Rodrigo Raineri pretende descer o Everest em Parapente

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Em entrevista concedida ao site Gazeta Esportiva, o montanhanhista paulista Rodrigo Raineri diz que pretende escalar o Monte Everest mais uma vez e ainda descer a montanha de Parapente. Raineri era parceiro de Vitor Negreti, que faleceu na montanha há 5 anos atrás, logo depois se tornar o primeiro brasileiro a subir o Everest sem oxigênio. Confira na íntegra a entrevista:


Por Bruno Ceccon – Gazeta Esportiva

GE.Net – Você já esteve no Everest três vezes e chegou ao cume em 2008. Como surgiu a ideia de voltar à montanha em 2011?
Raineri – Em 2008, o Carlos Eduardo Canellas me procurou querendo escalar o Everest. Ele tinha sofrido um acidente no braço com uma empilhadeira na fábrica dele e, segundo os médicos, as chances de recuperar os movimentos eram pequenas. Mas ele prometeu a si mesmo que não só recuperaria o movimento do braço, como também escalaria o Everest. Se ele queria escalar o Everest, quem era eu para falar que não? Eu o estimulei e fiz uma série de questões: quanto tempo ele teria para dedicar ao projeto, quanto de dinheiro, se ele tinha filhos e determinação. Ele topou a parada e começamos com o trekking ao acampamento base do Aconcágua, curso de escalada em rocha, curso de escalada em gelo, escalada do Huayna Potosi (6.088 metros, na Bolívia), do próprio Aconcágua (6.962 metros, na Argentina, ponto culminante da América do Sul). Ele fez uma serie de expedições para ganhar experiência e tentar o Everest com segurança.

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– Mas, a princípio, você não planejava acompanhá-lo…
Raineri – Eu estava só montando um plano para ele viajar ao Everest. Nessa reta final, ele começou a insistir para eu ir junto e o Carlos Eduardo Santalena, meu sócio aqui na empresa, também manifestou a vontade de ir (com 24 anos, ele seria o mais jovem brasileiro a subir, mas ainda não confirmou presença na expedição). Então, combinamos: “vamos montar uma expedição com três brasileiros”. Eu comecei a pensar que, dos brasileiros que escalaram o Everest, o Vitor, a Ana Elisa (Boscarioli, única brasileira a escalar o Everest) e o Eduardo Kepke fizeram curso de escalada em gelo comigo. Então, acredito que fui um catalisador, um estimulador para essas pessoas chegarem lá, e agora estou fazendo isso com pelo menos mais duas pessoas.

GE.Net – Outras pessoas têm procurado você interessadas em fazer o treinamento para escalar o Everest?
Raineri – Tem várias pessoas me procurando, inclusive já até criei o termo “Clube dos 8 mil” para as pessoas que querem escalar uma montanha com mais de 8 mil metros. Há outras pessoas que estão muito interessadas, inclusive a Ana Paula Boscarioli, irmã da Ana Elisa Boscarioli. O duro é conseguir viabilizar um processo desses pelo custo e pelo problema com a família, de achar que é muito arriscado, de passar muito tempo longe. Precisa negociar bastante.

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– E em que momento você decidiu incluir o parapente no projeto?
Raineri – Quando o Canellas me convidou para ir junto, eu pensei: “não vou para o Everest para chegar ao cume de novo”. É legal e eu gosto, mas é muito sofrido para fazer a mesma coisa. Eu já tinha começado a descer as montanhas voando, comecei a pensar muito no Aconcágua e fui para o Mont Blanc para fazer um treino. Nessa época, nem divulguei nada, nem tinha assessoria de imprensa. Eu estava trabalhando como um louco, não estava treinando e fui para a Europa descansar. Aproveitei para visitar um festival de voo livre com a pretensão de, depois, se estivesse me sentido bem e arranjasse um parceiro, descer do Mont Blanc. Já estava conversando com um amigo meu francês que foi meu instrutor de voo no Nepal e nós descemos de parapente do Mont Blanc.

