponta, e sentados naquela pequena península pudemos distinguir perfeitamente o Sitio do Francês e o “Camping”, nome singelo pelo qual é conhecido o “Parque Municipal Milton de Moraes”, ao sul na outra margem da água.
 
Revigorados, retomamos a continuidade da picada adentrando novamente na mata conforme previsto, mas desta vez ganhando altitude como se estivesse indo de encontro ao topo daquele setor. Mas diferentemente do que imaginei, a vereda não nos devolveu á margem da represa e se manteve naquele miolo de espaçado reflorestamento tocando pra noroeste. Na descida pro outro lado do serrote tocamos por uma vereda quase que totalmente em linha reta, ao mesmo tempo em que a vegetação se tornava mais espessa, composta de mata ciliar e muito lírio-do-brejo caindo no caminho, conforme perdiamos altitude. A descida é feita com cautela pois o chão se mostra terrivelmente liso pelo esverdeado musgo que besunta a superfície. Bifurcações surgem mas me mantenho sempre na principal, ou seja, pra noroeste. A intuição aqui é obedecer a bússola, mas deduzi que aquela outra vertente me levasse num setor da margem, pelo rascunho de croqui que carregava no bolso.
 
Sempre na direção noroeste a vereda cruza uma decrépita pinguela onde é possível coletar água potável proveniente dum estreito vale ao norte. Dali nossa rota prossegue inipterrupta por bom tempo sem variação alguma de direção, num carreiro tão largo quanto enlameado, mas cercado de exuberante e espessa vegetação. Mas é aqui que surge uma bifurcação importante, novamente em “V”. Ambas terminam no mesmo destino, o trajeto que é apenas diferente. 
 
A vertente da esquerda desce o vale e toca pro norte, enquanto a da direita toca na mesma direção mas sem perda alguma de altitude, sempre em nível e em linha reta, acompanhando a encosta da morraria que se segue. Opto pela segunda opção, que me era desconhecida até então. E lá vamos nós, caminhando tranquilamente naquele belo recanto, onde o Sol teima espiar pelas frestas do arvoredo em volta. O silêncio torna-se a trilha sonora permanente do rolê, rompido unicamente pelos eventuais sons da mata, que se resumem ao farvalhar do alto da floresta, o canto metálico duma araponga ou o rumorejo de água no fundo do vale ao lado. 
 
Conforme previsto, a picada nos devolve á rota principal, emerge da floresta e passa a bordejar outra vez a encosta de eucaliptos. O caminho vai lentamente se alargando, deixando aparecer vestígios do antigo calçamento de pedras que outrora compunha uma antiga estrada, sinal de estar já próximo dos finalmentes. O som de veículos cada vez mais próximo corrobora minha idéia da proximidade do Rodoanel. 
 
Assim, pouco antes das 15hr, desembocamos na frente da ponte (e pedágio) do Rodoanel, conforme previsto. Dali em diante refizemos todo trajeto do inicio, sem nenhum problema ou coisa que o valha. E em bom tempo, uma vez que o firmamento logo se preencheu de nuvens tão gordas quanto escuras, e finos respingos começaram a fustigar nosso rosto. Pra variar, o retorno correu mais rápido que o previsto e lá pelas 16hr pisávamos outra vez na Estação Guapituba. Claro que antes passamos num mercado de modo a forrar o bucho com um delicioso salgado e molhar a goela com uma cerveja bem gelada.
 
Finalizando, saindo bem cedo de casa é possível realizar o rolê aqui descrito e emendar outras trilhas, no caso, as ramificações que percorrem o setor oeste do “Sertãozinho do Guapituba”, resultando assim numa boa pernada de reconhecimento pela região.  Se preferir, é possível otimizar ainda mais o bate-volta abreviando a chinelada (de pouco mais de meia hora) ao inicio da trilha. Pra isto basta embarcar no busão “041- Vila Mercedes”, que sai do terminal do lado ao Parque Municipal. Fica a seu critério. Esse é o “Sertãozinho do Guapituba”, um local onde é possível contato com a natureza e com grande potencial de opção refrescante prum dia quente de verão. E o melhor, do ladinho do borburinho urbano da maior cidade do Grande ABC e ainda isento da horda turística que palmilha a vila inglesa, sua vizinha mais ilustre.
 
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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