Altos perrengues no alto da Bocaina

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Além das notórias “Trilhas do Ouro”, das densas florestas em torno o Rio Mambucaba e dos fundos vales que embicam pro litoral existe uma outra Serra da Bocaina. Uma que aponta pro céu, de terras altas. São os Altos da Bocaina (ou Campos da Bocaina), região localizada no planalto da divisa de SP e RJ e que é dominada exclusivamente por “mares de morros ”, cânions esmeraldas, rios com cachus e cristas com cumes passiveis de serem singrados em varias direções. E foi isto que resolvi fazer neste ultimo feriado: um circuitão que sobe a serra de São Jose do Barreiro, percorre cristas, cumes, cânions e desce novamente à cidade vizinha, Areias, por uma trilha que já conhecia mas que (pra surpresa minha) mostrou-se bem fechada devido as últimas chuvas, me obrigando a descer “na raça”, ora varando mato ou desescalaminhando um rio. Estas são mais outras novas facetas da velha e conhecida Serra da Bocaina: a da imprevisibilidade e do perrengue.


O feriado me pegará de surpresa, com o aniversário da cidade de São Paulo nos brindando com mais dias livres para alguma trip! No entanto, os Altos da Bocaina sempre foram meu “coringa” para feriados não-programados, principalmente em função da correria do dia-dia. Era o caso. O fácil acesso de ônibus e as várias possibilidades de pernadas sempre reforçaram esta decisão. Contudo, na véspera tenho a ingrata notícia da não-confirmação (uma de muitas) de companhia para trip! Dane-se! Não seria a “maledita” previsão meteorológica que também me intimidaria e me mandei sozinho para uma pernada que planejava enquanto arrumava a mochila! Na verdade era um mix de pernadas, uma vez que o tinha em mente era algo do tipo “the best hits” das incursões anteriores!

Saltei em São José do Barreiro, pacata cidadezinha a 500m de altitude que se encontra aos pés da Bocaina, ao meio-dia de sabadão, após uma interminável viagem de bus que consome boa parte de seu tempo em longas (e desnecessárias) paradas em São José dos Campos, Taubaté e Areias. Imediatamente me abasteci de provisões numa padoca e coloquei pé-no-chão, tomando a estrada que sobe a serra do lado esquerdo da simpática igreja da pracinha central, que por sua vez estava bem decorada para alguma festividade naquela noite. O dia amanhecera promissor, embora algumas nuvens pairassem permanentemente no firmamento.

SUBINDO OS 25KM DE SERRA

Enquanto avançava pela sinuosa seqüência de morros pintados de verde-claro, admirava a imponente muralha da Serra da Bocaina se esparramando pelo horizonte à minha frente, com seus picos ocultos por densas nuvens. A partir daqui eram 25kms tortuosos serra acima num desnível respeitável de 1200m, que certamente demanda frete ou os préstimos do folclórico Zé Pescoçinho. Já que meu bolso não permitia frete algum, o jeito foi subir na sola ou tentar improvável carona! No mínimo poderia apreciar com calma as particularidades deste trecho igualmente pitoresco, que passa desapercebido para quem vai pernar a “Trilha do Ouro” no solavanco do fusca do Seu Pescocinho.

A passos rápidos e firmes avanço pela precária estradinha (SP-221) serpenteando a morraria de pasto, cercada de pequenas fazendinhas e algumas roças. Mas meia hora depois a coisa muda e começa a ficar interessante. Os vestígios de civilização não tardam a desaparecer enquanto S Jose vai ficando cada vez mais pequenina, lá embaixo. Devidamente munido de informações de 2 atalhos consecutivos na estrada, não hesito em me valer delas afim de poupar uns 3km da trajeto total. E o primeiro deles é logo uns 500m após passar por baixo das torres de alta tensão, enquanto a estrada faz uma larga curva para esquerda, contornando a montanha adiante, entro numa porteira à direita, para dali subir forte – em linha reta morro acima – por trilho de vaca a encosta aberta de pasto ralo, para cair novamente na estrada, quase 100m acima.