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– Desde quando você pratica essa modalidade?
Raineri – Em 2003, eu fui para Chamonix-FRA e vi uns caras voando de parapente. Pensei: “nossa, um dia eu vou fazer esse negócio”. Comecei a voar mesmo depois do acidente do Vitor, porque queria fazer alguma coisa diferente. Fui dar uma palestra em Guarapari-ES em 2006 e conheci o Frank Brown, uma referência no esporte. Conversamos bastante e nessa viagem fiz meu primeiro voo, em Domingos Martins. Foi lindo, maravilhoso. Quando fui pagar em cheque, o instrutor viu meu nome e disse: “você é o cara que escalou o Everest, sou seu fã!”. Ele queria voar de novo comigo (risos). Voltei para Campinas e fui fazer um curso em Andradas-MG. Em seguida, fui para o Nepal. Em 2007, guiei um grupo para fazer trekking no Annapurna (8.091 metros, no Nepal) e fiquei para treinar. Tive que convencer o instrutor a me treinar, porque ainda não era época e na região tem muitas plantações de arroz. Perguntei o que aconteceria se eu tivesse que pousar em cima do arrozal e ele disse que precisaria pagar o prejuízo (risos).

GE.Net – Como foi o treinamento no Nepal?
Raineri – Foram 15 dias intensos de voo. Em 15 dias, fiz 48 voos. Como era na beira de um lago, eu descia fazendo manobra e simulando incidentes. Puxava a vela, fechava, tomava colapso, freava até o final para ela encharutar (fazendo gestos com os braços). Tudo que o pessoal que voa há anos às vezes não tem coragem de fazer, eu fiz. Foi uma escola, porque voei com vários parapentes diferentes, simulei o incidente de arrebentar as linhas do freio e manobrei com as outras linhas… Fiz um baita curso e voltei fissurado. Depois, retornei ao Everest para escalar em 2008 e dei uma diminuída no parapente. Em 2009, voltei a voar.

GE.Net – Para um alpinista que está acostumado a demorar até mais de um dia para descer uma montanha, como é decolar do topo e alcançar o solo em poucos minutos?
Raineri – No Mont Blanc, em 29 minutos eu estava no meio da cidade com carros, supermercados, farmácias… É muito legal e, ao mesmo tempo, um choque para a mente, porque você esta num lugar extremamente hostil e, de repente, está no meio da cidade, com buzina e tudo… É meio punk. O retorno da montanha normalmente já é complicado, porque a gente passa anos se preparando para subir a montanha. Depois que chega ao cume, a volta é muito rápida. Você desce atropelando tudo e volta para esse ambiente urbano que as pessoas estão acostumadas, mas você volta diferente e essa mudança é muito grande. As pessoas esperam que você seja o mesmo, mas já não é mais. Essa reinserção na sociedade com seus valores já é uma coisa difícil, imagina descer voando no meio da cidade. O baque é mais violento, mas ao mesmo tempo é uma coisa maravilhosa, indescritível. Eu estava escalando o Mont Blanc e pensava: “se eu não chegar ao cume, decolo daqui mesmo”.

GE.Net – Nessa época, você já encarava tudo como treinamento para o Everest ou ainda não tinha o objetivo de descer de lá de parapente?
Raineri – Era um treino para voo de montanha. Eu ficava imaginando o Aconcágua, mas ele tem umas questões técnicas. Agora, eu olho o cume das montanhas não mais como um lugar para se chegar, mas sim como um lugar para se partir. O cume do Aconcágua tem muita pedra. Então, no momento de inflar o parapente lá ele enrosca as linhas. Olhando o cume do Mont Blanc e do Everest, é tudo neve, limpinho. O problema no cume do Everest vai ser a falta de sustentação em função do ar rarefeito. Minha velocidade de corrida tem que ser maior para eu ganhar sustentação. Mas em termos técnicos, no momento da inflagem é menos difícil. A chance de o parapente subir retinho por cima da minha cabeça é muito maior. Se estou numa montanha como o Aconcágua e enrosca uma linha, o parapente já vira de lado e, se bater um vento, pode me jogar. Tem um monte de problema no Everest, mas a inflagem em si acho que vai ser mais tranquila. Depois que eu descer do Everest e do Aconcágua, eu te conto (risos).

