A Pedra Judeu

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Saindo da mata fechada, escura e úmida onde poucos raios de sol atravessam o compacto dossel superior da floresta, começam os campos de altitude numa explosão súbita de luz e calor. A subida é árdua até este lugar e muito mais exigente será adiante porque é apenas o início da rampa do Camapuã, mas os largos horizontes serranos já estão visíveis desta ampla laje de pedra escurecida, desnuda e aquecida pelo sol.

Exaustos pela ralação dentro da mata é, a Pedra Judeu, o primeiro recanto acolhedor para um bem-vindo descanso, respirar ar puro e repor as energias para enfrentar a outra metade da montanha. Comendo tranquilamente uma fruta com os olhos hipnotizados pelo vibrante tapete verde que cobre vales e montanhas até tingir-se de azul nos limites do horizonte e algum curioso sempre pergunta a razão deste nome, um tanto exótico, para uma laje de pedra disforme que mal se destaca do capim e não raro se satisfaz com alguma teoria conspiratória envolvendo nazistas, comunistas e outros sodomitas, inventada de improviso por um gozador oportunista.

Quando a verdade é, talvez, até mais interessante que as lendas espalhadas pelos engraçadinhos de plantão, mas é fato que a pedra ainda não tinha nome algum no início do século XXI e foi também neste tempo que surgiu nos “meios alpinos” a figura da Juracy, morena brejeira de sorriso fácil e olhos azuis luminosos. Garota sapeca e malandra como o próprio saci pererê que se especializou na arte do engôdo e da trapaça.

Sua proximidade tornou-se garantia de cizânia dentro do clube que a projetou e jamais escondeu o intenso prazer que sentia com a humilhação decorrente de suas armadilhas, simples e repetitivas, mas eficientes com suas vítimas.

O Roberto, de alma introspectiva e carente, se encantou de imediato com a atenção recebida e fez juras de amor eterno tanto mais verdadeiro quanto mais vazio ficava o copo. De fato só uma vez teve real chance com a moça, depois de carregar todas as tralhas até o cume da montanha, armar acampamento e se enfurnar na barraca ouvindo amargurado a conversa fiada dos amigos bebendo vinho barato e contando piadas surradas num animado bivaque ao lado. Seu coração transbordou de alegria ao ouvir uma última frase.
    – Ok! Ok! Hoje vou dar prá ele!  

E depois de um último gole se apressou em cumprir a palavra, mas nem com torcida e plateia favoráveis a sorte colaborou e nos minutos seguintes desandou um tremendo temporal que obrigou todos os amigos a invadir a minúscula barraca em busca de abrigo. Pobre Roberto passou a noite junto à amada, mas espremido num canto com o saco de dormir ensopado debaixo da goteira gelada.

Aldo era “O Cara!” Radical e autossuficiente em quase tudo, mas foi pescado na Rede Social. Passou de madruga pelo apartamento da Juracy e lotou o porta-malas. “Para a serra eu vou, no cafôfo me aninhar, sem pressa esperar a chuva passar” pensava alegremente com aquele sorriso sacana no canto dos lábios. Quanto mais se aproximavam da serra, pior ficava o tempo e mais aumentavam as expectativas: “vou me dar bem!”.

Pagou o pedágio na fazenda com a certeza de investimento com retorno imediato e, carregado feito um jumento, subiu até a Pedra do Grito, passaram a Lagoa do Jacaré e nas proximidades do Getúlio já sentiam no ar carregado o inconfundível aroma de “mato queimado”. Trocaram cumprimentos e amenidades com o estranho, o baseado trocou de mãos algumas vezes e se transformaram em amigos de infância. Resolveram de comum acordo subir o Caratuva e a meia encosta a chuva fina já pesava na mochila, mas na saída da mata era pura tempestade.

Pelo caminho foi juntando pedaços de conversa desconexos até ouvir uma estranha pergunta: “Trouxe o vinho?” Seguido de uma lacônica afirmativa e em silêncio sentiu cair a ficha, já se conheciam. O chão cedeu e a raiva subiu aos olhos quando percebeu que não seria convidado para um ménage. Improvisou uma desculpa esfarrapada e chispou dali fervendo de ódio, diretamente para o carro chorar as pitangas.

