As montanhas encurtam distâncias

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Parece uma afirmativa meio sem sentido, longe disso. No decorrer deste texto o leitor terá consciência de que o velho ditado de Maomé (“Se a montanha não vem a Maomé, Maomé vai à montanha”), que surgiu por causa de uma situação de cunho religioso, na verdade carrega consigo na comunidade de escaladores e alpinistas um sentido diferente, essencialmente social. Uma verdadeira globalização do montanhismo como um todo.


Diz
a lenda que Maomé, profeta fundador do Islamismo que pregava a
simplicidade, foi desafiado em uma determinada situação em que tentava
converter um grupo de árabes. Os árabes disseram que, se de fato ele
tinha a graça divina, que movesse o monte Safa (na atual Arábia Saudita)
até perto de si. Maomé tentou, mas nada conseguiu. Sábio, disse que Alá
não atendeu seu pedido, pois sabia que, se movesse a montanha para
perto de seus súditos, poderia matá-los. Assim Maomé foi até a montanha.
Nasceu o ditado conhecido até hoje no mundo todo.

Ironicamente montanhistas estão muito mais relacionados com o ditado do que se pensa.

Mochileiros, futuros montanhistas

Não é
regra, mas muitos mochileiros de primeira página tornam-se montanhistas
da página dois em diante. Qual é a intenção de mochilar? Viajar a baixo
custo, conhecer culturas, gastronomias, monumentos, vidas e costumes de
um país. Nós, sul-americanos, somos muito bons nisso, senão os mais
ativos. Mochilar é conosco mesmo. Temos diversos países, muita cultura e
gastronomia para conhecer, temos maravilhas do mundo e proximidade
favorável que, dependendo do país objetivo, nem precisamos de ponte
aérea. Não preciso ir muito longe para explicar isto, eu mesmo fui
exclusivamente mochileiro de meus 18 anos até os 29 quando entrei no
montanhismo por um acaso da vida, enquanto mochilava por quatro países
da América do Sul. Ainda me considero um mochileiro, mas também sou
montanhista.

Qual
mochileiro nunca bateu papo pela internet com algum amigo de outro
estado brasileiro ou outro país sul-americano (ou fora do nosso
continente) e marcou de se hospedar para reduzir o custo da viagem? Qual
mochileiro nunca usou ou ouviu falar de couch surfing? Qual mochileiro
não dorme em albergues ou campings? Diabos, eu já dormi na rua em cinco
estados brasileiros e pelo menos quatro países!

Conclusão:
mochilar encurta distâncias porque promove relacionamentos
interpessoais entre pessoas de diversas idades de países e continentes
diferentes.

Montanhismo como fator de coesão social

O
montanhismo gerou certa identidade social para os montanhistas. Ser
montanhista é “legal”. Usar roupas próprias para a atividade é
interessante. Equipamento bom é muito interessante, só nós sabemos o
quanto. Da mesma forma que o montanhismo estimula em certo ponto de
vista o consumismo, também é um importante fator que reduz distâncias.

Você,
montanhista brasileiro, se satisfaz em fazer trekking ou escalar
montanhas só no Brasil? Mesmo que responda positivamente, rebato com
outro questionamento: Quando vai à montanha como Maomé foi, gosta de
fazê-lo sozinho? Vou refinar ainda mais a pergunta: não é legal quando
encontra na montanha, trilha ou acampamento, algum conhecido, mesmo que
nunca o tenha visto pessoalmente? Sim! Sei que a maioria esmagadora faz o
máximo que pode em território nacional e depois disto o próximo passo é
tentar mais, se esforçar mais: Andes! Como o montanhista brasileiro vai
aos Andes? Modelo de mochilagem. Coloca tudo que dá na mochila, ou nas
mochilas, e pega a estrada.