A pernada prossegue com suave inclinação, bordejando outro morro menor pela direita, descrever uma curva sinuosa para oeste, para retomar sentido sul. Após passar numa baixada com o “Sítio Boa Vista” e o “Recanto dos caetanos” é que surge o 2º atalho, e tal qual da forma anterior, vemos a estrada descrever uma enorme volta para esquerda. Daqui buscamos um meio de subir a encosta adiante, subir reto e com forte inclinação, morro acima. Uma vez na encosta, são vários os “trilhos” que sobem, ora através de arbustos, voçorocas de capim-gordura ora aberto no pasto ralo. Caio novamente na estrada, quase 100m acima, onde sentimos a suave brisa soprar no rosto ensopado de suor.

A estrada agora tende virar para oeste até passar pelo rústico Sitio Bela Vista e Encanto da Bocaina, onde sou recebido pelos estridentes latidos de cães, alem de uma lacônica placa indicando o quanto foi percorrido até ali, isto é, 7km! Mas o melhor é uma bica encravada na rocha à beira da estrada, à direita, de onde escorre água cristalina que mata a sede e refresca o rosto. Podemos perceber que o vale vai lentamente se afunilando a medida que se avança, e que logo não teremos mais as largas vistas à nossa esquerda que vínhamos apreciando até então, onde os tons verde-claro dos morros que vamos ladeando contrastam fortemente dos tons escuros dos vales mais profundos.

Na seqüência, passo por outro sitio enquanto um gavião e algumas maritacas protestam ruidosamente à minha súbita aparição na estrada, agora serpenteando uma encosta mais florestada de serra. De fato, S Jose do Barreiro não esta mais visível e a paisagem muda radicalmente. De encostas desnudas de pasto, passamos a andar por encostas forradas de densa e exuberante vegetação, com algumas frestas na mata permitindo algum visu. A estrada dobra para nordeste, como que ziguezagueando a encosta, e é aqui que temos outra bem-vinda bica brotando à esquerda. Nosso caminho vira novamente para oeste, subindo no mesmo ritmo e por terreno cada vez mais pedregoso. Se fica difícil andar imagine um veiculo!? Entre o arvoredo, percebemos que vamos na direção de uma imponente montanha pontiaguda que chamo de pico bicudo, cuja base bordejamos pela direita.

Ao passar do lado da base do pico bicudo, percebemos que mudamos de encosta nesta pré-crista de serra. Agora bordejamos em nível pela direita, no aberto, permitindo um visual soberbo do enorme espelho d´água formado pela Represa do Funil, no meio dos mares-de-morros que limitam RJ e SP, ao norte! A caminhada permanece inalterada por um bom tempo, acompanhando uma crista rochosa de serra composta por imponentes picos à esquerda, onde uma 3ª surge para abastecer cantis menos favorecidos, assim como uma bela revoada de borboletas salpicam o verde da vegetação ao redor. Ao final da crista olho por sobre o ombro para vislumbrar o quão bonito é este trecho que passara desapercebido nas ocasiões em que viera de carro!

Dobramos então abruptamente para esquerda e retomamos a subida para leste, em curtos e íngremes ziguezagues, tendo uma vista privilegiada da crista percorrida. Parece que vai estabilizar, mas não, a pernada prossegue em aclive maior. Os ombros e costas já começam a reclamar após o km18, mas me mantenho resoluto em parar somente no lugar de pernoite, avançando o máximo possível nesse dia. Carona? que nada! Até agora não vira nenhum veiculo nem indo nem vindo!

Após seguir para leste, a estrada faz uma curva para oeste, passando para outro lado da encosta até finalmente nivelar, por volta do km20! Agora sim, as 16:20, estamos no alto da serra, mas não no inicio da trilha. Contrariando as péssimas previsões o tempo estava maravilhoso. Não estava radiante, mas também não havia indicio algum do aguaceiro previsto pela meteorologia. Menos mal. Continuo serpenteando o alto da serra, dominado praticamente por pequenos morrotes de pasto ralo, algumas florestinhas de araucárias e capões de mata, embora a vegetação seja predominantemente de altitude.
Passo pelo Condomínio Serra da Bocaina e, logo adiante, pelo Sitio Lageado, onde outra placa marca o km 24. A estrada descreve uma curva para esquerda e logo para direita. Contudo, antes desta ultima (exatos 2km antes do PN Bocaina), as 17:30, há uma entrada para direita sinalizada por um mata-burro e uma placa “ Fazenda Pinheirinho – Vende-se”, que é o rumo que agora tomo. Uma vez nele enveredo sinuosamente através de pequenos morrotes verde-claro, belas florestas de araucárias e pelas nascentes borbulhantes do Rio Mambucaba.

