A última escalada na Via do Compressor

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O escalador gaúcho Ricardo “Rato” Baltazar volta a entrar em contato a partir da Patagônia, desta vez para comentar com mais detalhes a sua ascensão ao cume do Cerro Torre, no último dia 16 de janeiro.

Texto: Ricardo “Rato” Baltazar      
Introdução: Eduardo Prestes

Naquela ocasião, recebemos apenas um breve relato, informando o sucesso da empreitada. Agora, Rato conta como foi a experiência de escalar a Via do Compressor, na crista sudeste da montanha. Ao contrário do que havíamos informado, o seu parceiro na empreitada foi o argentino Victorio, morador de Bariloche e com boa bagagem na região de Chaltén. O companheiro de Rato na primeira tentativa, o também argentino Gastón Carlos, não pode retornar para um novo round, por compromissos de trabalho.

Cerro Torre.

A Via do Compressor, com seus mais de 1100 metros, dispensa apresentações. Toda a comunidade de montanhistas conhece a história de Maestri e seu compressor, assim como as polêmicas em relação ao grande número de grampos da via. Polêmicas estas que voltaram com força total nos últimos dias, quando o norte-americano Hayden Kennedy e o canadense Jason Kruk escalaram a crista sudeste, sem recorrer às proteções de Maestri, descendo em seguida pela Via do Compressor, da qual sacaram um grande número de grampos na parte alta (uns 120, eles disseram). Por um capricho do destino, Rato e Victorio foram os últimos escaladores a repetirem a Via do Compressor, ao menos em sua forma original. Pouco depois de eles terem descido pelo headwall, os grampos foram retirados por Hayden e Jason.

Vale a pena acompanhar a narrativa de Ricardo Baltazar ao longo da legendária Via do Compressor, uma linha histórica, polêmica, espetacular e que não existe mais.

Ricardo Baltazar – Selfie a caminho da Brecha dos Italianos, no Fitz Roy. – Fonte: Arquivo pessoal

Aí cabeçada, como dizia Jack o Estripador: quaquaquaquaqua !

Tinha ficado devendo um relato mais detalhado da escalada na Via do Compressor, agora sobrou um tempo e a coisa foi mais ou menos assim.

Rato e Gastón no cume da Esfinge – Peru, em outra temporada.

Passada a pancadaria daquela tentativa frustrada no Torre, eis que novamente os céus voltam a sorrir para o pêlo-duro, o famigerado NOAA (site de previsão de sofrimento) anunciava uma janela de 3 dias. Durante uma reunião com os porteadores, para se definir como ia ser o esquema com as cargas da Red Bull e do David Lama até Niponinos, encontrei-me com o Gastón e conversamos sobre a janela prevista para domingo, segunda e terça. Ele, no entanto, me respondeu que ia ter que trabalhar por estes dias e não tinha como ir para a montanha. Como porteadores em Chaltén, vivemos sempre na capa da gaita, por causa dos gastos com aluguel, comida e tudo o mais. Abandonei a porra da reunião dos porteadores e saí de bicicleta, a buscar o Victorio, guia em Bariloche e porteador, que já escalou por aqui e tinha a mesma pilha do que eu, de tentar a Via do Compressor. Não encontrei o cabeção e voltei para a barraca, sem esperança e sem parceiro. E não é que uns poucos minutos depois escutei um assobio, era o bicho, me perguntando se eu queria ir para a Via do Compressor na próxima ventana ! Minha resposta foi imediata: e macaco nega banana ?

Nos arrancamos no sábado, às 6 da manhã, para encarar mais uma penosa marcha até Niponinos, é puro sofrimento e masoquismo até o campo-base. Uma chuva nos agarrou no caminho, com frio e vento no Glaciar Torre, mas seguimos em frente, com os olhos vermelhos, o Vitor parecia um tanque marchando para a Faixa de Gaza ! Em Niponinos, paramos só o suficiente para arrumar o material, e dá-lhe pernada para o bivaque Noruegos, o que me fez lembrar de toda a novela da última empreitada mal-sucedida. Chegamos lá pelas 3 da tarde de sábado, nos instalamos, comemos, fumamos e entramos nos sacos de dormir, para descansar um pouco. O plano era sair à uma da madrugada de domingo, mas uma chuvarada tocada de vento norte não nos deixou pregar o olho. Tentávamos direcionar as gotas de água que insistiam em escorrer pelo teto do nosso pseudo-abrigo, para que pingassem em outro canto qualquer, mas nossa técnica meio precária não surtiu muito efeito. Resolvemos abortar a missão. “Já fue”, me disse Vitor. E eu: “porra du caraio, outra vez !!!” Meio desanimado, apaguei. De repente, sinto um coice nas minhas costelas e escuto uns palavrões em espanhol: “mira, mira, estrellas !” Eram 4 da manhã, agora sem vento, sem goteiras e sem juízo !

