A desafiadora Travessia Bairro Alto x Marco 22: 1º Dia

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Fazia um bom tempo que queria fazer uma travessia na Serra do Ibitiraquire. Sugeri ao Tiago Korb de programar um trajeto saindo da Fazenda do Bolinha, que compreenderia 10 cumes. Mas ele nem deu muita atenção. Disse que seria complicado pela logística de transporte, clima e outros fatores.

Não desisti, pois queria realizar esse sonho e de preferência no mesmo ano ainda! Então recorri ao nosso amigo Fábio Carminati, que também tinha interesse em fazer alguma travessia nessa Serra. Combinamos de os dois ficar pilhando o Tiago em montar o trajeto e fazer a travessia.
 
Passamos semanas juntando informações e lendo relatos, os mais interessantes mandávamos para o Tiago tanto via facebook quanto por e-mail. Isso sem contar das vezes em que eu tocava nas palavras “travessia” e “Serra do Ibitiraquire”.
 
Mas a insistência valeu a pena! O relato dos perrengues despertou o interesse no Tiago. Próximo passo seria conseguir os dados de GPS da região com amigos montanhistas dele para montar o roteiro, uma vez que ninguém conhecia a Serra do Ibitiraquire muito bem. Eu tinha ido uma única vez fazer a trilha até o Pico Tucum. Já o Tiago havia ido ao Pico do Paraná anos atrás em um dia de chuva, ou seja, não conseguiu ver nada.
 
Com ajuda de vários amigos montanhistas (entre eles Elcio Douglas e Mildo Junior), o Tiago foi conseguindo os trajetos para GPS que passavam por diversos cumes. Na minha ideia, o Pico do Paraná e o Ciririca não poderiam ficar de fora do planejamento. O primeiro por ser o cume mais alto da região Sul do país. O segundo por levar a fama de “K2 paranaense”, o que despertava minha curiosidade.
 
Mas onde começar e terminar a travessia? Os ajustes foram sendo feitos com o passar dos dias. De repente vem à tona o conhecimento da existência da Travessia Bolinha x Marco 22. A ideia original da travessia era fazer 10 cumes da Serra do Ibitiraquire e se desse tempo ou se não chovesse, poderíamos fazer esse trecho da Serra da Graciosa até o Marco 22 da Estrada da Graciosa.
 
Surgiu então o Getulio Vogetta com outra opção de roteiro via trilha da Face Leste do Ferraria. Conseguimos o trajeto de GPS dela e desta forma se consolidou como opção de início da nossa travessia, acrescentados ainda, mais alguns cumes. E por fim, o trajeto final seria até a Estrada da Graciosa, terminando no Marco 22.
 
Diante do desafio, da elevada altimetria, da promessa de encontrar mato bem fechado, o Tiago propôs de adotar o sistema de travessia ultralight. Ou seja, usar as mochilas de 30L em vez das cargueiras. Para isso, levamos o mínimo necessário e itens bem técnicos que ocupam pouquíssimo espaço. Deixamos o dormitório da barraca, levando apenas o sobre teto e o foot print por exemplo. E assim foi: total desapego do conforto para levar somente o que era absolutamente necessário.
 
A equipe foi formada com base em outras travessias pesadas que fizemos (Fábio Carminati, Luciana Moro, Marcelo Nava e Tiago Korb). Apenas faltava conseguir uma janela de pelo menos 5 dias de tempo bom. O que naquela região já é difícil, pois chove em mais de 270 dias no ano. Em ano de El Niño é ainda mais difícil! Mas o São Pedro colaborou. A previsão do tempo estendida marcava 10 dias de sol na segunda quinzena de agosto. 
 
Íamos nos preparando, deixando equipamento e comida em separado na medida em que a previsão do tempo se confirmava. 
 
Viajar da região central do Rio Grande do Sul para Curitiba não é nada agradável. São pelo menos 14 horas sentada dentro de um ônibus. Mas o sacrifício vale a pena se o tempo ajudar. E assim eu e o Tiago partimos de Santa Maria RS na tarde do dia 18 de agosto rumo à capital paranaense, onde a amiga Sandra Elize nos receberia para fazer a logística até Antonina.
 
1º DIA: Terça-feira 19/08/2014.
 