Ignoro uma bifurcação à esquerda que nos leva à Faz. Sincerro, contornando as encostas do morrote seguinte pela direita. Uma velha construção de pedra surge a minha frente. É a Casa de Pedra, ruínas do que outrora foi uma luxuosa residência do século XIX, que ainda guarda traços clássicos no uso da pedra e desperta curiosidade pelas janelas remanescentes e pela vegetação que hoje habita seu interior. São exatas 18:30 e meu corpo pede arrego em definitivo. O dia rendera conforme o previsto! Monto a barraca atrás da casa, num confortável gramado, apenas para uma vareta arrebentar bem quando se precisa dela, mas uma hábil gambiarra resolve provisoriamente o problema. O tempo aparenta agouras mas todo não passa de um leve chuvisquinho passageiro. Entretanto, bem antes das 20:30 já estou com a janta no bucho e devidamente encasulado no meu saco de dormir, dormindo meu 15º sono em virtude da dia puxado. Nem vi a noite lançar seu manto negro sobre a Bocaina, mas pude sentir que chovera e fizera um frio consideravelmente de madrugada, mas todo dentro do previsto, sem maiores intercedências.

PELO ALTO DO TIRA-CHAPÉU, CÂNIONS E CACHU DA ZUNY

O domingo amanhece frio e com alguma nebulosidade, porém sem chuva. Levantei as 6hrs já mastigando apressadamente meu desjejum, ao mesmo tempo que arrumava minhas tralhas para inicio de jornada daquele dia! Me lanço à estrada uma hora depois, inicialmente passando pela porteira da charmosa Fazenda Pinheirinho (q lembra muito a casa da Dona Benta, do “Sitio do Pica-Pau Amarelo”), para depois o caminho se enfiar sinuosamente em leve aclive numa encosta florestada do morro seguinte rumo o selado que liga o abaulado Morro Boa Vista à extensa cadeia de montanhas da qual faz parte o Tira-Chapéu.

2km após o inicio da pernada chega-se noutra porteira, já no selado, e que deve delimitar a faz Pinheirinho. A estrada continua, descendo o vale, mas não é para lá que vamos. Voltamos uns 80m pela estrada para não encarar essa encosta íngreme à nossa esquerda e adentramos numa picada em meio à mata molhada. Picada esta que logo sobe em curva e alcança descampados de pasto logo acima. Ao dar numa cerca basta acompanhá-la morro acima, íngreme mesmo, porém nada do outro mundo!

A subida pelo pasto ralo de inicio é puxada devido à grande declividade, o que demanda fôlego e pernas, eventualmente quebrando para esquerda para evitar pirambas mais acentuadas! Um tempo depois – e muitas paradas para recuperar o fôlego – a subida suaviza e fica até plana em alguns trechos, permitindo que ganhemos velocidade, sempre acompanhando a cerca, sentido sudeste. Mas não demora a ganhar altitude e os horizontes se ampliam de ambos lados! E assim avançamos pela crista ondulada, as vezes desviando de capões de mata, até finalmente chegarmos num amplo topo onde o pasto aparenta nivelar e a cerca quebra para direita, para sudoeste. Estamos a 1930m, num local pontilhado por grandes pedras que podem providenciar de cadeira que viajantes menos condicionados.

Sempre seguindo a cerca, agora para sudoeste, contornamos um arvoredo, passamos por mais um descampadão de pasto com algumas quaresmeiras, cruzamos dois capões de mata, cujo arvoredo é um verdadeiro “condomínio de bromélias”, para depois emergir outra vez no descampado de pasto ralo num terreno onde o solo é bem mais rochoso e composto de mata ciliar, alem de belos campos de flores lilases.