GE.Net – O que muda na logística a inclusão do parapente?
Raineri – Na verdade, muda bastante a logística por vários motivos. O conjunto do parapente que a Sol Paragliders fez para mim tem 6,5kg e, no Mont Blanc, voei com um de 4,5kg. É uma diferença significativa. Estão preparando um parapente mais leve ainda. Independente disso, no Mont Blanc subi com ele nas costas e no Everest posso lançar mão da ajuda dos carregadores. Para eu me cansar menos e chegar ao cume com mais condições de avaliação, também vou utilizar oxigênio suplementar

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– Então, desta vez não tem mais a pretensão de subir sem usar oxigênio?
Raineri – Não tem mais. Pode ser até que eu chegue lá, resolva que a temporada está boa, que eu estou bem e que quero tentar sem. Mas todas as vezes que fui ao Everest eu passei dos 8 mil metros sem oxigênio e isso já é um negócio que deteriora. Quando você chega no acampamento 4 para atacar o cume sem oxigênio, já está cansado, você está na Zona da Morte. Se eu fizer o que todos que usam oxigênio fazem, que é começar a usar no acampamento 3, provavelmente vou chegar no cume melhor e vou ter mais condições técnicas e mentais de avaliar o clima, as nuvens, o vento, meu próprio estado. Além disso, vou ter mais energia e concentração para fazer a manobra correta, porque… Eu acho que não dá para errar na hora de inflar o parapente no cume do Everest (risos). Se errar, despenca em algum canto da montanha.

GE.Net – Na expedição de 2008, você mesmo organizou toda a logística. Pretende fazer o mesmo desta vez ou vai contratar uma agência?
Raineri – Da última vez, eu organizei tudo, mas agora vou poupar um pouco de energia na organização. Vou exigir algumas coisas da agência que eu contratar lá, como barraca depósito grande e outras coisas que sei que vão fazer diferença no dia-a-dia da expedição. Vou levar um extra de comida e fogareiro para o acampamento base, mas todo o resto da logística, de permissões, taxa de lixo e contratação de carregadores, vou passar para as mãos de uma agência.

GE.Net – Você já chegou ao cume pelo lado do Nepal. Quanto facilita o fato de conhecer a rota?
Raineri – Facilita muito. Mas desta vez é mais difícil porque estou mais velho e porque, depois que a gente chega ao cume, acha que não foi tão difícil, a gente perde um pouco da noção do quanto a gente se desgastou, do quanto a gente teve que sofrer para conseguir. Ao mesmo tempo, não tem o complicador de a China fechar a montanha. Eu quero fazer essa expedição no Everest três vezes mais rápida. Da última vez, demorei 87 dias. Agora, com o oxigênio, posso aproveitar a primeira janela de bom tempo e tocar para cima. Se o povo estiver andando devagar, eu entro na fila e ando devagar, porque sem oxigênio você tem que andar rápido para esquentar o corpo.

GE.Net – Com o oxigênio, teoricamente você vai sofrer menos do que nas outras vezes…
Raineri – A estratégia de usar oxigênio facilita na parte de aclimatação, na parte de manter o corpo quente, facilita numa série de coisas. Gostaria de sair daqui no dia 1º de abril, atacar o cume no começo de maio e já estar de volta no dia 15. Não sei se vai ser assim. Tenho o prazo até o final de maio, mas a ideia é fazer o negócio rápido, até porque o Carlos está super bem e descendo rápido, o que é muito importante para a segurança. No Aconcágua, ele subiu e desceu no mesmo dia. Normalmente, você faz cume e para no acampamento alto antes de descer para a base. Acredito que vai ser menos sofrido dessa vez.

GE.Net – Você é um alpinista experiente e domina essa técnica. Pode-se dizer que você também domina o voo de parapente, apesar do relativo pouco tempo de prática?
Raineri – Depende do ponto de vista. Do ponto de vista de uma pessoa iniciante ou leiga, posso dizer que domino bem e que fiz muitas coisas legais. Do meu ponto de vista, é igual ao conhecimento. Quanto mais você estuda, mais vê que você não sabe. Eu me considero um aluno do parapente. Não domino nada, inclusive essa parte de voo de altitude, porque muda tudo. Aliás, em 2008 aconteceu uma coisa linda do ponto de vista metereológico: tinha uma zona de alta pressão gigante e eu pensava: “se isso vier para cá, estamos ferrados”. Em cima dessa zona, tinha uma zona de baixa pressão. Essa zona de alta pressão, em vez de descarregar, subiu e entrou. Do que eu entendi que aconteceu, foi o movimento inverso: como se tivesse chovido para cima. Uma nuvem chupando e a outra, querendo desaguar. Ela desaguou para cima e não entrou a tempestade violenta no momento em que poderia ter entrado. A chuva só chegou na gente quatro horas depois do que eu imaginava por causa desse sistema de compensação de forças, e isso acabou dando margem para a gente descer com segurança. Se ela tivesse chegado mais cedo, teríamos sofrido bastante na descida.

