Alpha – Ômega parte 2

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A noite estava fresca com uma brisa suave rompendo a cobertura de folhas e varrendo o solo dentro da depressão. Acima da copa das árvores o vento oeste assoprava com força e ainda vi uma ou duas aranhas descendo de rapel sobre o local do bivaque. Acordei algumas vezes com uma fisgada de dor na perna ou no cotovelo a cada virada de mau jeito. O Johny desmaiou em seu saco de dormir e o Elcio queixou-se de insônia enquanto o Lula e o Emerson bivacaram na pedreira mais acima.

Antes das 7:00 horas o Elcio, sem sono, já gralhava mais do que despertador de desenho animado e o povo foi se desentocando e socando as tralhas dentro das mochilas. Medonho foi descolar o pille que durante a noite aderiu a esfoladura do joelho já infeccionada. O cotovelo inchou e desenvolveu um enorme abscesso que vazava sem parar, encharcando o precário curativo. O dia prometia ser dos mais tensos e decidi aposentar a bermuda usada no dia anterior para vestir uma calça comprida que me daria alguma proteção nas pernas.
 
Um por vez, os companheiros, foram sumindo no mato enquanto terminava meus afazeres matutinos e por fim chegou a minha vez de segui-los. Escalei a grande pedra oriental no cume do Mesa para uma última vez apreciar aquela paisagem. Por uma fresta ainda se avistava o Torre Amarela e a frente só mato. O gramadinho no cume do Alvorada 3 era a meta daquela manhã, desci, tomei a canaleta e entrei no taquaral para comprovar que esta jornada não seria nada fácil. 
 
A esfoladura só doía quando dobrava o joelho ou raspava num galho e o abscesso quando flexionava o cotovelo ou batia numa árvore e as duas juntas doíam o tempo todo. Mas o mato descendo a face nordeste até o fundo do vale não é dos piores e em pouco mais de uma hora estávamos na beira de um córrego fazendo a primeira refeição. Do fundo da grota até o Alvorada 4 é só subida e o Elcio tomou a frente fazendo um bom trabalho como sempre, mas nas proximidades do cume ressurge a quiçaça. Do Alvorada 4 para o 3 encontramos a pior vegetação da caminhada e levamos mais de 40 minutos para percorrer este pequeno trecho com o Johny liderando na descida e o Elcio na subida até que pisamos finalmente nos campos e pudemos respirar aliviados. Sol a pino, rachando côco e jogamos as mochilas no capim para descansar o lombo, comer alguma miudeza e apreciar a paisagem. Todas as moscas da Serra do Mar resolveram fazer banquete com minhas feridas expostas enquanto os outros descansavam tranqüilos. 
 
Vadiamos por ali uma boa meia hora e do 3 para o 2 foi covardia, bromélia que não acaba mais, então decidimos guardar as ferramentas para adiantar a caminhada e descemos novamente para o fundo do vale só abrindo passagem com as mãos e o corpo. Tive verdadeiros orgasmos entre taquaras e galhos retorcidos até que passamos por um riacho e adentramos as encostas do Chapeuzinho. A brincadeira perdeu a graça quando penetramos num mar de gretas medonhas, piores do que as encontradas na subida do Mesa. Já havíamos alcançado um primeiro patamar e podíamos ver bem próxima a parede de pedra que faz o castelo de cume no Chapeuzinho. Vontade de galgar mais aquele cume e varar para o lado oposto, como nos recomendou o Natan, não faltou, mas o Emerson insistiu que para evitar a quiçaça deveríamos apenas contornar o obstáculo pela esquerda. E nos aprofundamos na roubada descendo por entre gretas absurdas até o fundo do vale.
 
Num daqueles contornos fechados que dá até pra ver a parte de trás da própria cargueira sem olhar no retrovisor vi o Elcio pular de uma pedra para o chão elástico antes de escalar a próxima, o Johny fez o mesmo movimento sem nenhum problema, mas na minha vez “Plufff”. A cobertura de folhas secas cedeu com o impacto dos meus modestos 96 quilos mais 19 da mochila e vazei para as entranhas da terra. Teria caído no colo do capeta se não abrisse as asas por reflexo, travando a queda com os cotovelos. Esta doeu pra valer e fiquei alguns minutos balançando as pernas no vazio enquanto retomava forças para me safar dali. Tinha um vento fresco subindo pelo cano das calças.
 