Às 8:30 alcanço o topo do Tira-Chapéu, dominado por enormes rochas, um cruzeiro, uma placa comemorativa (q erroneamente indica ali ser o ´ponto culminante de SP´), algum mato e um gramado onde é possível espremer 4 barracas. De qualquer forma, estamos no “teto da Bocaina”, a exatos 2088m! Já estivera aqui noutra ocasião, mas o mau tempo não permitiu maior vislumbre do topo, à diferença de agora onde tinha vista panorâmica privilegiada de todo região! Apesar de nublado podia enxergar todo e mais um pouco: de um lado a Baia da Ilha Grande, e de outro a Serra da Mantiqueira e o Vale do Paraíba, coberta por um tapete alvo de nuvens. Ali também atentei para um risco branco em meio à morraria esmeralda, ao norte, que era nada mais nada menos que uma grande queda d’água, a Cachu da Zuny, que desejava atingir novamente! Dessa forma, azimutei a bussola, estudei o trajeto e tomei algumas coordenadas ou referencias visuais que me fossem úteis para chegar à dita cuja! Em tempo, subi o Tira-Chapéu apenas porque esquecera a carta em casa, mas o bom tempo e a visibilidade do alto da montanha já providenciavam uma ótima “carta” que já servia aos meus propósitos! Navegação visual é tudo!

Após descansar, estudar a rota e complementar meu café da manhã com mais umas bolachas, dou continuidade à pernada. Como não voltaria pelo mesmo caminho acompanho a trilha que percorre a crista do Tira-Chapéu, sentido oeste, através de uma sinuosa crista que vai dar noutro morro, também chamado de Boa Vista (!?). Inicialmente a picada envereda em meio a umas grandes pedras para depois prosseguir desempedidademente pelo pasto ralo, sempre em suave declive. Após atravessar um trecho de mata, podemos já vislumbrar a beleza dos vales próximos, cujo verde escuro contrasta com o esmeralda-claro da morraria ao redor! Da mesma forma, avistamos o Córrego do Tabuleiro despencando numa grande cachu numa encosta próxima, ao norte!

Depois de descer um trecho de crista íngreme, bordejar outra encosta (direita) de capim e passar por um cocho abandonado desemboco no amplo descampado que reconheço ser os 1970m do largo topo do Morro Boa Vista. A partir daqui basta acompanhar qq trilho de vaca que siga na direção desejada e inicio de fato minha descida, forte e em curtos ziguezagues, perdendo altitude rapidamente até finalmente cair na continuação da precária estradinha que iniciei a pernada pela manha.

São exatamente 10:30 e ao invés de seguir para Fazenda Santa Isabel (à esquerda), retorno um pouco pela estrada, cruzo a ponte sobre o Córrego Esperança e dou numa simpática casinha que já avistara lá de cima. Abandono a estrada para ganhar novamente a encosta íngreme da seqüência de morros que se espicha sentido nordeste. A passos lentos, porém vigorosos, atinjo um selado de pasto e passo pro outro lado, onde consigo avistar a bela Cachu que é meu objeto do desejo daquela manhã, cada vez mais próxima! Do alto estudo a rota a seguir, uma vez que ainda devo vencer pelo menos dois vales pro norte! Sem trilha, desço a encosta íngreme de capim do enorme morro até cair nas margens de um belo riacho emparedado por enormes muralhas de pasto ralo, que cruzo com cautela (engatinhando), uma vez as pedras no fundo estavam lisas feito sabão!

Do outro lado, acompanho rio acima mas logo sou forçado a escalaminhar uma das paredes verticais de pasto, no sufoco, para ter uma visão panorâmica do rumo a seguir. Do alto já me dou conta que estou quase no miolo da “rede labirintica de cânions” do Alto da Bocaina, resultantes dos vários afluentes do Rio Paraitinga cavando o sopé da morraria ao redor! À diferença dos cânions do Espinhaço (q são de rocha) ou de qualquer outro, os da Bocaina são verdadeiras muralhas verticais de pasto verdejante, o que lhes confere uma certa singularidade! Pois bem, de onde estou desço suavemente o capim para nordeste até dar nas margens de outro remanso, que atravesso com água até a cintura.