GE.Net – Você disse que é um aluno do parapente, mas se considera apto a tentar essa descida do Everest…
Raineri – Se eu não estivesse seguro de que é possível e de que eu tenho condições, não faria. Ao mesmo tempo, não é a coisa mais simples do mundo chegar lá em cima do Everest, inflar um parapente e descer voando (risos). Não é todo dia que você vê um cara descendo ali. É possível, mas é difícil, é perigoso, é técnico. A decisão mesmo de decolar, só vou poder tomar quando estiver lá no cume. Tem uma série de condições de padrão de segurança: o alinhamento do vento, a velocidade do vento, previsão do tempo, como está o tempo no pouso. Você pode estar com tempo bom em cima e o pau quebrando em baixo. Não tem como fazer previsão para 5 mil e para 9 mil metros, ela muda conforme a faixa de altitude. Preciso de uma previsão boa para todas as camadas que vou atravessar.

GE.Net – Como você vai decidir se decola ou não? Baseado mais nas informações meterológicas ou no seu próprio feeling e nas observações do momento mesmo?
Raineri – A informação principal é a que eu tenho na hora, porque o voo vai ser uma coisa rápida. Pretendo pousar em meia hora em vez de demorar três dias para descer escalando. O que preciso saber é como está o vento no pouso. Lá em cima, tenho uma visão geral e posso analisar as nuvens, o vento de maneira geral, o vento no topo e o vento na decolagem. Também preciso de uma previsão de tempo macro, dizendo que a pressão está alta, que não está entrando uma frente, que não vai mudar rápido o clima…GE.Net – Os dados metereológicos vão te passar por rádio?
Raineri – Espero que me passem por rádio, se ele funcionar (risos). Se não, vai ser a minha avaliação ali. Basicamente, vou ter a previsão do tempo que peguei no telefone via satélite na hora do ataque ao cume, que deve ser umas 22h, e a previsão que eu vejo na hora da decolagem, que imagino que vai ser umas 6h.

GE.Net – Você disse que pensou em decolar antes do cume no Mont Blanc. Isso pode acontecer no Everest ou você vai decolar só se chegar ao cume?
Raineri – Até pode ser, mas o problema é que no caminho do Everest não tem bons pontos para decolagem. No dia que eu chegar ao cume, o vento vai estar bom. Já falei com São Pedro (risos). Pode acontecer de decolar de outro ponto, mas não estou saindo daqui pensando nisso. Estou saindo pensando em chegar lá, escalar até o cume e decidir se decolo ou não. Se não der para decolar, vou descer com o parapente nas costas e talvez guardá-lo para o ano que vem (risos).

GE.Net – Na hora de tomar uma decisão como a de decolar ou não, no que você pensa? O fato de ter um filho, por exemplo, muda alguma coisa? Você pensa na sua esposa, na sua família e nos amigos que ficam aqui?
Raineri – Essa decisão é tomada antes de partir. Se estou decidindo que eu vou, na hora isso já foi ponderado. Na hora, a decisão e técnica. A decisão mais sentimental é antes. É como um piloto de Fórmula 1. Na hora que dá a largada, não tem como pensar na família e no filho enquanto está pilotando. Se tirar o pé, não vai ganhar a corrida. Tem que sair preparado em termos de treinamento, de estratégia, saber onde vou arriscar mais e onde não vou, qual minha maior competência. Mas a partir do momento que estou lá, acho que não é saudável ter esse tipo de pensamento, porque vai tirar seu foco da parte técnica para a parte emocional, e o resultado pode não ser muito bom. O emocional tem que fazer parte de qualquer tomada de decisão, mas depois que a decisão está tomada, na hora do “vamo vê” mesmo, não tem tempo para pensar nisso. O foco é nuvem, vento, vela, se não tem nada congelado, se está tudo certinho. Na hora que decolei e entrei em voo, aí eu vou lembrar do filho, da esposa. Tem um tempo que você dá um pause para fazer dedicatória, comemorar, registrar o que você está sentindo, mas depois acabou. Posso fazer uma decolagem boa e me estrepar no pouso, por exemplo.

GE.Net – Você já planejou mais ou menos como vai ser a descida?
Raineri – Estou pensando numas manobras de descida rápida. Vou fazer as velas fecharem e despencar, porque quanto mais rápido eu descer, menos chance tem de o clima virar. Passei o rádio para a base. Se estiver tudo certo, decolei. A estratégia: me afastar da montanha, ir o mais rápido possível para cima do pouso e perder altura o mais rápido possível estolando a vela. Ela vai fazer um charutão e eu vou despencar, descer uns 2 mil metros encharutado, botar para voar de novo e aproximar para o pouso (risos). Vai ser um voo legal.