Nosso ônibus chegou na rodoviária com mais de uma hora de atraso. O Marcelo e Fábio já nos esperavam na rodoviária. Assim que chegamos, encontramos eles no local marcado e partimos para a casa de minha mãe, onde deixaríamos nossas roupas de “civis” de viagem para trocar pelas roupas de trekking.
 
Em seguida, fomos ao encontro de Sandra, quase vizinha, para partir para Antonina. Durante o trajeto fomos conversando sobre nosso planejamento de travessia e demais assuntos sobre montanhismo.
 
A Sandra, em um determinado momento, me alcançou um pacote e pediu para que escolhesse uma bandana de presente. Escolhi uma de temática florida com verde, que poderia usar o lado estampado ou o de cor única para combinar com minha calça da travessia. Assim, já coloquei o presente na cabeça para usá-lo durante a travessia para dar sorte (sim, eu acredito nessas coisas). ::hãã2:: 
 
Descemos pela Estrada da Graciosa com tempo bom. Essa foi a terceira vez que passei pela estrada e a primeira com tempo bom! A medida que descíamos, ia se revelando a belíssima mata Atlântica que cobria as imponentes montanhas. Ah, as montanhas! Várias delas eram visíveis durante o percurso, e uma boa parte delas não faziam parte da nossa travessia.
 
Tentamos avistar o Marco 22, o ponto final da travessia, mas não enxergamos. Então combinamos o resgate de volta no primeiro Recanto da Graciosa. Depois de 1:40 de estrada, chegamos a Antonina e, em seguida, no Bairro Alto e finalmente na Fazenda Lírio do Vale de onde começaríamos nossa longa pernada. Descemos do carro e nos despedimos de nossa amiga Sandra. 
 
Iniciamos a Travessia em torno das 11:40, começando pela trilha da Conceição. O dia estava bastante ensolarado com algumas nuvens encobrindo os cumes das montanhas.
 
Nós estávamos a 190 metros de altitude e teríamos que atingir o cume que tinha 1745 metros de altitude até o final da tarde. Parecia ser uma missão quase impossível! 
 
Passamos pela ponte Indiana Jones por volta das 12:40 e descemos até o Rio Cotia para almoçar. Fizemos um lanche rápido e retomamos a caminhada. 
 
A trilha da Conceição é muito bonita. Durante o seu trajeto íamos admirando a beleza de sua vegetação e brincando que em seguida a “barbada” iria terminar, afinal, tínhamos que subir mais de 1700 metros até o primeiro acampamento.
 
A trilha de subida era sinalizada com um pneu. Em um determinado ponto ficamos procurando o tal pneu à esquerda da trilha. Achamos meio escondido pelo mato. 
Subimos o degrau e a parte divertida começou. Muito mato fechado durante a subida. 
Em seguida começaram as cordas, opa, a primeira não era corda, era mangueira de bombeiros.
 
Mais adiante o mato fechado diminuiu e a trilha começou a ficar mais íngreme e mais bonita, e começando a ter vista dos demais cumes. 
 
Ao lado esquerdo se via o paredão do Ibitirati, mas o cume ainda estava coberto por nuvens. Mas depois o céu ficou mais limpo e podíamos ver também o Pico Paraná. 
 
Chegou o primeiro trecho de corda. O pessoal subiu sem maiores dificuldades. Eu me agarrei na corda e me puxei para cima. 
 
Mas não via a hora de chegar no “degrau” da face leste do Ferraria. Quando estávamos montando o roteiro da travessia, fomos informados desse trecho de maior dificuldade. Então eu e os demais ficamos imaginando como seria.
 
Enfim, chegou o degrau. E realmente era merecedor da fama de ser um “bicho papão”. Um trecho da subida com inclinação média de 80 graus e em alguns pontos de 90 graus.
Entre a pedra e o abismo havia um trecho de chão um pouco maior que meu pé. A pedra do degrau era quase da minha altura (1,60 m). Haviam dois lances de corda: o da primeira subida, que descia até a metade do degrau; o segundo ficava preso nas duas pontas. O Tiago e o Marcelo foram os primeiros a subir. Nesse momento eu fiquei observando o modo de como eles subiam e pensava como eu com minhas pernas curtas ia alcançar aquela pedra. O Marcelo escorregou o pé na primeira tentativa, depois se agarrou na corda e usou bastante força para subir. Se os homens penaram para subir pela corda, imagina o que seria para mim!
 