Na outra margem ganho nova encosta de pasto até encontrar uma picada, que vai no sentido desejado até mergulhar num grande capão de mata! No entanto, percebo depois que esta trilha apenas acompanha o rio que atravessara, indo pro norte e desviando da rota traçada na bussola (oeste). Retorno em meio à densa mata e encontro outro rabicho de trilha que vai no sentido desejado. Após cruzar outro rio, a picada desemboca num enorme descampado onde já posso ouvir o rugido de uma grande queda d’água aumentando conforme me aproximo. Uhúúú! E num piscar de olhos me vejo ao sopé da Cachu da Zuny, as 11:45, do lado de um enorme descampado capaz de comportar umas 30 barracas confortavelmente!

Nominei a bela cachu assim por desconhecer seu verdadeiro nome, mas depois que conversei com uns locais descobri que aquela era a Cachoeira da Caroba! Dane-se, para mim vai ser sempre a Cachu da Zuny! Detentora de uma queda de mais de 40m, o alto dela esta repleto de poços e tai uma aventura para outra ocasião: subir o sinuoso cânion da cachu, rio acima! Mas hj me contento em apenas mergulhar e me refrescar no poção aos pés da majestosa queda, curtindo o dia de nebulosidade clara, porém quente! Dono absoluto do lugar, tava sem pressa de nada!

Depois de altos tchibuns, comer alguma coisa e até me presentear com um breve cochilo, retomo minha pernada quase as 13hrs voltando por uma trilha que já conhecia da vez anterior e que me levaria até uma estradinha, mais ao norte, sempre bordejando encostas e pirambas íngremes de capim por estreita picada. Entretanto, como meu intuito era percorrer os meandros dos cânions dos arredores, na metade do percurso abandono a trilha em favor de um trilho de vaca que ia sentido nordeste, descendo suaves cocorutos consecutivos. Mas logo me vejo na borda de um novo cânion, onde paro para estudar novamente a rota a seguir. Na verdade me encontrava no alto da confluência de dois rios, que serpenteavam encachoeirados o sopé do cânion! Desci a piramba na raça e cruzei o rio num hábil “jump”. Pausa para fotos, claro, pois a seqüência de cachus e poços ali era espetacular!

Na outra margem iniciei um breve lance de escalaminhada hard, me agarrando no capim e samambaias até atingir o alto, onde pude prosseguir pela continuidade da crista, já em terreno mais nivelado e menos acidentado! Através de topos sucessivos, agora por um discreto trilho de vaca, fui ganhando altitude novamente de forma imperceptível, sentido nordeste, sempre tendo de ambos lados abismos onde rios, afluentes do Paraitinga, corriam furiosos e encachoeirados! E após ladear um enorme morro pela direita, acabei caindo numa precária estradinha que já conhecia da vez anterior, as 14:30. Pausa para descansar na sombra de uma enorme araucária, já que o sol finalmente resolvera surgir com força total, fritando os miolos.

Prossigo pela estradinha despretensiosamente, sempre sentido nordeste, já com o intuito de me acampar no comecinho da trilha do Rio Cambui, pro dia sgte descer a serra. Dessa forma, a estradinha desce a morraria sinuosamente até a Faz. Paraitinga. Cruzo um manso riachinho chapinhando na água, passo pela porteira da referida fazenda e continuo acompanhando a estrada. Porém, após cruzar uma pequena ponte e um pouco antes de começar a subir a morraria à direita, atento pro rabicho da trilha saindo pela esquerda. É a “Trilha do Rio Cambuí”, ou “Trilha do Ecomotion”, uma vez que já foi realizada uma competição através dela. Ela basicamente acompanha o rio do mesmo nome, que marulha placidamente à minha esquerda.