GE.Net – Você encontrou outras pessoas que já fizeram essa descida?
Raineri – Olha, eu procurei bastante em português e inglês na internet, mas não achei. Depois, lembrei que os caras feras do parapente são os franceses. No Aconcágua, conheci um francês que tinha decolado com o pai dele do cume sul (do Everest), com 17 anos. Esse mesmo cara que decolou com o pai voltou depois de dez anos e decolou com a mulher. Até hoje, descobri só ele. Não consegui achar outro cara que desceu do Everest voando.

GE.Net – Do ponto de vista fisiológico, essa mudança súbita de pressão atmosférica tem algum risco?
Raineri – É muito bom, porque vai esquentando. Imagina o frio que não vai ser. No cume, já é frio. Se você se afasta do solo, fica mais frio ainda. Tudo isso, com o vento do parapente… No Mont Blanc, quando decolei de 4.200 metros, começou a congelar nariz, orelha, tudo. Eu me fechei (cruza os braços sobre o peito), me protegi e comecei a colocar gorro em pleno voo para não congelar. Na segunda decolagem, já me preparei melhor e coloquei uma roupa mais quente. Isso é outro aspecto que o oxigênio também ajuda. Eu pretendo decolar com um cilindro de oxigênio e a máscara protege desse vento gelado. Assim, a chance de ter congelamento de nariz, por exemplo, diminui.

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– Pelo seu plano de voo, quantos metros exatamente você vai descer de parapente?
Raineri – No Mont Blanc, desci de 4.808 para 1.050. Foram uns 3.800 metros. No Everest, vai ser mais ou menos a mesma quantidade: de 3.850 a 5.100 metros mais ou menos.

GE.Net – Geralmente, quando pensam em um atleta radical, as pessoas imaginam um cara de cabelo pintado, piercing, tatuagem, que faz as coisas gritando… Você tem um perfil mais sério, tem uma empresa por trás e transmite uma imagem de segurança. Você se considera um pouco diferente nesse nicho dos atletas radicais?
Raineri – Tem de tudo (risos). Eu sempre me senti um pouco peixe fora d´água, porque fiz engenharia de computação na Unicamp, trabalho com turismo de aventura, levo uma vida relativamente alternativa e faço o que amo. Eu tenho uma empresa e trabalho com segurança. Em todas as divisões que trabalho, eu falo para todo mundo que vendo segurança. Talvez por ter esse perfil mais técnico e conservador, eu seja diferente. Na verdade, a pessoa pode usar o cabelo pintado e, ao mesmo tempo, ter um perfil conservador, mas uma maneira um pouco diferente de se comunicar. Às vezes, isso acaba sendo confundido com displicência. Por outro lado, tem pessoas que são mais sisudas, podem passar uma imagem de que seguem rigorosos padrões de segurança e, na prática, não estão muito preocupadas.

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– O base jumper Sabiá, por exemplo, é um cara irreverente…
Raineri – É claro que sua postura mostra um pouco o que você é. O Sabiá é um cara super irreverente e saltou do avião sem paraquedas. Outro cara veio em pleno voo, se conectou com ele e fez um duplo, mas o Sabiá saiu do avião sem nada, só de shorts. Eu não acho que ele não se preocupa com segurança, muito pelo contrário. Ele está sempre no limite e acho que, quanto mais no limite nós estamos, mais a gente pensa em segurança. A partir do momento que você tem um filho, que tem pessoas que dependem de você, isso muda sua relação na tomada de decisão de até onde arriscar. Vamos supor que eu não tivesse filho, fosse mais novo e estivesse no cume do Everest fazendo uma avaliação do voo antes de saltar. “Puxa, não está perfeito, mas eu acho que dá e vou”. Hoje, se eu chegar ao cume do Everest e não estiver perfeito, eu não vou. Só vou se estiver perfeito, não pode estar diferente. Estando tudo perfeito, a chance de dar alguma coisa errada é grande, imagina se não estiver.

