A loba do Sabaúna

0

Qdo empreendi o saudoso ferro-trekking “Mogi-Guararema”, uma estação do trajeto despertou minha atenção pelo charme q destilava. Era a Estação Sabaúna, q por puro desconhecimento e falta de tempo não pude me estender em maiores explorações dos atrativos do município em q se está inserida. Mas cá estou outra vez retornando a Sabaúna pra matar essa desfeita, mas não mediante trilhos férreos e sim duma emenda de caminhos – picadas extrativistas e estrada de chão – saindo do seu extremo sul, as margens da Estrada do Rio Acima. O resultado é uma breve travessia q rasga o vale q abraça as nascentes do Ribeirão Putim, e inclui as refrescantes Cachus do Bernardino e de Sabaúna. Uma pernada semi-rural de menos de 18km ideal prum dia quente de verão q descortinou uma face menos conhecida deste pacato distrito situado ao norte de Mogi das Cruzes. E q, neste caso, terminou com um inesperado “showzinho erótico”.

Após longa espera no terminal ao lado da Est. Estudantes da CPTM, as 9hrs enfim embarquei no bus q me levaria pros cafundós rurais de Mogi, cujo horário irregular é apenas de duas em duas horas. O “E5-11 Rio Acima” rasgou então  a horizontalidade da cidade e tomou direção leste, e num piscar de olhos o cinza habitual das construções deu lugar aos tons esmeralda típicos desta região oportunamente chamada de “Cinturão Verde de SP”. Praticamente sozinho no interior do latão e com um dia de atmosfera de total transparência no firmamento, avistei perfeitamente o recorte escarpado do Pico Itapanhaú e a Pda do Sapo, emolduradas pela janela, ao sul. Mas foi somente qdo o asfalto deu lugar a uma precária estrada de terra q aparentemente a aventurinha daquele dia mostrava começar antes da hora; o solavanco trepidante envolto numa nuvem de poeira avermelhada dentro do latão era mostra viva q existem lugares tão trash de acesso como na Bolívia.

As 10hrs enfim saltei do busuca as margens da Estrada Rio Acima, mais especificamente no minúsculo bairro rural de Santa Catarina, q se resume à meia-duzia de casebres ao largo da poeirenta estrada de terra. Minúsculo, porém charmoso e simpático, é impossível não se encantar com a arquitetura colonial do casario ao redor, onde destoa a Igreja Sta Catarina, um cruzeiro e uma antiga bica. No interior da construção de tons rosados  – repleta de antiguidades e q serve de boteco local  – qual minha surpresa ao encontrar Dna Maria Isabel, filha do lendário Seu Bernardino, antigo tropeiro q praticamente fundou td aquela região e cuja imagem ilustra um enorme painel numa das paredes do bar.

Sob o olhar curioso dos poucos moradores na rua, ajeitei a mochila, peguei água e dei inicio a pernada do dia, q começara terrivelmente enevoado, mas agora esquentava com sol a pino pairando sob minha cacholas. Retrocedi então um pouco pela estrada observando já o canteiro, passando por pelos restos duma carroça até dar no primeiro cercado q nasce perpendicular á via principal. Abandono a dita cuja e acompanho a cerca, mas não por muito tempo, pois o mato nos obriga logo a passar pro outro lado e, sempre indo pro norte, num piscar de olhos intercepto a trilha pretendida.

Bem batida, gramada e bastante evidente, este trecho inicial da pernada coincide com outra q não é nada mais q a tal “Trilha do Bernardino”, percorrida meses atrás e da qual volto a versar detalhadamente por reparar poucas, porém significativas, mudanças. Tomo então a direita indefinidamente, primeiro bordejando um morro pra depois ganhar a suave crista dos sgtes, totalmente forrados de capim dourado varrido pelo vento. Mas é somente após tropeçar com um bando de carcarás no caminho q finalmente a subida aperta e ganha cada vez mais altitude. Olhando por sobre o ombro observo Sta Catarina se perdendo atrás de colinas douradas e agora nossa paisagem se preenche de alta morraria e fundos vales forrados de muita vegetação secundária.