Um tempo depois de adentrar na trilha, acompanhar um grande foco de mata e cruzar um belo córrego sobre lajotas, jogo minhas coisas num confortável gramado, local onde já acampara na vez anterior. São exatamente 16hrs e é aqui que encerro o meu expediente, cansado do exaustivo roteiro palmilhado naquele dia. Antes, porém, mergulhei merecidamente num bem-vindo poção do córrego supracitado, no mesmo instante em que o céu começou a se cobrir de nuvens escuras, já anunciando suas nefastas intenções.

O resto da tarde foi reservado ao puro descanso, beliscando alguma coisa ou simplesmente jogado no interior da barraca, dando vazão aquele típico ócio justificado! Como era de se prever chovera forte no final do dia, mas até lá eu já tava no 16º sono, indiferente a qualquer coisa que se passava lá fora! Somente à noite levantei para “ regar a moita” e pude observar o firmamento coalhado de estrelas, numa visão para lá de inspiradora! Sinal que a descida de serra do dia seguinte seria em meio a um dia lindo e maravilhoso. E tornei a dormir gostosamente, encasulado no meu aconchegante saco de dormir naquela noite fria, típica da Bocaina.

PERRENGUE (COM “P” MAIUSCULO) NA DESCIDA DE SERRA

Levanto as 6hrs sem pressa alguma, afinal hoje era feriado em Sampa, níver da cidade! Sem pressa também pois aquele seria o dia mais fácil da trip, em tese. Mal sabia o que me esperava. De qualquer forma, tomo meu café da manha e assim que minhas coisas são engolidas pela mochila, zarpo dali uma hora depois. O dia estava radiante e o sol já despejava seus raios pelas encostas verdes nos morros da Bocaina.

Prossigo pela trilha adentrando num foco de mata, para depois emergir no aberto bem mais acima, já na beirada do enorme Cânion do Rio Cambuí, cuja parede direita acompanhamos através de estreita picada. De inicio passamos por uma enorme cachu ao nosso lado, onde um poção recebe as águas geladas do referido córrego. A picada basicamente acompanha o cânion, que a medida avançamos vai se abrindo mais a e mais. Bordejando sempre o paredão direito, cruzamos com dois pequenos córregos que despencam no rio principal, que podem abastecer nossos cantis no caminho.

Mas após um tempo de pernada a picada abandona o cânion e adentra finalmente num grande foco de mata, em meio a grande charco e brejo! Inicialmente a trilha é bem obvia e batida, mas a medida que avançamos percebemos que a mata começa a tomar conta da trilha em função do desuso. Paciência. Daqui simplesmente vou varando mato ou contornando os trechos de mata mais espessa. Não tem jeito, é a única forma de avançar, mas a trilha ta ai, bem perceptível à nossos pés se afastar a mata sobre eles! Mas até lá já estou todo ensopado por enxugar a mata molhada ao redor!Eventualmente surgem trechos onde a picada esta isenta de mata, mas no geral a mata cobre boa parte da vereda.

Depois de andar um trecho no plano, serpenteando o resto da morraria à nordeste, o caminho finalmente embica para baixo, descendo forte em largos ziguezagues serra abaixo! O carreiro alterna-se entre uma vala erodida escorregadia, picada e até calçamento colonial, uma vez que um trecho mostra sinais de pedras dispostas regularmente! Mas novamente a mata começa a tomar conta da picada de forma bem mais severa que no planalto, me forçando varias vezes a avançar na raça nalguns trechos mais tensos! Na verdade o que complicou aqui foram os deslizamentos provocados pelas ultimas chuvas, que jogaram muita mais mata sobre a trilha (quase 70%), uma vez que a ultima vez que passei por aqui não tive problema algum! De qualquer maneira, as frestas da mata permitem um belo visual do Vale do Paraíba forrado por um tapetão alvo de nuvens!