Juracy é maquiavélica e sabe torturar, sente prazer em atormentar a alma até de completos desconhecidos. No meio da semana, descendo do cume do PP com uma amiga, encontraram subindo uma tropa de soldados em exercício nas proximidades do Abrigo de Pedra. Tudo dentro do rigor militar exaustivamente explorado pelo cinema e nas clareiras do A1 tiraram as roupas para secá-las ao sol. De calcinha e sutiã esperaram nas pedras o retorno da tropa, com fingida indiferença, só pra ver a soldadesca suando em bicas no sol forte recitando palavras de ordem à alta voz debaixo da vigilância atenta do sargento feroz.
    – Bando de bichas! – exclamou indignada quando já sumiam no interior das matas que cobrem as encostas do Caratuva – Gosto de homem com pegada, daqueles que não pedem autorização para fazer uma mulher feliz.

Só não contou isto ao Paulo que tarde da noite recebeu um telefonema convidando-o para comer pipoca assistindo a um vídeo alugado.
    – As crianças estão com os avós e me sinto muito só – insinuou algo mais.

Comprou pipoca de microondas e vinho tinto na posto de gasolina e chegou à porta com cara de cachorrinho feliz pelo agrado do dono. Luzes apagadas, tigelas de pipoca quentinha, tim-tim e começou a dança da mão boba por debaixo das cobertas. Risadas e investidas patéticas, cortadas relutantes que mais e mais incentivavam a continuidade do jogo até armar um xeque-mate. Pulou em cima sem muita convicção e deixou espaço para a fuga da rainha que deslizou por entre as almofadas já atirando:
    – Ficou maluco? – esbravejou – Seu tarado, não foi com esta intenção que te convidei para minha casa.

Erro fatal! Gaguejou e tentou em vão se desculpar. A situação tende para pior, perdeu! Game over! Arrastou-se para fora, enxotado, rabo entre as pernas como cão sarnento. Humilhado e enraivecido volta correndo para seu canto lamber as feridas e tudo que deseja é uma garrafa para afogar as mágoas em fluídos etílicos. Quer que o mundo se acabe, mas nem bem trancou a porta quando o celular toca estridente. Na outra ponta ouve aquele amigo gozador:
    – Se deu mal! A Ju acabou de me ligar dizendo que você é tarado e te botou pra correr depois de tentar agarrá-la a força. Ficou doido, Cara?

Pobre Paulo caiu na boca do povo e negar deixou de ser uma opção.

Nem uma semana se passou e Juracy já tinha novo “cristo”. Desceram do ônibus no Posto do Túlio e no meio da tarde subiram animados pelas margens barrentas do Ribeirão Samambaia. No alto da serra avançaram em direção ao Tucum, mas havia uma pedra no meio do caminho e saindo da mata trataram logo de derrubar as mochilas e desenrolar os isolantes para fumar um artesanal de frente para o sol poente.

Não houve tempo para enrolar e a erva se perdeu no campo com a mesma violência que a mão deslizava por debaixo da roupa, escorregando a calça legging para as canelas. Aturdida e imobilizada, imprensada de lado contra as cargueiras nem esboçou reação antes da rola arrombar seguidas vezes a porta perseguida. Ajeitou-se como deu e em meio ao soca-soca acabou montada de quatro sobre a mochila. Quando estava próxima da chegada sentiu um dedo explorador e outro seguiu o primeiro, mas não tinha pernas para correr, boca para contestar e nem vontade para reagir. Lambuzou-se toda ao entender que não havia saída, desta vez “tomaria no rabo”.

Gritou e urrou, ecoando por todo o vale abaixo, mas só um bando de periquitos se manifestou numa árvore próxima. Gemia de prazer e dor, semi entorpecida sobre o isolante térmico e depois de um beijo no pescoço recebeu entre os dedos, um baseado aceso. Deslizou para trás, meio de lado e aninhou-se no calor do companheiro. O sol se despedia no horizonte.

    – Toma posse e come como homem – pensou – nada a ver com estes que amarelam, só faltando pedir licença prá meter e desculpas por gozar…

 

Aviso: Este texto é ficção e não possui base em fatos ou pessoas reais, qualquer associação é mera coincidência.

 

 

 

 

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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