Reino Mágico: 1035 metros de granito e uma homenagem

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Recentemente o trio de escaladores Felipe Dallorto, Flávia dos Anjos e Claudney Neves conquistaram uma nova via de escalada em Santa Maria Madalena no Estado do Rio e realizaram uma grande homenagem.


Muita aventura e perrengue, este é o resumo que se pode fazer da conquista da via Reino Mágico, de 1035 metros na pedra Du Bois em Santa Maria Madalena, interior do Rio. Foram necessário 8 meses, muito material, chuva e surpresas.

O trio, Felipe Dallorto, Flávia dos Anjos e Claudney Neves começaram a conquista em Outubro do ano passado e apenas finalizaram a via recentemente, dedicando ela ao amigo Bernardo Collares, que faleceu no Fitz Roy em janeiro deste ano. Na véspera da viagem à Patagônia, Bernardo chegou a dizer que seria o primeiro a repetir a via.

Com a conquista, a Reino Mágico entra no Roll das mega vias do Brasil, que excedem os mil metros de altura.

Confira o relato na íntegra da conquista:

Santa Maria Madalena, pequena cidade localizada no interior do Rio, desconhecida por muitos e dona de montanhas virgens para todos os gostos.

Tudo começou por um convite de um velho amigo que há muitos anos sempre escalava uma única via da cidade a “Sinfonia do Rabo de Galo” na Pedra Dubois. Após este convite do Luiz Felipe Temperine, Felipe e Flavia foram conhecer o potencial do lugar e começaram a investir em várias conquistas nas montanhas e falésias virgens deste incrível lugar, esta é uma longa história no qual contaremos num próximo relato.

Após várias conquistas na região de Santa Maria Madalena, Felipe e Flavia decidiram conferir o potencial na montanha símbolo da cidade à pedra “Dubois”. Percebendo que a parede era grande e que a logística seria melhor com três pessoas, decidiram chamar o amigo Claudney Neves que vinha demonstrando interesse por grandes conquistas e também vinha fazendo convites para lugares como o ES.

Pegamos a estrada para Santa Maria Madalena no sábado, nove de outubro, chegamos ao início da tarde e procuramos uma fazenda para acampar, a idéia era ficar na base de outras vias já conquistadas.&nbsp, E foi onde conhecemos o Sr. Ranulfo, que ofereceu a varanda de uma das casas do seu sítio para ficarmos. Aceitamos!

Não perdemos o dia, arrumamos as mochilas e partimos para a Pedra Dubois, que fica ao lado do centro da cidade. Sabíamos que a montanha possuía apenas duas vias, uma do Benito Esteves (Sinfonia do Rabo de Galo) e outra do Flavio e Cintia Daflon (À Moda Antiga). Com pouquíssima informação sobre essas duas vias nossa idéia era conquistar uma nova linha bem à esquerda das mesmas, pegando a parte mais longa da montanha. Desde o inicio estávamos preocupados em como identificar a linha da via do casal Daflon, pois em 600m só haviam batido quatro grampos, mas o problema não foi à via deles, descobrimos, de uma maneira não muito agradável, que havia outra na parede…

Seguimos a trilha de no máximo 20min até a base. Vimos alguns grampos e achávamos que seriam da À Moda Antiga. Começamos a conquista revezando a cordada com uma grampeação bem esparsa até o momento que a Flavia viu um grampo 30m abaixo de onde tínhamos batido a última chapeleta. Começamos a procurar outros, infelizmente achamos… Exatamente 30m acima!!! Por acaso, estávamos intermediando uma enfiada de um projeto de via que só mais tarde soubemos que este projeto era de amigos nossos. Continuamos subindo pela via desconhecida até o platô que divide a montanha. Já era fim de tarde, caminhamos pelo platô e escolhemos uma linha bem mais à esquerda onde Flavia bateu somente uma proteção e descemos antes de escurecer.

Na descida a decisão foi lógica e unânime, retiramos as únicas três proteções que colocamos e descemos. Praticamente perdemos um dia de conquista, voltamos para nosso acampamento e avaliamos algumas possibilidades e decidimos escolher uma linha mais à esquerda e que chegasse até chapeleta batida após o platô.