A pernada prossegue naquele mesmo compasso, sem variação alguma. Após os ziguezagues ela nivela e passa a bordejar a encosta esquerda da serra, durante um bom tempo! Mas não demora a meu avanço se tornar novamente cada vez mais lento em função da mata obstruindo o caminho, desde grandes troncos tombados a voçorocas de arbustos, bambuzais e taquaruçus despejados por deslizamentos enormes! Ainda assim insisto em prosseguir pela “trilha”, que fica cada vez mais confusa e difícil de farejar. Momentos de dúvida pairam na minha mente quanto a continuidade correta da picada, mas as 10hrs, após cruzar um riacho (onde encontro uma garrafa pet) reforça minha idéia de que tava no rumo certo! E estava, pois logo depois cruzei um enorme bambuzal do qual me recordava da ultima vez.

Mas não tarda a novamente o caminho se ver totalmente obstruído de mata, desta vez espinhenta e cortante, que não me furtou de desferir uma serie de impropérios ao menor contato! Mas logo após avançar mais um tanto (literalmente jogando o corpo sobre a mata), cheguei num trecho onde a picada se perde de vez e nem minha habilidade de farejo encontrava vestígios de sua continuidade! Putz e agora? Voltar era algo fora de cogitação para mim, porque isso significaria mais um pernoite! Mas como já havia avançado quase metade do trajeto, decidi descer o restante da serra na raça, varando mato mesmo! De qualquer forma o trajeto a seguir era um só: para baixo, apenas tendo bom senso de desviar de pirambas e mata mais fechada!

E lá fui eu na minha decisão insana de descer um desnível de quase 700m sem trilha em meio à densa floresta da Bocaina, decisão que depois parei para pensar direito e caiu a ficha: não seria pretensioso e arriscado demais? Dane-se, seja o que Deus quiser! Inicialmente até que o avanço tava razoável, sem grandes dificuldades, apenas descendo a encosta e buscando evitar voçorocas medonhas de taquarucus espinhentos no caminho. Mas logo essa paisagem tornou-se ainda mais agreste com mais mata fechada e pirambas quase verticais, que retardaram consideravelmente meu progresso. Quando dei por mim estava me arrastando sob emaranhados de bambus até dar numa encosta quase vertical, me firmando em tufos de samambaias e tendo como apoios nos pés tocos de arvores de consistência duvidosa! Precisava sair dali urgentemente, mas foi ai que ouvi barulho de água correndo, ao qual me dirigi sem pestanejar! Claro que de onde estava tive que fazer uso de minhas habilidades de escalada em mato, mas felizmente consegui atingir o riachinho que naquelas circunstâncias era musica aos ouvidos!

Uma vez no curso d’água, provavelmente o Córrego Seco, tomei a decisão (desta vez mais sensata) de simplesmente descê-lo me valendo do know-how adquirido noutras descidas de rio, uma vez que qualquer curso d´água constitui em si uma “trilha” pronta, para baixo! Dito e feito, descer o rio foi muito mais produtivo e rápido que andar pela mata ou até mesmo pela trilha, pois a perda de altitude era muito mais significativa! Mas não que fosse também mais fácil, até porque andar pelas pedras úmidas requer cuidado redobrado, sem falar nos trechos encachoeirados verticais, nos quais estudava a melhor forma de descer: ou desescalaminhando as paredes laterais das cachus ou descendo pelas encosta ao lado, pelo mato! Estava também ciente que se me acontecesse algo simplesmente estava ferrado, daí tive todo cautela em tomar a rota sempre mais “segura”, embora este seja um termo relativo, já que teve momentos bem adrenados que demandaram de minhas habilidades simiescas ou reptilianas, habilidades que nem eu sabia que tinha.

Dessa forma e com a adrenalina a mil, perdi altitude considerável num piscar de olhos, mas ainda assim olhava pelas frestas da vegetação e via o topo das montanhas da planície, sinal que ainda faltava um bocado! Foi ai que caiu a ficha (novamente) de que havia a possibilidade que tivesse que bivacar nalgum mocó íngreme daquela encosta de serra, algo impensável para mim! Isso (alem de uma cerva gelada) me motivou a acelerar o passo ainda mais, pois ainda tinha muitas horas de luz antes do dia findar, tempo suficiente para avançar bastante e, quem sabe, chegar lá em baixo! E lá fui eu, descendo mais e mais, passando por cachus e poções belíssimos que provavelmente nunca tiveram sequer algum visitante, para espanto das jacutingas e jacus que reclamavam diante minha passagem!

