Ano novo nos vulcões do Equador

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Férias marcadas em cima da hora e poucas opções por conta da época do ano me fizeram pousar em Quito em 28 de dezembro de 2012, com um itinerário ambicioso pra um lugar com condições climáticas meio de lua.

Minha programação incluiu 2 vulcões de aclimatação, vários dias de descanso, e os 4 picos mais altos do Equador. Na primeira metade da trip estava com um belga e uma britânica, na segunda metade fiquei sozinha e contratei guia pra ir comigo. Sabia que a possibilidade de culminar todas era pequena, até por conta do derretimento acelerado das geleiras equatoriais. Além disso, não consegui treinar tão intensamente quanto gostaria (na verdade não treinei quase nada) por estar terminando meu projeto de TCC.
Mas o pior de tudo, claro, são as coisas sobre as quais não temos controle, e este janeiro no Equador foi, na opinião de praticamente todos os guias que conheci, uma das piores temporadas dos últimos anos – rolou até comparação com o clima da Escócia. Muita chuva, muito vento, muito calor, e consequentemente pouca neve nas montanhas, e de má qualidade, tempestades e empecilhos mil pra todo mundo que estava lá. Pouca gente culminou alguma coisa, e o sentimento geral entre quem estava lá pra escalar era de total frustração.
ACLIMATAÇÃO

Cume do Pasochoa, 4200m – Autor: Cissa Carvalho

Nossa primeira caminhada foi até a cratera Paluluhaua, uma das poucas crateras habitada do mundo. Em vez de subirmos, vamos de carro até 3000m, e descemos até a cratera onde existem umas fazendinhas. Nesse dia deu canseira, mas era o começo, então aceitável.

A segunda etapa da aclimatação foi o vulcão Pasochoa, pertinho de Quito. Também vamos de carro até certo ponto, e de lá caminhamos algumas horas até seu cume (4200m), que é a parte mais alta da borda erodida. De lá de cima de um lado vemos Quito, e do outro a cratera já com vegetação tropical, mas é uma visão bem bonita do contraste entre as gramíneas, a erosão da rocha, e o matagal embaixo.
A terceira parte foi o vulcão ativo Guagua Pichincha (4774m), no dia 31 de dezembro. De novo, vamos de carro até a base, caminhamos por uma estradinha até um refúgio, e de lá tomamos uma trilha até o cume, andando pela borda. Esse dia estava bem nublado e com muito vento, então quando finalmente culminamos, ficamos bem pouco tempo até por conta dos gases que saem do vulcão, bem fedidos por sinal…

O vulcão ativo Guagua Pichincha, 4800m – Autor: Cissa Carvalho

Felizmente ninguém do grupo queria fazer festa no ano novo, então demos um rolê no final da tarde pra ver o começo da festa, jantamos e fomos dormir cedo. A parte fácil da trip tinha acabado.
CAYAMBE (5790m PD)
Cenário desolador: 3 dias de muita chuva e ventos muito fortes nos prenderam dentro do abrigo por 3 dias, coroados por uma tempestade de neve que nos forçou a abortar a tentativa de cume.

3 dias seguidos de cenário desolador no Cayambe – Autor: Cissa Carvalho

Antes de ir pra Cayambe tivemos um dia de “descanso” (descanso do que?), onde iríamos pro mercado de Otavalo. Mas como o único dia do ano em que o mercado não funciona é 1º de janeiro, mudamos os planos e fomos pra Oyacachi, uma cidade bem pequena no lado amazônico dos Andes, mas com termas vulcânicas. Passamos a tarde lá, dormimos na hacienda mais antiga do Equador, e depois fomos pro refúgio.