GE.Net – Uma pergunta simples e, talvez, difícil de responder. O que você busca nesse tipo de expedição? Satisfação pessoal, romper limites, entrar para a história, reconhecimento, dinheiro?
Raineri – Dinheiro (irônico)! A gente só vai lá porque tem um cofre no cume e descemos com ele nas costas (risos). O dinheiro do patrocínio, quando cobre, cobre as despesas da expedição, e não meu treinamento e os gastos da minha família enquanto estou fora. Até hoje é difícil de viver do alpinismo como um jogador de futebol vive do seu esporte, por exemplo. A busca para mim é superação pessoal, viver grandes histórias, grandes emoções, estar mais perto de Deus, da natureza. Eu adoro o ambiente natural. Aqui no Brasil, não tem neve e temos pouco contato com esse ambiente de montanha, que é muito bonito. O céu tem mais estrelas, porque a camada de ar é mais fina. Quando a noite está enluarada, parece neon. Você conhece gente do mundo inteiro. Aqui, eu sou uma pessoa diferente, perdida na multidão, e lá eu estou entre iguais, é todo mundo louco e tem a mesma paixão. É essa busca interior de se superar e tudo mais… Não corro atrás de dinheiro, de divulgação, desse tipo de coisa.

GE.Net – Mas isso também é importante para a sua profissão…
Raineri – O voo do Mont Blanc, por exemplo, eu fiz para mim e nem divulguei, mas, por causa dele, acabei dando uma palestra na Associação Brasileira de Parapente, numa clínica para pilotos e instrutores. Ou seja, fui fazer uma palestra para os caras que me ensinaram a voar (risos). Veio de um projeto pessoal que na verdade não mandei um release para ninguém e sem o propósito de divulgar uma marca. As coisas inusitadas que eu me proponho a fazer acabam gerando atenção da mídia, o que gera curiosidade das pessoas e elas começam a perguntar como foi. O negócio vai rodando e, como eu gosto disso, tenho que aproveitar essa onda e surfar. Aí vem livro, vem palestra e uma série de outras coisas que acabam constituindo um meio de vida para quem gosta de viver assim.

GE.Net – Você pretende lançar um livro sobre as suas expedições para o Everest ainda nesse ano. Como vai ser essa publicação?
Raineri – A ideia e lançar o livro em junho, pela Editora Leya. Queremos lançar ao mesmo tempo no Brasil e em Portugal. É uma trilogia das minhas viagens para o Everest. Claro que vai falar um pouco da minha infância e das outras escaladas, mas o foco é Everest 2005, 2006 e 2008. São três expedições para a maior montanha do mundo. Cada expedição valeria um livro e condensar as três num único livro já e um trabalho difícil. Estou escrevendo a quatro mãos com o jornalista Diogo Schelp. É em primeira pessoa, eu que narro a história. Eu sou engenheiro, sou empresário, sou alpinista, sou pai, e não dá para ser escritor (risos). Eu preciso de ajuda para conseguir colocar para fora toda essa informação, transformar emoção em palavras é muito difícil. Acho que esse livro vai contar uma boa parte das histórias e imortalizá-las.

GE.Net – Você está escalando montanhas há 22 anos. Neste período, percebeu algum efeito do aquecimento global nas regiões mais frias?
Raineri – Muito, pra caramba. Da primeira vez que nós fomos para a face sul do Aconcágua, entramos em fevereiro, quando a maioria das expedições tinham tido sucesso, mas quebramos a cara, porque várias passagens que deveriam ser de gelo já tinham derretido e virado rocha podre. Está derretendo e tem vários problemas além do derretimento em si. Sempre que derrete uma geleira, a água vai para algum lugar. Normalmente, é um vale e na frente desse vale tem um monte de pedra. Então, forma um lago, que vai aumentando com o degelo. Se estoura um lago desses, desce uma avalanche de rocha, gelo, água e tudo misturado. Isso vai inundar os vales, quase como a tragédia que aconteceu agora em Friburgo e Teresópolis. Existem lugares que essas lagoas são monitoradas e, quando a água atinge determinado nível, eles abrem drenos para diminuir o volume represado. Posso estar enganado, mas o que tenho observado é que as regiões onde as temperaturas oscilam acima e abaixo de 0ºC durante o dia estão sofrendo mais do que as áreas em que a temperatura está sempre abaixo de 0ºC. Por exemplo: tem um determinado cume a -15ºC e, se esquentar dois graus, ele vai para -13ºC. Não afeta tanto, porque o gelo continua gelo. Mas numa área que estava a -2ºC e vai para 0ºC, começa a derreter. Essas zonas com temperatura negativa de noite e positiva de dia estão sofrendo muito mais.

