A Travessia da Farinha Seca – 2

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Na cachoeira o Mamute já apresentava as dores de uma lesão mal curada que acabou por forçar sua desistência antes do primeiro mirante, mas o sol já ameaçava romper com a cortina de neblina. Isto inflou os ânimos para mergulhar no buraco em direção ao Pequeno Polegar onde o Elcio, Moisés e a Barbara já despontavam nos campos. No Casfrei, o sol já ardia no lombo, mas no Esporão do Vita, quando alcançamos os apressadinhos, o sol começou a fritar os miolos.

Primeira parte

Dá-lhe macega encardida e nem bem a Vivi pisou nos campos, uma caranguejeira maior que um punho pulou no seu peito e se pôs tranquilamente a caminhar pela camiseta. Em Paranaguá, setenta quilômetros de distância, foi possível ouvir seus gritos, mas, superado o susto, tudo virou a costumeira farra. Percorrida toda a crista do esporão chegamos à nascente do Rio Taquari e tratamos de subir pela encosta do Tapapuí, rasgando a quiçaça. No cume apreciamos um magnífico sol poente em meio ao vento gelado da noite que se anunciava.

Na penumbra iniciamos a descida do grotão para encontrar a escuridão total ao chegar na nascente do Rio do Meio. Nossos desprecavidos amigos paulistas guardaram suas lanternas no fundo das mochilas e descer por trezentos metros o leito do rio com apenas quatro lanternas para sete pessoas foi uma aventura à parte. Ainda vivos, apesar de algumas célebres bundadas nas pedras, avançamos pelas encostas do Tanguiri até estacionarmos em definitivo numa clareira tomada por unha-de-gato.

Feita a limpeza do lugar, cada um se acomodou a seu modo e os fogareiros fizeram a festa até todos se fartarem. Rolou cachaça com mel para esquentar o peito e a conversa foi minguando aos poucos até que se ouviam só os roncos abafados pelos sacos-de-dormir. Com o sol vem a labuta de mais um dia intenso na subida do Tanguiri para no cume visualizar a luz polarizada revelando todas as nuances do incrível precipício da face sul do Esporão do Vita. Beleza sem igual para tirar o fôlego dos incrédulos e mais macega na aresta seguinte até romper no campo que circunda o cume do Farinha Seca onde a Barbara já se apressava em chegar.

Do cume desviamos a oeste por entre um caos de pedras para sair numa estreita plataforma gramada de frente para o Morro dos Macacos. Um imenso vale nos separava do obstáculo seguinte, se descêssemos não teríamos outra opção senão terminar a travessia, assim era chegada a hora de termos notícias do grupo que vinha do sul ao nosso encontro para decidirmos nosso destino. Por celular tomamos conhecimento das desventuras do dia anterior. O Otaviano bateu o carro numa das curvas da Graciosa e abortou a travessia junto com a Carol, o Natan e a Michele.

Somente o Pedro e o Jurandir avançavam mato adentro por sobre o Jurape que venceriam apenas no final daquela tarde. Com sorte conseguiríamos transpor o Morro dos Macacos e outra grande montanha teria ainda que ser superada antes de encontrá-los. Tudo terreno virgem e inexplorado. Nas alturas já despontavam os rabos-de-galo anunciando uma nova frente fria vinda do sul. Seriam necessários outros dois dias de muita luta para esta missão e considerando todos os fatores adversos resolvemos aproveitar alguns minutos de paz para em seguida retornar pelo Rio do Meio enquanto o Pedro e o Jurandir passariam uma noite infernal dentro de uma grota entre o Mojuel – outro apelido provisório – e o Jurape.

No início do mês de julho o Elcio estava com a macaca quando reunimos outro grupo para explorar o Morro dos Macacos. Seguindo com o Jurandir, Moisés, Johny, Émerson – Simepar – Stange entramos pelos pastos da comunidade rural de Rio do Meio. Na ocasião tinha ainda a esperança de convencer o grupo a seguir por uma nova rota que nos levaria à base do Morro dos Macacos em suave curva de nível, mas o Elcio se mostrava irredutível em subir pelo rio até o Farinha Seca, teimoso como uma mula empacada, nem se dispunha a discutir a idéia. Sem intenção de radicalizar a disputa subimos o rio e atingimos o cume do Farinha Seca ao meio dia.

Uma imensa grota nos esperava e o Elcio teimava em descer direto pelo paredão aproveitando uma incerta linha a esquerda, mas foi voto vencido e retornamos ao início dos campos para explorar um declive menos acentuado que horas depois nos premiou com um riacho que a seguir desaguou em outro correndo manso sobre um leito de areia dourada. Sobre a lombada seguinte pudemos visualizar a distancia até o fundo do vale e a montanha erguendo-se a frente. Pela macega fomos avançando a um custo tremendo e no vale chegamos sedentos onde encontramos só panelões de água marrom e fétida.

Encontrar água potável era imprescindível para o pernoite, mas o Elcio não aceitava a ideia de alterar a rota previamente traçada pelas cristas por motivo tão banal e sumiu do radar enquanto seguíamos pela vala a procura do precioso líquido.     

Encontramos água corrente a frente, descendo da montanha, e decidimos escalar por ali, mesmo sem saber do rumo tomado pelo teimoso do turno. Um vale encantador nos conduziu ao ante cume da face oeste e outro nos direcionou ao cume principal onde chegamos com o sol ainda alto nos céus. Com toda a calma pudemos escolher o melhor lugar e preparar o bivaque no campo. Dali podíamos ver a depressão em frente e o Mojuel por inteiro, pura encrenca. Do Elcio nem sinal enquanto a noite se aproximava rapidamente. O clima ficou tenso!