“Bora, bora loco, fue, fue, caraio !!!”

Como se estivéssemos saindo da trincheira para o ataque ao inimigo, nos armamos da melhor forma possível e apertamos os dentes para encarar de novo a subida ao Ombro do Cerro Torre, que eu já conhecia de antemão pela última tentativa frustrada.

O sol nos apanhou na metade da trepada dos largos da escalada mixta que dá acesso ao Ombro. Apesar do adiantado da hora, escalamos rápido e fluido, em simultâneo (à francesa) a maior parte desta secção. Era o momento de botar todas as fichas em jogo, nessas horas não dá para pensar em quedas, cordas, equipamentos e blábláblá. É só escalar sem parar ! Ganhamos o Ombro lá pelas 9 da manhã de domingo. Ali, repeti a rotina de tirar crampon e bota, guardar as piquetas, para então calçar sapatilhas e prender o magnésio, cambiando de guerreiro da neve para dançarino de rocha ! Passei os primeiros largos, que eu já conhecia, tinha 6b, 6a, 5º, alguma coisa de 4º. O Vitor vinha atrás, jumareando, com a mochila mais pesada. Ele estava subindo já com botas e crampons, para atacar a sua parte da pelea, tomando a frente nos largos de mixto e gelo. 

E assim foi passando o dia, alternando pirambeiras, mixtos, fissuras perfeitas, blocos soltos, umas perdidas, voltas, tudo temperado com sono, frio e sede, quando de repente … Zás ! Os famigerados grampos do Maestri !!! Ali estavam eles, ao nosso alcance ! Mais uma vez, foi preciso trocar as armas do guerreiro: era o momento dos estribos, auto-seguros e da paciência. Tínhamos chegado na bolt traverse, é um troço sinistro mermão, uma travessia de uns 100 metros sobre um vazio de mais de 1000 metros, dava para ver nossos rastros lá no glaciar, na puta que pariu !

Não pára, não pára, não pára, era como um mantra na cabeça ! Mandamos também este trecho à francesa, tínhamos que fazer tudo o que fosse possível para ganhar tempo. No Torre, tempo é vida !!! Assim que entramos no ritmo da dança dos estribos, a coisa fluiu fácil, mas logo tivemos que trocar de ferramentas outra vez, para atacar mais um largo de mixto, numa chaminé lotada de verglas e mais escorregadia do que vidro. O Victorio trincou os dentes, cuspiu no melhor estilo John Wayne no filme “O bom, o mal e o feio”, e saiu faiscando as piquetas na rocha e no gelo, as piquetas véias zuniam e chiavam, reclamando dos violentos golpes contra o granito duro, mas o guerreiro não arregou em nenhum momento, maluco, o pau comeu !!!

O cara ganhou a chaminé na moral, não me restou outra opção senão trepar de jumar e crampon, já que eu tinha deixado minhas piquetas lá embaixo, no Ombro do Torre, juntamente com as sapatilhas do Victor. É isso aí, um tinha sapatilhas, o outro piquetas e os dois nada na cabeça para estar trepando com tamanha demência.

Apareceu mais uma secção de grampos do Maestri, são da marca Cassin, coisa de primeira, estão em estado impecável, eles brilham de tão conservados. Saí do artificial, assegurei o restante da corda do ensamble entre eu e o Victor, e ele logo me passou, voltando para a guerra de faíscas e impropérios. Já começava a escurecer e estávamos nos aproximando da base das famosas torres de gelo. Esse lugar merecia um nome mais carinhoso, como “pesadelo de gelo” ou “delírio congelado”, não tem nada lá, só gelo loco ! É um abismo branco, umas formas surreais, só estando lá para entender, o troço é gigante !

Rato em um dos muitos artificais da Via do Compressor.