GE.Net – Há alguns anos, a exploração turística do Everest estava em um nível preocupante, especialmente pelo despreparo das pessoas que se propunham a escalar a montanha. Pelas informações que você tem, agora a situação já está mais racional?
Raineri – Já está bem mais racional. As expedições estão limpando, você precisa pagar uma taxa de lixo e tem várias expedições de limpeza. O que ainda é irracional é o treinamento que a pessoa precisa para escalar o Everest. A princípio, com muito apoio, com carregadores, oxigênio suplementar, corda fixa, guia e tudo, você consegue levar para a montanha uma pessoa sem experiência de alpinista, mas com boa forma física. Porém, ela não tem o preparo mental e técnico para sair de uma situação difícil por contra própria se precisar. Para você desfrutar o Everest, precisa estar preparado para aguentar dois meses de frio, dormindo em cima do gelo e comendo mal. Se você não estiver preparado, a expedição vai ser um terror. Faz uma expedição para a Bolívia antes, faz um Aconcágua e Atacama de três semanas para depois encarar mais de um mês no Everest. Tenha todo o preparo para o sofrimento. Se você estiver preparado, deixa de ser sofrimento e você passa a aproveitar a lua, o nascer do sol, acha uma avalanche bonita, ouve o estalo do gelo, acha lindo o glaciar, vê os bichinhos milenares que estão congelados lá. Você consegue desfrutar do ambiente mesmo que ele seja hostil. Acha engraçado o gelo dentro da barraca quando ele cai na sua cara, acha legal uma noite toda sem dormir porque o vento ficou batendo na sua barraca. Você não se estressa com isso e acha que faz parte do processo.

GE.Net – No começo deste ano, o Bernardo Collares, então presidente da Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro, morreu durante a escalada do Fitz Roy (3.375 metros, na Argentina). Você conhecia ele?
Raineri – Conhecia, mas não tinha muito contato, porque ele ficava no Rio de Janeiro. Foi uma grande perda para o montanhismo brasileiro, porque acho que o Bernardo era o cara mais articulado em relação à representatividade da classe dos escaladores perante os órgãos públicos. Se ele não era o mais, era um dos mais. O Bernardo era um cara muito engajado com Parques Nacionais, Plano de Manejo, Ética de Grampeação, Estilo de Conquista, abertura de locais para escalada, regra para monitorar grupos… Ele era um cara muito, muito engajado nesse movimento. Era um cara muito ético. Tanto o montanhismo perdeu uma grande uma grande figura, quanto o poder público perdeu um link com a comunidade, porque ele fazia isso muito bem.

GE.Net – Como de costume, a morte do Collares teve ampla cobertura da mídia. Você acha isso uma coisa normal ou te deixa irritado?
Raineri – (Quatro segundos de silêncio). Me irrita e eu considero normal. Me irrita porque a notícia de uma tragédia normalmente é mais importante do que a de uma grande conquista. Dois dias antes do falecimento do Bernardo, uma equipe de brasileiros abriu uma via nova muito casca grossa, acho que no próprio Fitz, e ninguém falou nada. Por outro lado, não foi um Zé Ruela que tropeçou, caiu, bateu a cabeça e morreu. Foi o presidente da Federação de Montanhismo do Rio de Janeiro, um cara super articulado e relativamente técnico. Ele estava numa via técnica e sofreu um acidente. É uma atenção da mídia para o montanhismo que chega a ser ruim, vai contra a imagem. Como ele faleceu no Fitz Roy, a impressão é que todas as pessoas que vão escalar o Fitz Roy são loucas, e na prática não é isso. É natural. Se cair um avião em algum lugar ou acontecer um acidente, o natural é chamar a atenção da mídia. O que posso falar sobre isso é que são tão poucos os acidentes no montanhismo, que quando eles acontecem são noticiados. Se houvesse acidentes de alpinistas como tem em São Paulo com motoboys, não seria mais noticia.

GE.Net – No próximo dia 19 de maio, faz cinco anos que o Vitor faleceu no Everest. Você tinha se dado conta disso?
Raineri – Sim, com certeza.

GE.Net – É provável que você esteja na montanha nessa época. Planeja fazer alguma homenagem a ele?
Raineri – Como te disse, descendo três vezes mais rápido eu pretendo já estar de volta, mas se eu estiver lá vou lembrar do dia. O dia 19 de maio é sempre um dia triste, assim como o dia 2 de janeiro é um dia feliz, porque foi quando escalamos a face sul do Aconcágua. Sei lá… São datas que marcam a nossa vida e nos deixam mais feliz ou mais triste. Não tem como apagar isso nunca mais.