Após bordejar uma encosta entupida de eucaliptos na encosta e ganhar a crista ste, passo pelo pto mais alto de td trajeto, a exatos 850m, onde a trilha então desce forte em direção ao vale sgte. A picada agora torna-se uma vala úmida e terrivelmente escorregadia onde a pernada toma alguma cautela pq derrapar no chão é coisa fácil. Alem disso, nalguns trechos é preciso contornar algumas arvores tombadas q trouxeram meia floresta junto, num processo q se mostra bastante intuitivo e nada do outro mundo. Logo adiante chama a atenção inúmeras ossadas de algum cavalo, assim como nossos ouvidos tb se inundam com o som inconfundível de água não mto longe, e será justamente sua fonte q irá nortear minha direção.

Após tropeçar com uma assustado calango descansando na trilha (q não pensou duas vezes em se pirulitar mato adentro), passar pelos únicos exemplares de pinnus do trajeto e bordejar dois morros q anunciam finalmente os domínios dos reflorestamentos de eucaliptos é q o som de água correndo aumenta consideravelmente. E assim a vereda desemboca noutra maior, onde tocos pra direita (sempre norte) e onde o som de água correndo furiosamente no vale ao lado nos detém. Até ali o terreno era relativamente aberto e seco, o sol martelava a cabeça faz tempo e o calor já havia encharcado minha camisa, motivo q aquele som de água soava como musica aos ouvidos.

Me deparo com a discreta picada nascendo da principal e toco pra baixo, descendo a encosta íngreme e as 11hrs caio na Cachu Bernardino, onde me dei o luxo duma breve parada pra banho. A cachu se resume a uma série de corredeiras lajotadas tão encachoeiradas qto íngremes, onde as águas são depositadas num gde poço intermediário pra depois prosseguirem seu curso serpenteando a morraria sgte. E foi nesse oportuno poço q refresquei a alma naquela manha quente e ensolarada. Aliás, minha rota acompanharia este curso dágua um bom tempo logo depois. Em tempo, as pedras aqui são tremendamente escorregadias feito sabão e é preciso andar cuidadosamente sobre elas.

Volto a trilha principal 10min depois e prossigo minha pernada solitária, sempre tocando pro norte. O som dum trem apitando reverbera por td vale dando a impressão de estar perto, mas é mero engano, pois a linha mais próxima esta alem dos 15km dali. A vereda então desce pro vale sgte acompanhando o riozinho a distancia, bordeja um bucólico lago encavado na baixada e serpenteia sinuosamente em nível a encosta do reflorestamente sgte. Surgem bifurcações q podem confundir, mas basta intuitivamente se manter sempre na principal. Não tarda pro caminho ganhar contornos similares aos da Estrada do Taquarussu (da travessia “Taiacupeba – Paranapiacaba”)  pela enorme qtidade de umidade valas, brejos, charcos e banhados presentes ao longo do trajeto, onde não raramente sou obrigados a seguir rente o mato na margem da trilha pra não chafurdar na lama feito suíno.

Mais adiante reparo q o rio passa sob a gente através dum sumidouro e nos acompanha agora pela direita por um bom tempo. Na verdade agora serpenteamos o fundo do vale dum gde afluente do Ribeirão Putim, q marulha mansamente a nossa direita. Mas as 11:30hrs o som de água caindo pela esquerda, da encosta, me obriga a breve parada, desta vez pra molhar a goela e encher o cantil com o precioso liquido. Uma oportuna bica despeja água cristalina e segura q abastece as garrafas e goelas menos favorecidas, assinalando pontualmente q esta é nossa ultima água confiável de td percurso. Uma revoada de reluzentes borboletas azuladas dá alguma cor aquele panorama predominantemente verde e semi-selvagem e o som ambiente se resume ao canto metálico das arapongas.

Logo adiante o caminho embica e uma piramba diminui meu ritmo, ao mesmo tempo em q o som do ribeirão ao meu lado aumenta consideravelmente, denunciando uma seqüência de quedas encachoeiradas escondidas. E é aqui q tenho meu trecho “exploração do dia”, abandonando a via principal através duma saída pela direita q parece ser uma antiga vereda parcialmente fechada, mas discernível, onde perco altitude num piscar de olhos e desemboco margens do Rio Putim. Conforme previsto, este trecho escondido era bastante encachoeirado e terminava num enorme poção cercado de muita mata, mas o q me chamou a atenção foram os restos dum “rancho” construído no exíguo espaço q a margem proporcionava. Restos de plásticos, fogueira, toldo improvisado com galhos, etc. Um ótimo local de pernoite, realmente. Queria prosseguir a aventura rio abaixo (q fica pruma próxima trip, claro!), mas as botucas estavam impossíveis naquele dia me obrigando a zarpar imediatamente dali. Mas não sem mais um rápido tchibum no poção pra renovar novamente a alma, claro!