A vegetação nas encostas do Chapéu até que é suportável e o problema se resume a taquarinha entrelaçada com unha-de-gato. As varetas de alumínio de minha mochila a muito haviam rasgado a costura superior e se projetavam para fora, como chifres nas costas. Estes chifres se enroscavam em cada taquara, galho e cipó do caminho. No início, pacientemente, me desvencilhava dos enroscos, mas com o avançar das horas e dos quilômetros deixa-se de ter certos escrúpulos e passei a carregar tudo no arrasto. Felicidade para quem vinha atrás.
 
O Emerson consultava a carta, o altímetro e a p.q.p. a cada cinco minutos garantindo que já estávamos chegando no campo entre o Chapéu e o Espinhento, e seria só dar um passo fora do mato para pisar na grama, mas a subida e a quiçaça não acabava nunca. Recuperamos a fé ao encontrar um filete d’água escorrendo entre as pedras e lavamos a alma com aquela dádiva. Meia hora depois rompemos a macega escalando um último e sujo degrau para cruzar o campo e montar acampamento antes do por do sol.
 
Apesar de insistentemente oferecido, ninguém aceitou a oferta de tirar uma foto com o Pelado nas costas. Puro preconceito com esta montanha que nos desafiaria no dia seguinte e todas as atenções se voltavam para o Espinhento, nosso vizinho orgulhoso com suas encostas verticais de granito valorizadas pelo sol poente. Visto do selado é um gigantesco maciço de pedra recortado por linhas verdes e amarelas de macega e quiçaça. Os paredões que provocam vertigem e o nome nada convidativo só contribuem para despertar aquela chama masoquista que nos move por estes grotões. Esta aí um desafio que merece atenção. É bonito, orgulhoso e tem indiscutível má fama. Deve ser irado escalar esta estrovenga só com as botas e uma garrafa pet cheia d’água.
 
A noite se aproxima e o vento oeste varre com fúria o capim enquanto monto a barraca no lugar mais seco e plano que encontrei. Armo a barraca mais por raiva em tê-la trazido pesando no lombo do que por necessidade de abrigo, o Lula esparrama-se um improvisado bivaque no campo, e o Elcio encontra uma valeta seca e protegida da ventania onde enfiou seu saco de dormir por debaixo do capinzal. Esvazio a mochila e transfiro a cozinha para dentro da valeta onde o fogareiro inicia seu trabalho.
 
Noite agradável apesar da ventania que por certo serviu para abafar o barulho do meu ronco noturno, permitindo ao Johny também dormir. Acordei umas três vezes com calafrios devido a febre decorrente da infecção que nem os analgésicos acalmaram, mas nada preocupante. O Lula amanheceu ensopado de orvalho e uma hora depois já estávamos todos em fila indiana, com as cargueiras nas costas, contornando o campo a procura de um local menos traumático para entrar no mato da encosta.
 
Tropeçando em bromélias e arrastando taquara penetramos numa depressão que rapidamente foi-se aprofundando e alargando até se transformar num vale forrado por grandes pedras e pequenas gretas cobertas de musgo. Surgiram algumas fitas vermelhas muito antigas e a água brotou das pedras onde paramos para forrar o estômago. Descendo muito ainda, percebemos o vale dobrar levemente a direita enquanto se ouvia o murmurar da água escorrendo no interior de uma falha gretada a nossa esquerda onde o Lula desapareceu sem pestanejar, munido apenas com uma caneca para coletar o precioso líquido.
 
Depois do percurso adrenante no dia anterior resolvemos ignorar a experiência do Emerson e arriscar um traçado inédito pelos nossos próprios instintos. Inicia-se a subida no Pelado com vegetação amigável que logo se transformaria na mais odiosa quiçaça ao encontrarmos o primeiro paredão vertical que contornamos pela esquerda até encontrar uma falha escalável com as botas e as cargueiras. Pouco mais a frente encontramos no chão um saco plástico azul e descobrimos que de inédita esta rota não tinha nada. Batemos noutro paredão e seguimos a direita, junto à base, até encontrar uma brecha e muita taquarinha, bromélia e unha-de-gato.
 