GE.Net – De vez em quando você lembra dos momentos difíceis que passou no Everest em 2006 ou procura evitar isso?
Raineri – Ah, lembro direto. Inclusive, depois do acidente do Vitor acho que uma das minhas missões pessoais é tentar levar essa mensagem da consciência do risco. Não estou falando para as pessoas pararem de fazer as coisas, até porque eu também continuo fazendo. Às vezes, as pessoas falam: “olha lá, o Rodrigo não aprendeu, aconteceu com o amigo dele!”. Não é para parar de fazer as coisas, pelo contrário. Vamos fazer as coisas com uma consciência melhor, fazendo tudo o possível para que dê certo, para que as condições sejam certas e que as coisas terminem direito. É claro que infelizmente acidentes acontecem em todo lugar: na estrada, nas casas, no avião, na montanha… Nas palestras motivacionais que faço nas empresas, principalmente nas sobre segurança no trabalho, faço esse paralelo. Uso esse exemplo triste, que me marcou muito, a morte do Vitor, para mostrar que, se houver um acidente, os maiores prejudicados são o próprio trabalhador e a família dele.

GE.Net – Você ainda mantém contato com os filhos do Vitor, com a viúva dele e com os pais dele?
Raineri – De vez em quando, a gente se fala. Eu encontro mais a avó do Leon e do Davi (filhos de Vitor) na academia. A Marina (viúva), eu encontrava mais quando ela estava na academia, mas agora ela tem ido pouco. A dona Roma (mãe de Vitor), faz um tempo que eu não falo. Mas eu nunca tive costume de ligar, esse tipo de coisa… Ela sabe que pode contar comigo para qualquer coisa. Ao mesmo tempo, não estou dando conta nem da minha família direito. Estou atolado de trabalho e, quando tenho um tempinho livre, fico com meu filho ou vou para Ibitinga visitar meus pais. Não tenho um contato tão próximo quanto tinha quando o Vitor estava aí.

GE.Net – Você fez expedições e viagens de aventura com o Vitor durante cerca de 18 anos. Em 2008, você escalou o Everest ao lado do médico Eduardo Kepke. Desde que ele faleceu, chegou a procurar um outro parceiro fixo, mais ou menos como era o Vitor?
Raineri – Na verdade, nunca procurei um parceiro fixo, nem quando estava com o Vitor. O legal da dupla com o Vitor era que ele também vivia para aventura. O Eduardo é medico, o Carlos Eduardo Canellas é empresário. A parceria com o Vitor era assim: “vamos fazer a face sul do Aconcagua?”. Ele topava. “Para fazer isso, você vai ter que fazer curso de gelo comigo, beleza?”. O Vitor sempre aceitava. Ele começou a escalar sempre comigo, mas estando no Brasil eu escalava com outras pessoas e ele também fazia outras coisas. Mais perto dos projetos comuns, a gente encaixava treinos juntos e depois viajava junto, mas nunca foi só o Vitor. Eu tinha a minha vida e ele, a dele, mas fazíamos altos projetos juntos. A gente teve um relacionamento muito forte também pela parceria nas palestras motivacionais, quando tinha entrevistas, nas reuniões com patrocinadores… Os compromissos profissionais acabavam convergindo para que tivéssemos uma convivência mais intensa do que a própria escalada.

GE.Net – Você escalou o Pão de Açúcar com seu filho recentemente. Ele também se interessa pelo esporte? Você aprova e procura incentivá-lo?
Raineri – Ele adora, pede para me acompanhar. É por conta dele mesmo, eu não coloco pressão. Acho legal ele gostar das coisas dele, de bicicleta, de cachoeira, caminhada, escalada… Teve uma época que ele treinava na parede de escalada da academia mesmo sem a minha presença. Eu estava trabalhando muito e não conseguia ir, mas ele chegava depois em casa e contava o que tinha feito. É sem pressão nenhuma, pelo contrário. A pessoa, para ser feliz, tem que se realizar e descobrir o que realmente gosta de fazer. É claro que, se houver oportunidade de conviver no ambiente natural com meu filho, é muito mais prazeroso, porque ele é uma grande companhia, sempre bem humorado. Não tem tempo ruim, o molequinho é show de bola (risos).

Fonte: Gazeta Esportiva

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Texto publicado pela própria redação do Portal.

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