Retorno então pelo mesmo caminho sem dificuldade alguma, atentando pras marcações deixadas na mata fechada neste trecho onde picada inexiste e logo emirjo outra vez na vereda principal pra dar continuidade a breve travessia proposta. Não tarda pro caminho nivelar agradavelmente de vez, abandonando tanto a baixada como a cia do rio a minha direita, q fica lá embaixo e ruma pra leste. Com o caminho mais seco a caminhada se torna bastante aprazível e o melhor, no frescor da sombra. Os eucaliptos a muito se foram e deram lugar a exuberante mata secundaria, com destaque pra charmosa plantinha avermelhada q orna a trilha td tempo. Visivelmente percebo q palmilho por uma estrada extrativista desativada a muito tempo, tendo em vista o corte vertical na encosta. Surgem algumas (poucas) bifurcações no trajeto, mas o sentido é bastante obvio. Não tem erro, a rota sempre vai de encontro a direção norte.

Após a vereda se alargar mais um pouco logo adiante, tropeçar com enormes cupinzeiros q mais parecem foguetes, ver algumas saracuras fugindo assustadas diante nossa presença e clicar os belíssimos liros vermelhos q pincelam a vegetação rente a vereda, desemboco enfim noutro caminho maior q marca o fim da “Trilha do Bernardino”, após tranqüilos 9km. Fim de trilha as 12:45hrs mas não de travessia, prossego então pelas estradas sgtes mergulhando novamente noutro vasto reflorestamento de eucaliptos ao norte. Qq semelhança com a travessia parananense “Araçatuba – Monte Crista” não será coincidência.

Mas as 13hrs desemboco na Estrada da Lagoa Nova, onde o sentido obvio a tomar é pra esquerda, indefinidamente. Daqui em diante o caminho prossegue em meio a gigantescos reflorestamentos, no aberto, onde qq sombra é bem vinda. Após cruzar a pitoresca Torre da Pata, as 13:30hrs faço uma rápida parada mas não pra descasar e sim pra colher limões duma frondosa arvore a beira de estrada. Mas dando continuidade a pernada me deparo numa bifurcação significativa, marcada por um bucólico laguinho a minha direita: como a via da direita me leva invariavelmente pro norte, pra Estação Luis Carlos, tomo a sua variante da esquerda q toca pra oeste.

E tome chão interminável envolto em morros forrados de muita vegetação. Uma ou outra chácara aqui ou ali pincelam este trecho onde praticamente não observo ninguém e minha presença é apenas sentida por estridentes cães q não tornam minha passagem desapercebida. Nalguns trechos de morros reflorestados tomei atalhos em meio o espesso arvoredo e até outro por dutos enterrados, de modo a fugir do sol inclemente q castiga e desgasta sem dó o corpo, mais até q a própria pernada, q alterna subidas e descidas constantemente. Mas apesar destes bem-vindos caminhos alternativos, acredito q 70% do resto da pernada foi mesmo através desta enfadonha e cansativa estrada de chão. E nesse ritmo compassado q fui contornando as elevações sgtes q as 13:45hrs cruzei o limite municipal onde deixo oficialmente Guararema pra adentrar em Mogi. Logo tropeço com mais uma bifurcação e me dirijo em direção ao ramo da direita, q vai na direção desejada, ou seja, norte. Como referencia existe uma casinha com a placa Recanto Azul, e a partir dali minha rota não muda mais de direção ate o final. O duro é q este trecho é totalmente desprovido de sombra e a morraria desnuda de pasto ao redor tb não colabora em nada pra tornar a paisagem mais amena e agradável.

Após passar por baixo das linhas de alta tensão e passar pelas primeiras casas de Sabaúna a paisagem muda totalmente. Mais gente e mais transito marcam a volta a civilidade. Cheguei então as 14:30hrs na Rua Francisco Rodrigues Mathias, q resumidamente é a “Paulista” deste pequeno distrito e bordeja a linha férrea. A Estação de Sabaúna é a casinha mais simpática e charmosa da rua, em frente da praça e da Igreja Nossa Sra do Carmo, q se pode observar rente os trilhos da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), junto de algumas composições ferroviárias bem antigas estacionadas e já bastante corroídas pelo tempo. Além da estação – q foi construída no séc. XIX e tem um Centro de Infos Turisticas q, na ocasião, encontrava-se fechado – o local possui a casa do chefe da estação, a caixa dágua q era usada pra abastecer a maria-fumaça, o pátio da estação e a vila de casas dos funcionários, q basicamente se resumem ás simpáticas residências q margeiam os trilhos, de ambos lados.