Acima nada de folga no campo, apenas quiçaça antes de entrar na macega e dá-lhe braçada varando mato até finalmente pisar num pequeno gramado. Finalmente uma respirada fora do inferno, mas o cume estava muito próximo para dar-se ao luxo de descansar. Miramos numa grande pedra na encosta oposta e penetramos em nova depressão onde a mata era favorável, com árvores altas e muita sombra. Emergimos para a luz bem ao lado do pedregulho e agarrando o capim fomos subindo até a quiçaça rasteira que cobre o cume. 
 
No cume se avista o Olimpo, mas o local não é hospitaleiro e rapidamente descemos aos campos onde está abandonada a asa de um avião que se chocou com a montanha ao lado, o Bandeirante. Contam que ventava muito durante a operação de rescaldo e a asa pendurada ao helicóptero foi deixada por ali para segurança do vôo. 
 
Assim como bem disse o Vinicius, não o de Moraes; minhas preocupações quase se acabaram e daqui pra frente é só caminhar por trilha. Deitamos no capim macio, consumimos o restinho de água que ainda havia nas pets e comemos alguma besteira com o sol do meio dia fritando os neurônios e por fim sentamos na asa do avião para eternizar em pixels aquele momento. Muita brincadeira na foto em grupo sem o Emerson que se negou a participar, apesar de insistentemente convidado.
 
Da asa do avião nasce a Freeway seguindo em direção a estação do trem. Quase uma linha reta, mas por demais exposta ao sol. No primeiro barranco já encontramos uma placa indicativa – Pelado – com as letras gregas Alfa e Omega dedurando nosso percurso. O calor e o sol tornavam a caminhada sufocante e cheguei a Cascata Dourada a beira da desidratação. Esta cascata é um oásis no deserto. Uma fina película de água fresca e cristalina escorrendo sobre prateleiras de pedras douradas e reluzentes. 
 
Sentados a sombra com os pés na água compartilhamos nossa última e mais farta refeição de toda a travessia. Por alguns instantes quase nos sentimos entrosados numa equipe e cada um contribuiu com o que tinha. O Elcio partilhou suas últimas duas laranjas, remanescentes das oito que iniciaram a jornada. Contribuí com queijo defumado, sucos em pó, Bis derretido e mais algumas sobras de guerra, mas o Johny e o Lula nos superaram. Só de queijo tinham três sabores em grande quantidade, um parmesão faixa azul que deixou saudade, salame italiano e chocolate.
 
Quando o Emerson se levantou para encher sua garrafa com água da cachoeira pedi que completasse mais outra para fazer um suco, mas este pediu em troca a minha “Máquininha de Churros”! Sou meio retardado nestes assuntos e demorou cair a ficha. Nestas travessias algumas brincadeiras são corriqueiras, tais como chamar os companheiros de corno ou viado, mas esta proposta explícita foi única nos meus 40 anos de trilha e na dúvida preferi não vacilar. Fui eu mesmo buscar a água. Então o Elcio e o Johny caíram no pêlo do sujeito.
 
Saímos dali a contragosto e o sol voltou a incomodar, mas a vegetação aos poucos foi crescendo e proporcionando algum alívio. Água não faltou mais e cruzamos ainda três riachinhos antes de encontrar a trilha para o Boa Vista. A entrada da Freeway está eficientemente escondida por um bambuzal e só têm acesso a ela os que forem iniciados. Já a Pau do Maneco é uma típica trilha do Marumbi descendo a encosta empinada numa seqüência de pirambeiras pra acabar de vez com os joelhos. Depois acompanha o vale nas nascentes do Rio Taquaral até a Cachoeira dos Marumbinistas e quando vi o Ninho do Gavião na encosta oposta, subindo a crista do Gigante, senti que realmente estava chegando à civilização.
 