Que estradinha dos infernos! Pior que essa só a que vai pro Monte Kenya. Já em torno de 4400m pegamos um misto de chuva e neve, e logo depois chegamos ao refúgio, onde o tempo estava totalmente fechado. Nesse primeiro dia, dentro do refúgio mesmo, fizemos alguns procedimentos de encordamento e auto resgate. O vento e chuva continuaram fortes por toda a tarde e noite. No dia seguinte o belga não estava muito bem e resolveu ficar no refúgio. Eu e a britânica tomamos coragem e fomos pra geleira fazer treinamento.
Não deu 5 minutos que saímos do refúgio e já estávamos ensopadas. Mas mesmo com a chuva e vento, minha luva ter aberto a costura e molhado toda a minha mão, me diverti subindo e descendo a geleira. Tipo criança no parquinho, e se pudesse ficava mais… uma besta mesmo… minha falta de noção é impressionante até pra mim, mas enfim. Voltei toda feliz pro refúgio, torcendo pro tempo melhorar pra podermos sair na noite e atacar o cume.
Mas não melhorou. Fomos dormir cedo e acordamos meia noite pra ver como estava o tempo lá fora. Muita precipitação e muito vento. Como decisão de grupo, e tendo já saído durante o dia, decidimos que não ia ser nem um pouco divertido ficar 12h nesse tempo, então voltamos pra cama. Cayambe, a primeira baixa da viagem.
Apenas um grupo com um alemão muito obstinado saiu (ele chegou a ter uma discussão com o guia, que já que tinha pagado, ia ter que sair e chegar no cume… blá blá blá… summit fever total), mas demoraram o dobro do tempo normal pra chegar na geleira, e voltaram em algumas horas. Tinha até uma guia britânico meio famosinho, desses patrocinados e que já fez Everest X vezes (depois descobri que era o Kenton Cool), com um cliente só, e ele mesmo não via sentido em sair com esse tempo. Opinião dessa dada por alguém com essa experiência ajuda a se resignar e aceitar… mesmo assim fiquei frustrada, mas no clima a gente não manda, e não tinha o que fazer. Foi um aprendizado que mais cedo ou mais tarde aconteceria, então me conformei, afinal de contas, a montanha não vai sair de lá.
Quando acordamos de manhã, tudo em volta do refúgio estava coberto de neve. Teve uma tempestade durante a madrugada, e nevava muito de manhã. A estrada estava com bastante gelo, e a passagem por um precipício, com o jipe pesadíssimo e a terra congelada e escorregadia, foi talvez o momento de maior terror da viagem inteira.
COTOPAXI (5897m Via Normal PD)

Tempo abrindo no Cotopaxi – Autor: Cissa Carvalho

Tivemos mais um dia de descanso (descanso do que mesmo?) numa hacienda. No dia seguinte partimos para o Tambopaxi, uma pousada com cara de refúgio já dentro do PN onde fica o Cotopaxi. Nesse dia o tempo já estava melhorzinho, e dava pra ver o cume da montanha. Estávamos todos bem animados, com aquele feeling de que ia dar tudo certo, até porque tínhamos um dia de contingência, então se não desse certo na primeira tentativa, poderia dar certo na segunda.

No dia seguinte saímos cedo do Tambopaxi, em direção ao refúgio. Estacionamos a 4600m, e de lá subimos a pé com as mochilonas (uns 14kg) até 4800m. Cansativo mas deu pra fazer, foi uma breve experiência pra ter noção do que seria fazer uma aproximação de expedição, sem carregadores. O refúgio do Cotopaxi recebe muitos turistas e funciona como restaurante durante o dia, então o andar de baixo é uma zona de gente e criança correndo pra lá e pra cá. No andar de cima só entram escaladores, então é um pouco mais tranquilo e dá pra descansar. Almoçamos maior merreca de comida, e eu já de saco cheio de comer frango, me lembrei de quando estava no Peru, onde passei 40 dias comendo pollo con papas. Trauma! De tarde saímos pra fazer mais treinamento na geleira, e lá estava eu toda alegre na neve e gelo tipo criança quando ganha doce no parquinho.
Na janta bati um papo com uns gringos e um guia muito gente boa que estava por lá pra pegar umas dicas sobre as condições das outras montanhas. Papo não muito animador, mas pensamento positivo sempre!
Como o Cotopaxi é a montanha mais “popular” do Equador, o refúgio é bem cheio e muito barulhento, então foi difícil dormir, e pouco depois que consegui dormir, já acordei de novo pra começar o ataque. De novo, não estava muito frio, talvez 0 graus à meia noite. Foi mais ou menos 1h30 de caminhada até o começo da linha da neve, e de lá seguimos até o começo da geleira, onde logo de saída, já tinha uma subida super íngreme. O bom é que como é muito frequentado, as trilhas são bem marcadas e a neve acaba bem compactada, o que facilita bastante a vida de todos. Ajudou que o céu estava limpasso, e a lua parecia enorme, bem perto de nós, uma visão inesquecível! Em compensação não parava de ventar, o que não é lá muito agradável, mas considerando que o tempo no país tava uma merda, pra mim tava ótimo!
A subida é uma sucessão de zigue-zagues e alguns cruzamentos de greta, mas nada muito assustador. Os momentos de emoção são quando temos que entrar dentro de uma greta pra depois subir meio que escalando com ajuda de uma corda, depois outro momento em que engatinhamos por uma passagem bem apertada e de gelo e com bastante exposição, e por último passamos por baixo de um serac também bem exposto. Lógico que na subida está tudo escuro, então nem dá pra ter muita noção de perigo, mas na volta é que a gente olha pra baixo e vê aquelas encostas brancas que não tem fim, e daí a gente se liga do entorno. Bem perto do cume tem uma parte de uns 50 graus que tivemos que subir de front pointing também com uma neve bem empapada, depois mais umas subidinhas, e finalmente, às 7h50, depois de muito esforço, vento na cara o tempo inteiro, e andar num ritmo maluco (o guia indo na frente muito rápido, a britânica no meio muito devagar, e eu por último sem saber como manter um ritmo constante) chegamos no cume do Cotopaxi. O tempo estava meio fechado e não deu pra ver a cratera inteira, e eu estava tão cansada que nem tirei muita foto. Minha mochila tava coberta de gelo e não consegui achar minha bandeira, então tirei a foto mental e pra mim isso basta. Comi um chocolate, bebi água, tiramos umas fotos e começamos a descer. Pelo menos desta vez era só cansaço. Não tive dor de cabeça nem tontura, no quesito aclimatação, tava tudo perfeito. O que fez falta foi o treino mesmo (maldito TCC)…