Chegou a minha vez. Envolvi bem a mão direita em um dos nós da corda e a esquerda no corpo da corda.
 
Apoiei o pé na pedra, embalei para puxar na subida, mas deslizei o pé, voltando à base. O Tiago falava: 
– Apoia os pés na pedra e firma bem com as mãos. Tenha no mínimo 3 pontos de apoio sempre.
 
Mas não adiantava muito, além da pedra lisa o meu ombro esquerdo também não estava ajudando, visto que o havia lesionado ele umas semanas antes em Santa Maria. Além de ele estar fraco, machucá-lo de novo e logo no início da travessia seria algo péssimo, ainda mais sabendo que teríamos diversas escalaminhadas, cordas e trechos de via ferrata pela frente. E para completar, havia um abismo logo atrás de mim. Um erro poderia ser fatal!
 
Fiquei um olhando a pedra procurando onde apoiar melhor o pé. Mas para todo o problema tem uma solução. Chamei o Fábio e pedi para ele firmar a perna bem na frente do degrau e pedi para o Marcelo ficar supervisionando a minha subida. Firmei bem as mãos na corda, peguei impulso na perna do meu amigo e subi. No fim do primeiro lance de corda, o Marcelo me deu a mão e assim e alcancei o segundo lance de corda, superando o famoso degrau do Ferraria. 
 
O próximo trecho de corda foi tranquilo de passar. Mas teve corda porque o Tiago levou a dele. A corda da trilha estava cheia de limo e para completar sem a capa. ::otemo:: 
 
A tarde avançava e a alteração da posição do sol projetava a sombra das montanhas ao longo do vale. Ou a luz solar passava entre as frestas entre os imponentes paredões, formando um efeito incrível.
 
Estávamos determinados em chegar ao local do acampamento planejado, mesmo que seguíssemos a trilha durante a noite. A subida final até o local do acampamento, no ante cume do Ferraria, foi bastante íngreme, com uma escalaminhada interminável. Era um barranco bem liso, e subimos ele quando já escuro, agarrando a vegetação.
 
Eu estava com a cabeça latejando da enxaqueca provocada, possivelmente, pela noite mal dormida durante a viagem. Na verdade, enxaqueca é uma certeza toda vez que viajo de ônibus até Curitiba. Dessa vez teve o plus da noite mal dormida. Isso fez com que eu fizesse o último trecho da subida com mais vontade.
 
Chegamos ao local do acampamento em torno das 18:40. Ali tinha um espaço justinho para três barracas. Começamos a ajeitar o camping. Deixei minha mochila com o Tiago e avisei que ia para um canto mais escuro do cume fechar um pouco os olhos, pois a dor de cabeça estava muito forte. Achei uma moita e deitei ali e fiquei observando as luzes de Paranaguá e Morretes por trás do Pico Paraná e de Curitiba mais para o sudoeste.
 
Fechei os olhos que estavam doendo e acabei cochilando um pouco. Acordei com as vozes dos guris e encontrei o acampamento pronto. Meus olhos doíam muito e anunciei que ficaria com os olhos fechados um pouco. Não quis tomar remédio, sou meio teimosa para essas coisas. Descansando naquela noite estaria 100% no próximo dia. 
 
O Tiago aprontou uma ótima polenta com calabresa e queijo provolone para a janta. Assim que jantei, me ajeitei para dormir pelas 20:30.
 
No meio da madrugada acordamos com roncos bem altos. Eu e o Tiago ficamos rindo e sem jeito de acordar o nosso amigo. De repente o Fábio pergunta da barraca:
– Vocês estão acordados? Eu não consigo dormir com esse ronco.
 
O jeito foi acordar o Marcelo. Depois de muita insistência, chamar pelo nome e sacudidas na barraca, ele acordou. ::lol4:: 
 
Fora a sinfonia de ronco, a noite foi maravilhosa! 
 
Devido à dificuldade da trilha da face leste do Ferraria, apelidei carinhosamente a montanha de “Ferraria com tua vida”. ::lol3:: 
 
Dados do 1º dia da travessia:
Distância: 10,11 Km a pé.
Altimetria: 1742 metros de aclive acumulado e 186 metros de declive acumulado. 
 
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Sobre o autor

Luciana Gomes Moro

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