Ao nos aproximar da Cachoeira dos Marumbinistas avistamos o Elcio e o Johny nos aguardando a beira da piscina e o Emerson seguiu direto para a Estação dizendo que pediria ao condutor do “vagão” que nos aguardasse. Mais tarde entendi se tratar do jeep que faz o transporte de Porto de Cima a Morretes, mas naquele momento me pareceu que estava envergonhado em adentrar terras civilizadas acompanhado pelos quatro maltrapilhos mulambentos, recém saídos do campo de batalha, até porque nosso fã-clube por ali é bem reduzido. Na cachoeira tratamos de lavar as botas, retirar as polainas imundas e ajeitar o visual com os poucos recursos que ainda dispúnhamos enquanto o Johny e o Elcio zarparam na dianteira. 
 
Na vila passei discretamente por trás da sede do parque e vazei por sobre os trilhos para aguardar o trem na Estação onde também reencontrei o Lula que momentos antes havia feito a mesma coisa. Minutos depois o trem que já ouvíamos a algum tempo, gemendo na subida desde Eng. Lange, estacionou em frente e imaginamos o melhor final para a aventura, mas a coisa estava longe de acabar. Comemorei antecipadamente queimando meu último charuto quando o Lula chamou minha atenção para um detalhe:
 
– Veja se não parece o Johny!
 
Do outro lado dos trilhos passava um sujeito idêntico; rosto, corpo e barba, um sósia perfeito, só que limpinho e adiantei três passos para me certificar de que não era miragem, mas então avistei o Johny cinco metros a frente entrando de mochila na sede do parque. Seriam mesmo dois ou estaria vendo duplicado? Um limpo e outro sujo? O maluco perdeu de vez a razão indo se oferecer de graça na sede do parque? Mistério! E rolou a previsível muvuca.
 
– Você tem cadastro? – perguntou o Guarda Parque.
 
– Desci em Borda do Campo com um amigo e o trailer ainda estava fechado.
 
– E estes arranhões nos braços e no rosto? – insistiu desconfiado.
 
– Isto? – apontando os vergões – Acontece com quem anda pelo mato!
 
Um minuto depois reapareceu o doido fazendo sinal para ficarmos quietos e andando apressado cruzou o saguão da Estação, desceu as escadas e rumou para o mato. Atrás dele, feito louco, veio o Guarda Parque berrando:
 
– Volte aqui, você não fez cadastro!
 
– Vou buscar meu amigo e já voltamos. – respondeu o fugitivo.
 
– Este moleque andou aprontando!
 
Ficamos abestalhados sem entender nada daquela comédia quando o sujeito virou para nós perguntando:
 
– Vocês estão fumando maconha?
 
– Claro que não – respondi convicto – isto é um charuto!
O cara veio até mim, olhou e cheirou a bituca.
 
– Cheira igual a maconha! – concluiu.
 
– Nem sei que cheiro tem este troço. – respondi.
 
– Cheira a mato queimado! – abriu um sorriso de especialista e desapareceu.
Desceu um trem de carga passando pelo desvio e a máquina estacionada ameaçou se mexer, então fui até o maquinista perguntando pelo trem de passageiros.
 
– Outro só amanhã! O de passageiro passou as 16:00 horas e agora só de carga.
Agora sim a coisa ficou confusa! Joguei a mochila nas costas e fiz sinal para o Lula me acompanhar enquanto o trem em movimento interditava a Estação. Imaginei que o Johny tinha ido para Eng. Lange atrás do Elcio e sem trem não havia razão para ficar por ali. Seguimos pela trilha até as portas de Engenheiro Lange quando fomos alcançados pelo Emerson que descia acompanhado por dois desconhecidos. Trocamos algumas palavras descontraídas ao caminhar e da Estação tomamos o rumo da Usina enquanto os dois resgatavam os capacetes na varanda de uma casa e preparavam sua saída numa motocicleta, mas para minha completa surpresa um deles veio ao meu encontro falando de modo ríspido:
 
– Oh Véio, vê se toma cuidado quando falar de alguém!
Não entendi de imediato.
 
– Quem é o alguém? – perguntei duas vezes por não obter resposta.
 
– Toma cuidado Véio! – repetiu em tom de ameaça.
 