Cume no Cotopaxi, 5897m – Autor: Cissa Carvalho

Na descida o guia percebeu que a britânica tava malzona de alguma coisa, bem lenta mesmo. Então até chegarmos no fim da geleira pra poder desencordar, descemos muito lentamente, o que me deu oportunidade de ir tirando umas fotos. Os momentos que no escuro foram de emoção agora com a luz do dia poderiam ser de terror para alguns, mas lá estava eu achando tudo uma grande brincadeira, querendo ficar olhando as gretas, e até levando bronca por causa disso… Depois de desencordar, desci sozinha até o refúgio, e chegando lá já fui recebida com um sorrisão e parabéns do pessoal por lá. Descobri que vários grupos não fizeram cume, e que tinha um cara, um sueco-projeto-de-Ueli-Steck, que chegou no cume em 4 horas. Tava treinando pro Himalaia ou sabe-se lá o que…

Chazinho quente, descanso de uns 10 minutos, fechei a mala e descemos com aquela sensação muito boa de missão cumprida. Agora que o aquecimento tava feito, eu estava pronta pra atacar os dois principais objetivos da viagem. Agora sim o papo ia ficar sério!
CHIMBORAZO (6310m PD Via Normal El Castillo)
Desde antes de sair do Brasil já sabia que as condições aqui eram ruins. Por conta da erupção do Tungurahua e as cinzas que caíam na área, o pouco de neve que tinha estava muito duro, conseqüentemente a dificuldade de locomoção aumentava, e pra piorar, estando a montanha “pelada”, havia o problema de desmoronamento de pedras numa parte abaixo do Castillo, chamada de El Corridor – uma escalaminhada não muito exposta porém bem chatinha por conta dos pedregulhos soltos.

Chimborazo, vítima do aquecimento global, e gigantesco – Autor: Cissa Carvalho

Da pousada até o primeiro refúgio foram 4h de viagem, passando por algumas cidades menores, e finalmente mudando pra uma paisagem de gramíneas e vegetação de altitude (páramos), com muitas vicuñas. Já antes de entrar no PN Chimborazo a visibilidade era baixíssima. Subimos até o primeiro refúgio a 4800 de carro. De lá arrumamos as mochilas pra caminhar até o refúgio Whymper, a 5000m. Mais uma experiência nova! Carregar uma mochila de uns 16kg a 5000m de altitude, mas até que não foi difícil. Pra quem havia seis meses achava que isso nunca seria possível, até que me surpreendi, mas acho que foi a aclimatação, que estava muito boa. Acho que levamos menos de 40 minutos de um refúgio a outro.

