A virtude contra o sopro do dragão

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Quando a Serra do Mar passou a fazer parte de nossa vida adquirimos valores que nos resgataram da mais urbana escuridão

“Sei o que devo defender
E por valor eu tenho
E temo o que agora se desfaz.”

Quando a Serra do Mar passou a fazer parte de nossa vida adquirimos valores que nos resgataram da mais urbana escuridão. Não há quem negue que o montanhismo nos tornou pessoas melhores. E, num mundo confuso de valores descartáveis, isso significou clareza de pensamento e certeza de ação. Agora mais vivos, respirando um ar mais puro e principalmente, enxergando do alto, construímos um caráter digno, de respeito à vida, de respeito à terra que nos dá a vida. Assim, não há dúvida do que devemos defender.

Naquela segunda-feira à noite recebi a notícia de que nossa casa estava em chamas. “Eu não acredito no que estou vendo, o fogo está destruindo o Caratuva” – assim dizia um amigo que estava lá. Palavras de desespero e lágrimas frente a um incêndio assolador. As notícias que vinham por telefone nos deixaram ainda mais angustiados, por não saber a real situação do desastre. A impossibilidade de deslocamento imediato nos afligia ainda mais.

Na terça-feira cheguei ao Caratuva acompanhado do batalhão do Corpo de Bombeiros. A imagem da fumaça sufocando a vegetação era desoladora. O combate ao incêndio subterrâneo pior ainda. Pouco pudemos fazer nesse dia contra o câncer que se alastrava pela floresta que aprendemos a amar. Os vinte e um litros de água que carreguei até o cume acabaram comigo e de nada resolveram. A fumaça era muita e em certo momento estive só, tendo que abrir uma trilha paralela à linha de fogo que parecia não ter fim.

“Viajamos sete léguas
Por entre abismos e florestas
Por Deus nunca me vi tão só
É a própria fé o que destrói.
Estes são dias desleais.”

O incêndio era forte, mas não tão forte quanto nossa união. Na terça a noite quando retornei, cruzei por muita gente que subia, muito mais gente do que poderia imaginar. Definitivamente não estávamos sós.

Retornei acompanhado de mais três na quinta a noite. Combatemos um foco das 22h00 as 2h30 da madrugada utilizando duas bombas costais e muita água. Desde então ficou claro que essa era a melhor estratégia.

Na sexta o combate prosseguiu sem trégua. O auxílio do helicóptero foi fundamental para o grupo que estava na frente mais alta. À tarde subi para o cume para dar auxílio aos bombeiros que pernoitariam lá. Infelizmente a cabeça do incêndio continuava a avançar e as chamas consumiam a floresta, árvore após árvore, vida após vida.

“Esta é a terra-de-ninguém
E sei que devo resistir –
Eu quero a espada em minhas mãos.”

Parque Estadual de papel em chamas… Criado em 2002, essa Unidade de Conservação é apenas mais uma que existe sem existir. Que valor o Estado dá a essa terra? Certamente o que ele não esperava é que ela tivesse muitos donos. Isso foi um problema, pois, se o Estado pensou em algum momento em desistir de combater um incêndio incontrolável, ele teria de abandonar a própria sorte montanhistas que jamais desistiriam.

“Não me entrego sem lutar –
Tenho ainda coração.
Não aprendi a me render:
Que caia o inimigo então.”

Não se podia esperar mais. No sábado, bombeiros e montanhistas fizeram chover sobre o Caratuva. Literalmente banharam a floresta em dia de céu azul.

Hoje, posso dizer que a maior emoção que já vivi na montanha foi ver os focos diminuindo naquela tarde de 15 de setembro de 2007. Os gritos de alegria ecoavam dentro da floresta, davam conta que pela primeira vez após 10 dias a perseverança estava sobrepujando um incêndio até então incontrolável. No domingo mais gente combateu o fogo. Cada um que retornava do Caratuva ou do Getúlio vinha com alegria de quem vencera uma batalha.

Certamente tudo isso será lembrado não pelo desastre, mas pela união de bombeiros, montanhistas, policiais florestais, pessoal do IAP, colaboradores e quem mais tiver ajudado, todos aqueles que não desistiram e venceram. Como diria Renato Russo: “Sou metal: me sabe o sopro do dragão.”

Na segunda-feira pela manhã, enfim, choveu.

por Marcelo L. Brotto

Referências bibliográficas:
RUSSO, Renato. Legião Urbana V – Metal Contra as Nuvens. EMI, 1991.

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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