Colocou o capacete, montou na motocicleta e desceu fazendo barulho num rastro de fumaça. Perguntei ao Emerson do que se tratava, mas este desconversou informando que seguiria na frente para pedir que o “vagão” nos aguardasse. Quando ia insistir na pergunta, o Lula me chamou a atenção para uma voz vinda do mato:
 
– Escute! – disse ele – Parece a voz do Johny.
 
E o Johny surgiu do meio das moitas. Pensou que as farpas tinham alguma relação com o quiprocó do Guarda Parque e se escondeu no mato esperando o desfecho, mas do Elcio não tinha notícias e seguiu na frente acompanhando o Emerson.
 
A situação foi hilariante e distraiu nossa atenção durante boa parte da caminhada até as proximidades da bifurcação para a Usina onde o Elcio nos alcançou vindo diretamente da Estação Marumbi. Contou que da cachoeira seguiu para a casa de um amigo na vila, tomou um banho quente e trocou as roupas, quando apareceram várias pessoas que o cumprimentaram cordialmente, mas dois em especial o trataram com total indiferença. Pela descrição identifiquei o motoqueiro que me ameaçou na saída de Eng. Lange e relatei o divertido episódio. Jamais imaginaria receber cara-a-cara uma ameaça anônima. Velho no meu caso não é nenhuma ofensa e até pode significar um elogio à comprovada experiência que a idade nos trás, mas o “Véio” emitido naquele tom de voz não tinha nada de elogioso. Soou como algo ultrapassado, decadente que deveria ficar em casa desfrutando da aposentadoria por invalidez.
 
Um xingamento só ofende quando acerta o alvo na veia, na lata, e o xingado veste a merecida carapuça. Apesar de ser este destino inevitável como a gravidade, ainda tenho muita sola de bota para gastar no mato e o episodio contribui apenas para enriquecer o folclore da montanha.
 
No Centro de Visitantes, nas Prainhas, reagrupamos a turma e encontramos o Cover com a Soraia que desciam motorizados de Eng. Lange nos oferecendo uma irrecusável carona. No carro fomos apresentados ao Alfredo que, pela manhã, acordou falando espanhol paraguaio carregado no sotaque e aguçou a curiosidade do Lula.
 
– De onde tu és? – referindo-se ao país de origem.
 
– De aká mismo, del Brazil! – encerrou o diálogo.
 
Foram necessárias duas viagens para transportar a todos até a Sorveteria Banana da Terra em Porto de Cima e no intervalo aproveitamos para adoçar a vida e gelar o bico quando do nada surge ao meu lado um ilustre desaparecido.
 
– Mikael, você caiu do céu!
 
Imaginando que estava com sua Chevrolet Blazer fui logo pedindo carona e sem querer coloquei o amigo numa sinuca de bico. Estava ele também de carona no carro de sua simpática namorada que mudou seus planos para acomodar mais dois brutamontes fedorentos no banco de trás. Isto sim é amor verdadeiro, além de carregar o traste do namorado ainda leva na esportiva os imprestáveis amigos dele. Resolvido o problema continuamos a nos entupir de sorvete até que o Alfredo notou o enorme abscesso no meu cotovelo.
 
– Lo que aconteció ahí, machucou-si?
 
– Caí numa cachoeira – expliquei rapidamente – e me quebrei todo.
 
– Está muy feo! Tienes que lavar y cubrir la herida.
 
Bem pensado! Pelo menos alguém por aqui tem juízo. Desmontei a mochila até encontrar gaze e esparadrapo, lavei com água da torneira e protegi o corte com um improvisado curativo. 
 
– Vá a necesitar de antibiótico, tome Benzetacil – sentenciou com precisão.
 
Dividimos a carga por volume e peso. Na Pajero do Cover viajaram os magrinhos com excesso de lotação – Cover, Soraia, Alfredo, Elcio, Johny e o Emerson que insistia em descer na rodoviária de Morretes, mas seguiram pela velha Graciosa onde enfrentariam um engarrafamento colossal. Quatro espremidos no banco de trás era multa na certa quando passassem pela Polícia Rodoviária e o Elcio resolveu fazer o trajeto a pé no que foi seguido pelo Alfredo. Antes combinaram com o Cover para os resgatarem na pastelaria, defronte o portal e partiram correndo. O Alfredo abriu vantagem de uns 200 metros e quando o Elcio chegou no ponto de encontro ainda viu o Cover, aos berros, chamando o Alfredo que já passava por debaixo do viaduto da BR116 a caminho de Curitiba, em ritmo acelerado. 
 