Como ambos estão começando a serem reformados, não tinha mais beliche, então tivemos que dormir no chão mesmo. Chegamos às 17h, jantamos, e às 18h fomos dormir. O tempo estava fechadíssimo e não dava pra ver 5 metros na frente. Acordamos às 22h, e com tempo super aberto, céu salpicado de estrelas, e zero de vento, comemos de novo e saímos pro ataque. A única coisa ruim era a temperatura, uns 5 graus… tava bem quente e isso poderia atrapalhar muita coisa, mas no geral, tava super confiante! Era a Pacha Mama deixando a gente subir! Mas a alegria durou pouco. Menos de 2h depois, estávamos a uns 5200 quando, do nada, bateu um vento de leve que foi suficiente pra fazer cair uma chuva de pequenas pedras sobre todo mundo que estava subindo (umas 10 pessoas). Pedras pequenas, do tamanho de uma bola de gude, porém vindo do alto e batendo com força. E bota todo mundo se esconder atrás de blocões de pedra, e quando parou, descemos literalmente correndo. Decepção total! Não dava pra acreditar que em tão pouco tempo a gente já tava sendo expulso dali desse jeito… achei meio precipitada a decisão de em vez de esperar um pouco e tentar passar, mas sei lá, os outros 3 guias e seus grupos desceram então fomos também.
A 1h da manhã já estavámos de volta ao refúgio e fiquei uma meia hora conversando com um grupo de americanos que também estavam no Cotopaxi. Também questionaram a decisão de descer correndo, mas enfim, já estava feito. Fomos dormir de novo e acordamos bem cedo pra descer e voltar pra pousada. A montanha amanheceu lindíssima, com o sol deixando as encostas avermelhadas, e pouquíssimas nuvens. Um pouco antes de sairmos, vimos o sueco-projeto-de-Ueli-Steck descendo com seu guia. Foram a única equipe que chegou ao cume, porque saíram mais cedo e subiram numa velocidade absurda.
ANTISANA (5704m AD Via Normal)

Acampamento na base do Antisana, a 4500m – Autor: Cissa Carvalho

A quarta montanha mais alta do Equador (5704m), é definitivamente a mais interessante de todas em que estive. A graduação alpina é apenas 1 grau acima das outras, mas a diferença é gigantesca. Primeiro que, apesar de se localizar a apenas 2h de Quito de carro, ele fica completamente isolado, no meio do nada. Para acampar, escalar ou qualquer outra coisa, é preciso passar por 2 “portarias”, sendo que na segunda é preciso apresentar autorização do Ministério do Meio Ambiente. Como não tinha ninguém na ida, abrimos a cancela e passamos. Sorte nossa pois na saída percebemos não estávamos com a autorização correta. A montanha tem uma das geleiras mais ativas do mundo, portanto não há rota permanente e sua superfície é quase totalmente coberta de seracs e gretas.

Sendo o Antisana meu principal objetivo, e tendo culminado apenas o Cotopaxi que, confesso, das 4 era a que menos me atraía (sem desmerecer, mas simplesmente não rolou a “química”), cheguei lá a mil, pronta gastar tudo que me sobrava de energia, e que não era pouco. No dia anterior, o Gaspar que eu tinha conhecido no Cotopaxi me ligou falando que o tempo estava bom e que um grupo da Alpine Ascents tinha feito cume, o tempo estava firme, a rota estava livre, então era muito provável que tudo daria certo. Éramos a única dupla na montanha naquele dia. Quando chegamos o tempo estava aberto, montamos acampamento e fomos cochilar. Nesse tempo choveu bastante, caiu chuva de granizo e muita trovoada. Acordamos com um céu estrelado perto das 18h pra jantar, e quando levantamos mais tarde, às 23h, o céu ainda estava bem limpo. Comemos rapidinho, nos equipamos, e entramos na trilha que ia da morena até a geleira.

Antisana e seus dois cumes: literalmente, um parque de diversões – Autor: Cissa Carvalho

A caminhada até o começo da geleira durou uns 40 minutos nos quais eu me senti super bem. Colocamos os crampons, nos encordamos, e já começou uma leve dificuldade: entramos na geleira e ficamos uns bons outros 40 minutos caminhando em gelo duro. Nadica de neve pra facilitar a nossa vida. Nevava bem de leve, mas nada preocupante. As gretas já se fazem presentes bem no começo da geleira, correndo paralelas com pouca distância uma da outra, e ficando cada vez maiores conforme subimos. Nesse tempo também o primeiro susto: ouvi uma barulho forte, como um pequeno trovão. Era uma avalanche perto de nós. Medo! Quando finalmente chegamos na neve, deu pra perceber que não estava lá nas melhores condições. Fofa e úmida demais, o que dificulta a subida, principalmente se levando em conta que a inclinação média aqui era maior que numa montanha como o Cotopaxi.