Domingo, dia 10, fomos à forra. Conquistamos nove enfiadas de 60 metros revezando. Foram 540m de costões com alguns lances de 3º grau. Proteções apenas nas paradas. Chegamos ao platô e ainda nesse dia Felipe retomou a conquista da décima enfiada com muita névoa e frio. Logo depois de completá-la Claudney e Flávia começaram a décima primeira enfiada com lances de aderência de 5º grau, onde realmente a parede começou a dificultar. Paramos na metade desta enfiada e descemos, pois a previsão do tempo não era das boas.

A segunda-feira foi curta. Como a previsão não era boa, pretendíamos transportar o máximo de material montanha acima, para, na terça, realizarmos o ataque final. Mas não conseguimos chegar, sequer ao grande platô. Deixamos todo o material possível 120m abaixo do nosso objetivo, dentro de um saco estanque. A chuva fina começou a cair e a pedra, automaticamente, virou um sabão. Descemos.

Tudo bem, pois esse dia foi de festa, aniversário do Felipe. Gastamos bem o tempo fazendo festa com direito a bolas de ar, chapeuzinho bolo e muito vinho.&nbsp, Apesar do clima de comemoração, fomos dormir cedo. A terça seria decisiva.

O dia amanheceu melhor e partimos resgatando o saco estanque no meio da parede e tocamos para cima. Continuamos revezando e completamos a P12, 795m conquistados. Infelizmente a noite chegou e as proteções acabaram, subestimamos a montanha e não chegamos ao cume nesse dia.

Deixamos tudo que era possível deixar embaixo de uma laca e dentro do saco estanque para a investida seguinte, o que só aconteceu três semanas depois.

No dia de finados tradicionalmente chove. Desafiamos isso e voltamos à Santa Maria Madalena no final de semana desse feriado. Saímos sexta à noite e chegamos por voltas das 23h com a decisão de acampar no terreno da base da via. Já havíamos conseguido tal autorização do dono na viagem anterior.

Acordamos sábado dispostos a terminar a via, mas tinha muita parede para escalar. A conquista em si só começou às 15h. Dessa vez quem começou foi a Flavia, o Claudney fez a parte dele e o Felipe continuou já com os primeiros discretos pingos de chuva caindo. Avançou mais 20m. Chegamos ao 895m de via!

&nbsp,Um exército de bromélias gigantes em linha já nos aguardava no cume, mas ainda não foi dessa vez. Novamente as proteções acabaram e a noite chegou&nbsp, junto com a chuva. Deixamos tudo dentro do saco estanque e penduramos aos 850m da via, pois tínhamos mais três dias do feriado pare terminar a via. Rapelamos sem problemas até o grande platô, mas ali tudo mudou em segundos, o que era montanha virou cachoeira, o que era trilha virou rio, o que estava seco ficou encharcado… A sensação era de estar realmente fazendo um cascating. Muita, mas muuuuita água desceu naquela noite.&nbsp, Tivemos que colocar corda em trechos onde descíamos caminhando, pois o perigo era rolarmos montanha abaixo com a força da água.

A situação melhorou quando chegamos abaixo do platô. Continuamos por uma linha sem muita água e a chuva em si já havia diminuído.

Faltando poucos rapéis para o final, Flavinha olha para a estrada e solta:

– Aquilo não é o caminhão dos bombeiros?

Não era. Havia sim um caminhão com luzes piscantes na estrada, mas era da Defesa Civil.
Alguém viu pontos de luz na montanha à noite, na chuva e ligou para as autoridades. Quando chegamos à base, um guarda estava à nossa espera, perguntando se estava tudo bem e se precisávamos de alguma coisa. Dissemos que estava tudo tranqüilo e ele nos conduziu até a estrada, onde fomos recebidos pelo Secretário de Defesa Municipal que anotou nossos dados e aconselhou juízo! Agonizando de fome, encontramos a Massa Di Casa funcionando, mas com a cozinha fechando. Contamos nossa história triste e fizeram duas lasanhas para nós. Destruídas rapidamente com um bom vinho.

A primeira providência foi matar a fome, a segunda seria dormir. Com nossas barracas alagadas, só nos restou à opção de pagar uma pousada. Banho quente e roupa seca foram bons demais.