O tempo passou, a declividade tornou-se mais amena e me vi andando um tempão quase no plano. Já estaria na planície? Mas logo o rio saiu no aberto e me lançou num enorme pântano repleto de um labirinto de matacões de lírios-do-brejo! Acompanhar o riachinho aqui foi um sufoco, pois ou andava pelo rio e afundava a perna até a coxa na lama, ou avançava por cima das voçorocas de lírios-do-brejo, jogando todo corpo em cima, formando um “piso” mais consistente! Alternando sofridamente estas duas formas de avanço, logo pude vislumbrar mais adiante uma estradinha de terra, as 14:30! Uhúúú! Uma alegria indescritível tomou conta de mim e logo interceptei a dita cuja, saindo daquele inferno verde! para minha felicidade caira na mesma estrada que teria chegado caso tivesse seguido pela trilha, isto é, meu senso de navegação continua ótemo! E sem GPS algum!

Pois bem, uma vez na estrada bastou acompanhá-la ainda durante árduos e penosos 8km até o asfalto! Caminhada esta que fiz sem pressa alguma, ainda mais que me dei o luxo para uma breve parada já logo no inicio, onde dei um tchibum num rio afim de me lavar e ficar mais apresentável para conseguir carona! Minha aparência também não ajudava em nada: todo ralado, enlameado, sujo e com mato e capim da cabeça aos pés nem eu mesmo daria carona para mim mesmo!

Uma vez “limpo” retomei a pernada rumo o asfalto ignorando as belas ruínas do casario colonial da Faz. Santa Cruz, no mesmo instante em que o sol se foi e deu lugar a uma chuva torrencial que me deu um segundo banho! Não que este não fosse bem-vindo, mas é que a chuvarada deixou a precária estrada de terra toda enlameada e escorregadia, e em mais de uma ocasião quase me vi chafurdando em meio ao lamaçal! Enquanto isso, mais “cachus” despencavam das encostas à beira da estrada, só que desta vez eram cachus de água barrenta vermelha!

Cheguei ao asfalto as 16:30 no mesmo instante que a chuva parou, e no solitário ponto de bus troquei minha indumentária ensopada por aconchegantes roupas secas, para depois me resignar a esticar o dedão e esperar a boa vontade de alguém em dar carona! Não deu nem meia hora que consegui carona e prontamente saltei em Areias, as 17:30! Uma vez lá, no botequinho que serve de rodoviária, tive que esperar um bocado o ultimo bus que seguia para Guaratingueta, as 20hrs! Nesse meio-termo mandei ver duas cervejas e um suculento PF, da mesma forma que foi ai que comecei a sentir o corpo todo quebrado e ralado! A adrenalina já não corria nas veias e pude sentir as mãos, braços, joelhos e pernas latejando com grande intensidade, quase anestesiados! Mal conseguia levantar da cadeira ou segurar firmemetne o copo de cerveja que agora me revigorava. Fora isso, passei o tempo removendo os trocentos espinhos que ornavam minhas mãos, como se fossem “piercings naturebas”!

Embarquei no coletivo da Pássaro Marrom que me levou embalado no mundo dos sonhos até Guará, onde saltei as 22hrs e imediatamente tomei o bus para Sampa, à qual cheguei por volta de 1 da madruga! Mas como meu “dia de cão” ainda não terminara, tive que atravessar a madrugada num boteco de quinta categoria até dar 5hrs, horário em que pude tomar finalmente condução pro aconchego do meu lar, e dessa forma cunhar mais uma trip com um perrengue de garbo e elegância! Um perrengue digno de nota por varias razoes, seja pelos variados e belíssimos atrativos naturebas que os Campos da Bocaina oferecem, como suas altitudes elevadas, vegetação típica, cânions e cachus cristalinas, seja pelas diversas opções de travessias que seus campos oferecem, opções adrenadas e outras nem tanto. Pensando melhor, o pessoal que me deu cano no feriado escapou de uma aventura e tanto!

Jorge Soto

http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html
http://jorgebeer.multiply.com/photos

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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