As horas seguintes foram como caminhar em um labirinto, e em poucos períodos tivemos partes constantes de ascensão limpa. Cruzamos inúmeras gretas de todos os tamanhos, muitas vezes caminhando em bordas bastante inclinadas de poucos metros de largura, separando gretas gigantescas umas das outras. Pontes de gelo medonhas de tão expostas, escaladinhas de até 60 graus em paredes com neve não lá muito confiáveis, com direito a front pointing e às vezes até ancoragens pra garantir a segurança, e uma travessia diagonal curta mas bastante vertical, bem acima dos 60 graus, por cima da ponta de uma greta muito funda. Como estava de noite, eu meio que fingia que não via e ia tocando. O Fernando escutou mais uma avalanche. Chegamos num ponto (5323m) onde a rota normal estava bloqueada por um serac caído. Foi um baquezinho, mas eu já sabia que era uma montanha sem rota e que uma das maiores dificuldades, mas também prazeres, é justamente o route finding. Pelo menos estávamos subindo rápido, segundo ele. Ou seja, estávamos com tempo pra nos perdermos um pouco.
Mas passamos mais 1h30 procurando por um jeito de subir, até chegarmos na borda de uma greta gigantesca, que nos separava da crista, logo ali do outro lado. Tão longe e tão perto! Subi uma parede de gelo de uns 8-10 metros de neve molhada acumulada, que dava pra pegar em montões com a mão. Dava a impressão que aquilo ia desmontar sob nossos pés a qualquer momento. Desta vez, fui eu que ouvi o som de coisas rolando. E bem perto. Era a terceira avalanche rolando perto de nós. Nessa hora descemos da borda, e tivemos uma pequena conversa sobre as condições. Já tínhamos perdido tempo procurando um caminho, as condições não estavam boas, e estariam piores na descida, achando rota logo ou não. Decidimos descer um pouco e uma vez mais procurar uma rota. O caminho ideal era por baixo de uns seracs, onde o Fernando  imaginou que tivesse rolado a última avalanche. Realmente não era muito animador passar por ali: uma parede de gelo da altura de um prédio de uns 3 andares, com vários blocos menores recém caídos embaixo. O pouco que consegui iluminar com minha headlamp foi suficiente pra meter medo. E foi uma decisão difícil – dessas que você no fundo é contra, mas o pouco que te resta de bom senso vence. Às 4h02, a exatos 5294m, decidimos dar meia volta e descer.
OS FINALMENTES
Foi um retorno doído, e chorei bastante pois realmente era a única montanha que eu fazia questão de culminar. Mas passados alguns meses depois da viagem, avaliei bem tudo que passei por lá, e colocando tudo junto, foi uma experiência enorme de aprendizado em pouquíssimo tempo. Se resignar a não subir uma montanha por conta de mal tempo; dar meia volta por conta de condições ruins; dividir cordada com gente que voce não conhece e tem condicionamento diferente; e ter só pra voce uma montanha inteira, totalmente inóspita, sem trilha pra seguir e se enfiando em cantos e situações realmente desafiadoras… no final das contas consegui tudo que eu queria, que era ter contato intenso com esse ambiente novo, participar ativamente da subida, ao invés de ficar atrás do guia colocando um pé na frente do outro.
Achei que fosse argumento de venda essa história de que as montanhas do Equador são ótimo campo de treinamento pra quem quer ir pro Himalaia. Talvez até seja, mas a variedade e diferença entre os vulcões, as geleiras complexas, e o próprio clima imprevisível fazem de lá uma grande escola pra vários níveis de escaladores. A obrigatoriedade de guia é um empecilho pra alguns, mas os que tem certificação internacional me pareceram fortíssimos e muito preparados.
Melhor ainda é que juntando minha experiência no Antisana com meu crescente envolvimento com a escalada em rocha, mudei completamente meus objetivos e vontades. Ascender cada vez mais alto perdeu um pouco o sentido, e me parece que o desafio das montanhas técnicas e isoladas é muito mais tentador. Se voltar ao Equador, será pra tentar novamente o Antisana, e ainda o El Altar. Novamente vivi um contraste que cada vez mais determina meus caminhos, na África foi a diferença entre Kilimanjaro e Monte Kenya, no Equador a diferença entre lotado Cotopaxi e o místico Antisana, além de muitos outros paralelos que podem ser traçados em outras cordilheiras.
Na segunda feira, 14 de janeiro, saí de Quito (e não é que a Avianca quase perde minha mala!), a caminho do Brasil, de novo doida pra começar uma nova contagem regressiva.
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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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