No Fiat Uno da namorada do Mikael, além dos próprios e um amigo da faculdade, seguiam os pesos pesados – eu e o Lula com o grosso das mochilas. Estava morrendo de fome e o cheiro do barreado congelado que viajava no bagageiro me torturou até chegar em casa. Meia hora depois chegaram todos os outros e o Elcio resgatou seu carro da minha garagem para no caminho deixar o Alfredo na estação tubo em frente ao Shopping Estação, mas chegando lá o carona ordenou que seguisse em frente.
 
– Voy a descender algunos quarteirões adelante para recuperar mi mochila.
 
– Que aconteceu? – perguntou o curioso – Foi assalto?
 
– És casi esto! 
 
Uma semana depois, numa pizzaria, desvendei o mistério da ameaça anônima. Tratava-se do Canídia, montanhista do Cosmo, que por algum motivo não declarado se ofendeu com o texto “Encontrada a desaparecida no Itupava” que publiquei – baseado apenas em reportagens veículadas na imprensa – apontando inconsistências entre fatos, lugares e declarações dos participantes e voluntários no circo armado por Denise Ciunek que, depois de 17 dias sumida no mato, milagrosamente reapareceu nas proximidades da Estação Véu de Noiva sem uma picada de borrachudo. 
 
Também nesta semana partiram o Natan, Vinicius, Alisson, Juliano e companhia para a mesma jornada, mas com o azar de sempre tomaram banho de chuva durante todo o percurso. Tanto azar que depois de três travessias só tomaram conhecimento das paisagens que atravessaram vendo nossas fotografias durante a confraternização na casa do Vitamina. Enquanto descrevia o cardápio consumido durante a caminhada, entre uma taça de vinho tinto e um pedaço de pizza, o veterano montanhista não escondia seu espanto e certamente podemos esperar companhia numa próxima empreitada.  Festança regada a vinho onde o anfitrião nos condecorou com as já famosas medalhas da travessia no episódio que será para sempre lembrado pelos “Medalhistas do Itupava”. 
 
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Resumo da Travessia Alfa-Ômega
 
1ª Expedição – 15/05/2010 – Carvalho
Exploração da trilha até o Ferradura e abertura da picada até o Carvalho estabelecendo a rota pela cachoeira Filipe Falcão – João Carlos Andrade (Johny) – Luís Antonio Andrade (Lula) – Raphael Pick
 
2ª Expedição – Carvalho
Exploração da encosta leste na direção do Sem Nome
Otaviano Montes Zibetti – João Carlos Andrade (Johny) – Julio César Fiori – Pedro Hauck
 
3ª Expedição – Sem Nome
Abertura da picada do cume do Carvalho até o fundo do selado, Otaviano Montes Zibetti – João Carlos Andrade (Johny) – Julio César Fiori
 
4ª Expedição – 26 e 27/06/2010 – Sem Nome
Reencontrado o avião no Carvalho e abertura da picada até o cume do Sem Nome Bárbara Pereira – Caroline Cherpinski Zibetti – Elcio Douglas Ferreira – Otaviano Montes Zibetti – Julio César Fiori
 
5ª Expedição – 31/10/2010, 01 e 02/11/2010 – Travessia
Canal, Vigia, Ferradura, Carvalho, Sem Nome, Bivaque no Mesa, Alvorada 4, Alvorada 3, Alvorada 2, Encosta do Chapeuzinho, Encosta do Chapéu, Pernoite no selado do Espinhento, Pelado, Free Way, Cascata Dourada, Pau do Maneco e Estação Marumbi. Emerson Stange (Simepar) – Elcio Douglas Ferreira – João Carlos Andrade (Johny) – Julio César Fiori – Luís Antonio Andrade (Lula)
 
 
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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