Cruzo então ate o outro extremo do distrito em direção a Estrada de Sta Catarina, rumo a Cachoeira/Pedreira. Não tem erro, existe boa sinalização e qq duvida basta perguntar aos locais, bastante prestativos e solícitos. O calor esta de rachar e o q mais quero é um bom e refrescante banho na cabeça. Mas não ando nem 1km sentido sul pela estrada de chão e já avisto um morro escancarando sua face leste na forma dum gde paredão rochoso, q pelo q sei pode ser utilizado pra pratica de rapel. O lugar parece uma cratera no meio do morro. Como musica aos ouvidos ouço o rugido duma pequena cachu bem ao lado, onde um pequeno afluente despeja o precioso liquido duma altura de menos de 20m e a água q cai num pocinho raso, na base da pedreira.  Em tempo, a Antiga Pedreira da Estrada de Ferro Central do Brasil era a fonte de material para a construção de pontes e do leito ferroviário.

Pois bem, dali bastava apenas descer uma curta trilha em meio ao capinzal da encosta e cair na cachuzinha, só q foi aí q reparei q não estava sozinho e no lugar já havia um jovem casal desfrutando a queda. “Droga!”, pensei. “Neste calor decerto só tão ali pra bater foto e ir embora!”, conclui. Como queria ficar sozinho na cachu resolvi esperar a saída deles e subi o morro de modo a, enqto isso, clicar outras  panorâmicas da pedreira. Foi ai q reparei q os jovens deixaram-se levar pelo romantismo e aparente solidão daquele bucólico lugar.
Entregues ao calor escaldante daquela tarde e a intimidades típicas a dois, amaram-se com paixão desenfreada  e  despudorada,  com direito a fantasias, desejos e luxuria q deixariam corados td elenco da Brasileirinhas e Buttman juntos.

Bem, enqto rolava td aquela sacanagem  la embaixo, o jeito foi este aqui q vos escreve ficar ali, pegar a senha da cachu e aguardar sua vez, enfiado num arbusto próximo sob um  sol de rachar côco. Paciência, né? Sem nenhuma revista de consultório ou joguinho no celular á mão, pra matar o tempo não restou opção senão dar vazão a minha veia voyerística, apreciando de camarote o acrobático e barulhento “acasalamento” daqueles espécimes nativos, cujos corpos mudavam constantemente de posição na margem arenosa da queda. Vale destacar q o som ambiente de td aquele panorama resumia-se ao estrondo da queda mesclado ao intermitente uivo duma “loba” pra lá de entusiasmada ecoando por td pedreira, naquele pretenso e suposto isolamento.

Acho q só pude desfrutar da cachu coisa de meia hr depois, qdo o casal zarpou dali fumando seu tradicional cigarrinho pós-coito. Doido por um banho fiquei um bom tempo embaixo da refrescante queda, rindo da minha hilária situação anterior, onde busquei não atrapalhar o apimentado namorico dos pombinhos e tratar de não ser visto ao mesmo tempo. Zarpei dali de alma gostosamente lavada, pela terceira vez naquele dia, em direção ao centro do vilarejo. No boteco em frente da estação fiquei tomando minha sagrada cerveja pós-trip enqto aguardava condução de volta a Mogi, q passa ali mesmo de meia em meia hr.

E dessa forma sacana, cômica e pitoresca conclui mais um descompromissado bate-volta  pelas bandas do Alto Tietê, ideal pra estes dias quentes de verão onde a tendência é abandonar montanhas e procurar vales com rios e cachus refrescantes. Por ser uma travessia curta, é possível dilatá-la mais um pouco emendando o retorno a Mogi através da agradável caminhada pelos trilhos da Central do Brasil, coisa q adiciona, no máximo, duas horas sussas ao rolezinho. Se preferir pode tb “apimentar” a coisa e seguir a dica sugerida pelo jovem e incauto casal da pedreira. Mas vá preparado. Humor e sátira nos esportes outdoor são implacáveis, o segredo inexiste e nada passa desapercebido. É assim q historias nascem, crescem e se espalham com rapidez incrível. Ainda mais qdo as montanhas podem ter olhos, bocas e ouvidos. Historias como a “Loba de Sabaúna”.
 

Compartilhar

Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

Deixe seu comentário