Bem, rayovacs terminando, a noite se aproximando e a promessa de muita diversão !!! Tá loco, é foda, dá medo a parada. Subimos mais umas duas cordadas e tomamos a sábia decisão de parar, porque mais acima seguramente só ia piorar, ia ficar cada vez mais branco, cada vez mais gelado, cada vez mais alto. Eram umas 23 horas de domingo e eu estava dando piquetaços em um platozinho do tamanho da minha bunda, tentando tirar o gelo petrificado que insistia em se agarrar no granito escuro. O Victor fazia o mesmo com a outra piqueta, uns 2 metros mais abaixo. Quando consegui aplainar um pouco, me sentei na mochila e entrei no saco de bivaque (não levamos sacos de dormir), com bota, capacete, cadeirinha e tudo mais. Estendi minhas pernas, que ficaram penduradas num vazio de trocentos metros verticais até o glaciar, uma bela voada para base jumper algum botar defeito. O Victor estava na mesmo situação, e ali tivemos nossa noite de psicodelia patagônica. Primeiro a rotina do bivaque-maravilha: acende jetboil, derrete gelo, mete água quente dentro do liofilizado, come com a mão porque não tem colher (tudo para economizar peso), fuma um cigarro (isso vagabundo não economiza), resmunga meia dúzia de palavras para o companheiro, reza e se prepara para o bate-queixo: boa noite ! Sonhei com roupas quentes, comidas fumegantes, festas, só para depois despertar e dar-me conta do pesadelo gelado em que estávamos metidos, por nossa própria demência. 

Começa a clarear o dia, fico uns 15 minutos tentando entender o que era aquilo na penumbra, uma rocha esquisita, de repente a rocha abre 2 olhos e fica me encarando em silêncio, sem se mexer, era a cabeça do Victor, pura doideira ! Começamos uma comunicação rudimentar, uhrrmmm, uuurhmmmmaa, incrível como em uma escalada na Patagônia o diálogo fica reduzido a poucas palavras e gestos básicos de sobrevivência. Loco, deveria ter classes de Cerro Torre nas faculdades de psicologia, há muito que aprender por aqui. Contestei e comecei a novela de derreter gelo no jetboil.

Então pintou o sol e veio a vida ! Bamo, bamo, bamo loco !!! 

De manhã, já não estávamos mais sozinhos na parte alta do Torre. Apareceram dois caras, que eu já havia encontrado na minha primeira tentativa no Torre, o Hayden e o Jason. Eles estavam subindo a crista sudeste sem usar os grampos de Maestri. Pelo resto da manhã, escalaríamos simultaneamente, nós pela Via do Compressor, eles por uma linha paralela, zigue-zagueando bastante pelo headwall, subindo em natural e artificial móvel.

Ricardo Baltazar – Rato voando no headwall do Cerro Torre, na última cordada da Via do Compressor. – Fonte: Arquivo pessoal

Nosso caminho iniciou com umas cordadas em gelo, depois um artificial quase negativo com uns 40 grampos e chegamos ao topo das torres de gelo, um lugar em forma de duna, redondo e liso como vidro. Uma ponte de gelo liga estas torres ao maciço principal do Cerro Torre, dando acesso ao headwall, o último tramo, que dá acesso ao cume. É uma parede vertical com uns 300 metros mais ou menos, vencida por Maestri através de longos artificiais fixos. Saí guiando um 5º grau em livre, até conseguir alcançar a primeira secção de grampos. Troquei pela última vez a sapatilha pela bota e segui pelo artificial, com o Victor vindo logo atrás, unidos por um pedaço de corda de uns 15 metros, o qual eu costurava de vez em quando em algum grampo. Estávamos no automático, ritmados e concentrados, os movimentos nos estribos foram fluindo, eu mesmo já nem estava mais ali, só assistia meu corpo que se movia para cima, para cima, alma forte e coração sereno ! De repente, o transe foi interrompido. Zás: o compressor ! O tal famigerado ! Ele apareceu como um teto de gelo meio raro no meio da parede vertical de granito. Como essa porra pode estar aqui ? Levanto a mão e me agarro a um cano, que mais parecia a descarga de um carro. Tinha encontrado o compressor usado por Maestri para meter todos estes grampos. Meti um foothook no bagulho e “pra arriba”, subi no bicho, fui me puxando e me prendi na ancoragem. Dou uns pulos para ver se a geringonça está mesmo segura, ela nem se mexe, está com braçadeiras e cabos por todos os lados.  O Victor chegou e tiramos várias fotos com a bagaça ! Então me tocou o último largo: Bridwell !!!

Rato e Victorio sobre o compressor de Maestri – Autor: H.Kennedy

Ai, ai, ai, maluco, saí nos estribos, rebites tortos para baixo, meio caindo, eu só consigo alcançar no último degrau do estribo. Se os cabos dos stoppers fossem 2 cm menores, eu não alcançava. Esse tal Bridwell era um cara comprido “pa carai”. Rá, fui de rebite em rebite, tudo velho e torto, depois ainda um coperhead metido igual a cara do loco que fez aquele troço, cabo enferrujado, o nut estampado na rocha, meio para dentro meio para fora da fissura, e é naquilo que você tem que subir, no último degrau do estribo, de botas, a mais de 1200 metros do chão, exposto na cara do Torre como uma formiga grudada num poste. Passo mais uma secção de rebites, 2 passos de cliffs de agarra para arrepiar os cabelos e subi num friend velho “empotrado”. É aí neste ponto que você entende porque precisou carregar um bastão de caminhada até o cume do Torreão. Do friend até o cume ainda restam uns 4 metros de um granito liso como a bunda de uma panicat, não se chega nem a pau na parada, que é a última da via ! Pensa loco !!! Abre o bastão, prende um mosquetão na ponta com um pedaço de esparadrapo, pendura um estribo no mosquetão, dá um jeito de enganchar lá na parada inalcançável e zás, ganhaste o Torre !!!