No domingo fez um sol absurdo, mas a montanha ainda estava completamente molhada. Aproveitamos para descansar e torcer para que tanto calor não trouxesse chuva novamente. Trouxe!&nbsp, Enquanto estávamos jantando a chuva começou a cair. Insistimos, ficamos mais uma noite para terminar a via se o clima deixasse. Não deixou!&nbsp, A segunda-feira amanheceu cinza e molhada, nos demos por vencidos, espalhamos todo nosso equipamento para pegar um pouco de sol na calçada da pousada Kentinha, a cara dos curiosos que passavam era impagável. Por fim pegamos a estrada de volta, com todo nosso material de conquista pendurado na parede e sabendo que falta muito pouco para o cume.

E daí que a história começou a mudar, a cidade que nunca chove virou a cidade que chove todo dia. Na verdade é o 3º melhor clima do Brasil com estações bem definidas e clima bem previsível. E de fato choveu até o fim de abril. Mas não quer dizer que nesse intervalo não tentamos nada, tentamos mais uma vez.&nbsp, No dia 20 de dezembro a previsão pro fim de semana era animadora, a logística começou…..

Foi nesse dia, 20 que um email mal destinado caiu na lista de discussão da FEMERJ, era para digitar “FE”-lipe, mas a ferramenta completou para “FE”-merj…&nbsp, Era um email com detalhes explícitos de uma logística bem fascista de um ataque a montanha, o que claramente resultou em uma bela zoação por parte do nosso eterno Bernardo Collares.
Um telefonema do Berna onde não teve jeito, Flavia teve que contar toda a história:

&nbsp,&nbsp,&nbsp, Bernardo:&nbsp,&nbsp, -Vocês vão chegar na cidade as 21:30 e as 22:00 vão estar dormindo? Só se for com marretada na cabeça!
&nbsp,&nbsp,&nbsp, Flavia:&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp, – Não, não, marretada não, porque a marreta tá pendurada a 900m do chão…
&nbsp,&nbsp,&nbsp, Bernardo:&nbsp, – Caceta, novecentos metros?!?!?! P&amp,*%&amp,, putz, boa sorte, vai lá, pois quero que vocês terminem, porque agora eu quero ir lá repetir. Se eu não tivesse indo viajar, estaria lá semana que vem, mas assim que eu voltar de Chaltén pode ter certeza que vai ser a primeira via que eu vou repetir!!! Anota isso.

Dia 25 partimos para Madalena e para a desagradável surpresa, parede molhada, esperamos&nbsp, secar um pouco, conseguimos subir até o grande platô, resgatamos a metade do equipamento que estava ali, mas dali para cima a parede era só água e o saco estanque teve que continuar pendurado.

Em Janeiro de 2011, soubemos da trágica noticia do Bernardo, ficamos muito abalados, aliais, a comunidade inteira de escalada do Brasil ficou e após este baque, decidimos mais do que nunca terminar esta via. Tivemos que esperar passar o verão e as chuvas e somente em junho de 2011 tivemos a oportunidade de terminarmos.

Desta vez nos preparamos para fazer em dois dias, no primeiro subimos com equipamento pesado inclusive uma furadeira novinha até o platô onde passamos a noite. Seria uma noite perfeita se uma das redes não tivesse rasgado tudo bem, 120m de corda fazem um bom isolante.

No dia seguinte, num clima quase patagônico onde o frio era intenso, subimos até onde havíamos parado. Encontramos, após oito meses, o saco estanque rasgado e desbotado, porém ainda com todo equipamento deixado. Tudo completamente enferrujado e sem condições de uso, foram-se 8 mosquetões, 4 clifs, batedor, brocas, parabolts, marreta e o pior: uma furadeira!!!! Prejuízos a parte continuamos e terminamos a 15ª enfiada e a montanha deitou, mais 120m de costão e cume!!!! Em uma laje de pedra deixamos um livro de cume e prestamos nossa homenagem ao nosso querido e eterno amigo Bernardo Collares.

Certamente foi o por do sol mais inesquecível de nossas vidas, nesse Reino Mágico onde, por meio de algum encantamento, nos sentimos as pessoas mais felizes do mundo!!!&nbsp,

Veja o Croquis da via aqui

Fonte: Escalada JPA

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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