Com o por do sol chegou o dissidente com aquela cara de 'onde vocês se meteram?' bem a tempo para o jantar feito com a água que não aceitou procurar. Com a pança forrada começamos a discutir as ações do dia seguinte e rolou outro estresse doido. Tínhamos somente doze horas para chegar em casa, dormir e no dia seguinte levantar para o trampo, mas o Elcio não queria nem saber dos compromissos alheios. Nada feito piá, nesta fria estou fora, não nasci ontem! Por fim acertamos os ponteiros assim: o Elcio e o Jurandir seguiriam somente até o fundo do vale abaixo e voltariam, enquanto nós quatro retornaríamos dali retificando a trilha pela aresta que ele usou para dar mais velocidade ao seu retorno.

Com o sol de um novo dia ressurgiram velhas idéias. O Elcio mandou às favas o combinado e seguiria em frente para o Balança. Visivelmente constrangido, o Jurandir sentiu-se na obrigação de acompanhá-lo e desceram juntos pelo barranco enquanto nós retornávamos pelo Rio do Meio cumprindo o combinado.

Atacaram a macega na encosta do 'Mojuel' e progrediram muito lentamente em direção ao cume que atingiram apenas as quatro e meia da tarde, sedentos pela falta d´água e castigados pelo sol inclemente quando se lançaram para o fundo da grota seguinte a procura da conexão com o trecho anteriormente explorado. Era noite fechada quando finalmente começaram a descer o Morro da Balança e somente puderam saciar sua sede atroz as vinte e duas horas no Rio Ipiranga.

Andaram sem trégua até Porto de Cima e depois até Morretes onde aguardaram nos bancos gelados a chegada dos primeiros ônibus ao amanhecer. Às 7:30h de segunda feira, o Elcio bateu na porta de minha casa em estado tão deplorável que a empregada o confundiu com algum pedinte e se apresava em despachá-lo.

Ainda insatisfeitos com uma passagem delicada e instável nas proximidades do cume do Morro do Balança, parti no início de agosto com o Paulo e o Elcio para explorar uma possível alternativa. Avançamos rapidamente e sem contratempos até a cachoeira seca na pirâmide final. O dia estava fantástico e o Paulo seguiu pelo caminho conhecido com o equipamento fotográfico para aproveitar ao máximo as condições de luz no cume. Eu e o Elcio iniciamos a escalada na rota direta, pela cachoeira onde imaginamos que o Black havia se aventurado na tarde anterior à tragédia.

O Elcio afastou-se pela esquerda explorando uma linha em diagonal que se estende  sobre o topo do paredão sul enquanto eu avançava em linha reta por uma fenda vertical, suja e quebradiça, usando entalos de mãos e pés. Já tinha escalado uns dez metros quando perdi a fé na capacidade dos apoios, mas com preguiça para desescalar ainda procurei por alguma solução alternativa e encontrei acima da cabeça uma agarra bastante confortável para a mão direita. Estava coberta de limo verde, como toda a face da rocha, mas parecia segura e resolvi experimentá-la ainda com a mão esquerda entalada numa fissura profunda.     

Transferi o peso do corpo para a nova agarra que tremeu de modo estranho, mas ao me içar para cima toda a face direita da fenda, numa profundidade de 20 a 50 centímetros, desprendeu-se e rolou grota abaixo levando consigo tudo o que encontrou pelo caminho. Por instantes fiquei paralisado pela dor do tranco no ombro esquerdo que suportou minha pequena queda e pelo conseqüente impacto na cabeça e no ombro direito contra a parede desmoronada que agora estava lisa e limpa por uns oitenta centímetros abaixo da falecida agarra.

O trem desgovernado ainda ecoava no fundo da grota quando respondi tranqüilizando o Elcio que, na vertente oposta, berrava desesperado na esperança de algum remoto sinal de vida. Desescalei uns cinco metros tensos antes de escapar do corredor de avalanche e me juntar ao companheiro na segurança da encosta. Contornamos o obstáculo andando pouco distante do exposto paredão sul para numa curva a direita encontrar uma canaleta repleta de caraguatás que nos levou diretamente ao cume.

A passagem encontrada é muito segura na subida, encurtando a rota em vinte minutos ou mais, mas precisa ser bem demarcada para evitar equívocos na descida. Alguns poucos graus de desvio durante a descida, com pouca visibilidade, conduz diretamente ao abismo escondido pela vegetação e para o mesmo destino que encontrou o Black nesse lugar.

Na segunda semana de agosto a travessia completa da Serra da Farinha Seca já estava amadurecida e a rota totalmente explorada para que uma primeira tentativa obtivesse sucesso. Da Casa Garbers partiram o Elcio, o Jurandir e a Barbara para num só ataque chegar à UHM, vencendo a distância de 15.500 metros por sobre onze montanhas e vales profundos. A empreitada durou 24 horas e passou por momentos tensos.

A primavera trouxe muita chuva e janelas de bom tempo se tornaram raras. Em pleno verão as chuvas ainda vinham a reboque nas frentes frias do sul, com muito frio e alta umidade perdurando por semanas inteiras. O clima era de outono e depois de muitos alarmes falsos só na primeira semana de novembro tornou-se possível explorar uma janela com dois dias de tempo estável para enfim mergulhar nesta travessia da forma como fora planejada.

Continua…

Fotos: Moisés Lima, Jorge Soto e Elcio Douglas Ferreira

Links para textos complementares:
1. Circuitão de Fim de Ano
2. Batismo de Fogo no Tapapuí
3. Farinha Seca
4. O Mistério do Balança
5. Mãe Catira – Farinha Seca
6. Rio do Meio, UHM, Porto de Cima e Morretes
7. Travessia da Farinha Seca em 24 Horas

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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