Rato entubando sob um lip congelado, a caminho do topo do cogumelo

Depois da parada, tem uma trepidanga de neve até o topo, e depois mais uma escaladinha em gelo por uns 30 metros, com crampons e uma piqueta cada, em solo, e alcançamos assim o topo do cogumelo do Cerro Torre !!! Este ano o cogumelo está meio tombado, mais fácil de subir, isso muda conforme a temporada, em alguns anos fica bem difícil. 

Fue !!! Segunda-feira, dia 16/01/2012, meio-dia e um sorriso de oreia a oreia, fotos, comemorações. Mas logo você lembra que está muito longe do chão e que a escalada só termina em Chaltén. Para baixo, maluco !!!

Rato vendo o mundo de ponta-cabeça, comemorando a escalada do Cerro Torre

Entrei nos primeiros rapéis do headwall e não encontrei mais os grampos. Tinha uma parada mais abaixo na parede, mas nossa corda não alcançou. Tive que fazer uma parada com móveis no headwall do Cerro Torre ! Mais abaixo estavam o Hayden e o Jason, que também baixavam pela Via do Compressor. Eles estavam mexendo nos grampos do Maestri, estranhei, perguntei para o Jason, que estava mais próximo: “any problem” ? Ele mandou um “no problem here”. Ficou um clima meio esquisito, falei para eles não fazerem isso, que ia dar a maior merda, mas tudo meio rápido, pois nossa preocupação era realmente descer !

 E foi aquela rapelaria demente, com todo o pacote alucinógeno incluído. Vai rapelar o Torre com o Milionário e o José Rico se esganiçando na porta da tua orelha para ver o que é bom. Foda maluco ! Mas Deus é justo e a corda prendeu uma vez só, eu consegui reverter com algumas técnicas aprendidas ao longo de anos de prática de canionismo.

Chegamos ao Ombro destruídos. Nos metemos dentro uma greta, para descansar, hidratamos, dormimos um pouco e na terça, lá pelas 9 da manhã, estávamos de volta a Noruegos, onde estavam os sacos de dormir e a salvação.

Tínhamos escalado o Cerro Torre e tivemos que apostar tudo para conseguir. Com técnica, sorte e a ajuda fundamental de Deus, desfrutei a escalada mais completa de toda a minha vida.

Para superar a Via do Compressor, tivemos que usar todo o tipo de recurso, como aproximação de glaciar, superação de gretas, escalada mixta, escalada em gelo, escalada em rocha com boas fissuras, artificiais fixos, artificais em A2+, bivaque, o cogumelo de gelo, entre outras coisas, foi pura demência !  No headwall tem agarras, mas o Maestri não buscou a linha natural da montanha, mas sim uma linha direta ao cume. Tem um trecho de uns 20 metros onde o granito é vertical e liso, ninguém vai conseguir escalar por ali em livre. Os grampos cobriam apenas partes da via. A linha tem uns 1400 metros de desnível vertical e tivemos que escalar, e muito, em rocha e gelo para chegar ao cume. Eu achei du caralho a escalada, mas é uma visão particular minha.

Somente depois fomos entender melhor o que havia acontecido na montanha, e toda esta polêmica com a retirada dos grampos. Por obra do destino, acabamos sendo a última cordada a escalar a Via do Compressor, com os grampos originais.

Depois do Cerro Torre, é difícil encontrar ânimo para novas batalhas. O cara fica satisfeito e esgotado. Mas a vida segue e há outros cogumelos na vida de um homem !!!

Valeu !!!

Ricardo “Rato” Baltazar

Uma última nota, para encerrar (afinal, acabou o whisky e tem um assado me esperando).

A brazucada está escalando por tudo este ano. O Irivan e o Bonga subiram o Fitz Roy pelo Pilar Casarotto, escalada forte. Uns caras de Brasília subiram a Saint-Exupéry e a Aguja de la S, uns mineiros escalaram o Mocho, Media Luna e Guillaumet, uns gaúchos (Cabron e Caio) foram para Guillaumet e devem ter feito cume. E eu subi a Mermoz, com o Alessandro, de Curitiba, mas isso é uma outra história, que eu conto depois …

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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