Quando
você planeja sua viagem, como faz? Normalmente procura fóruns, tópicos
no mochileiros.com, Facebook, envia um e-mail para o altamontanha.com
com sua dúvida. Você vai buscar na internet o croqui da via de escalada,
vai baixar o arquivo e passar para seu GPS. O mais interessante é que,
se você tiver um amigo ou um correspondente no país que planeja ir,
provavelmente vai tentar marcar de escalarem juntos. Hoje isso já é tão
normal que pode até ser chamado de “procedimento”.

Digo
isso porque eu me sinto assim e sei que muitos de nós (a grande
maioria, presumo) sentem a mesma maneira. É realmente um barato trocar
e-mails durante meses com alguém, seja por Orkut, Facebook, blog,
Flickr, qualquer modalidade de rede social, e depois de todo este tempo
ter a oportunidade de conhecer o outro em carne e osso, trocar
experiências, falar de montanha, equipamentos, comida na montanha…
Isto tudo é muito legal. Aliás, é só o que eu faço quando estou na
montanha. Faz parte da minha identidade social constituída.

Quantas
vezes você parou para refletir sobre o montanhismo e nossa interação
com a natureza e o outro? Somos muito sociáveis e comunicativos, sempre
críticos por natureza, por vezes deveras politizados e até soltamos
faísca de vez em quando por divergência de opiniões. Faz parte.

Quando
foi que alguém te reconheceu na montanha e isto te irritou? Aposto que
não te irritou, você curtiu. Se no momento houvesse um “curtímetro” do
facebook interativo acho que você clicava nele! Eu sou um montanhista
“ainda no berço da atividade”, mas já fui reconhecido na montanha na
Bolívia, na França e no Equador. Fácil de se explicar, utilizo meios de
comunicação de massa para expor minhas aventuras, compartilhar minhas
experiências e fotografias. É fácil ser reconhecido quando se é
brasileiro, filho de portuguesa e com feições faciais que lembram o
Oriente Médio. Eu aposto que se algum dia você estava na montanha mesmo
que sem fazer nada, acampado, alguma pessoa passou ali e te chamou,
perguntou se você era o fulano de tal e você confirmou, você se sentiu
um tanto quanto orgulhoso certo? Aposto que sim. É gratificante! É um
sentimento bom, confortante. Já passei por isso um monte de vezes e
sempre sinto aquele arrepio no ante-braço quando me perguntam “Você que é
o Parofes?”.

Conclusão:
O Montanhismo enquanto atividade de interação homem x natureza, reúne
constantemente no mesmo local indivíduos com o mesmo objetivo. Por
muitas vezes estes indivíduos se conhecem, seja virtualmente
(tornando-se conhecidos na realidade, pessoalmente), seja pessoalmente
(reencontro). Estes indivíduos interagem, tornam-se amigos (ou não,
entretanto na maioria sim), marcam novos encontros, novas escaladas,
viagens. É viável então afirmar que o montanhismo fomenta a coesão
social.

Meios de comunicação em massa: Internet, portais e blogs

A
internet é indubitavelmente o meio de comunicação em massa carro chefe
para o montanhismo. Dentre o elenco de portais que são utilizados
destacam-se muitos, cada qual de seu país, cada qual com um visual
diferente, mas todos com informações muito, muito similares.

Aqui
no Brasil existem diversos, dentre os maiores e de mais visitação temos
o próprio altamontanha.com, o blog de escalada e tantos outros blogs.
Aqui e nos diversos sites encontramos informação para nossa atividade,
temos artigos, artigos técnicos sobre equipamentos, relatos,
entrevistas, notícias, páginas sobre montanhas específicas, indicação de
serviços, indicação de lojas de equipamentos, informação fotográfica,
informação filmografada, páginas com artigos Históricos e sobre
personalidades do montanhismo mundial. A quantidade e qualidade de
informação é impressionante. Temos até uma página específica para
informação de montanha e download de arquivos para Google Earth e GPS, o
RUMOS.

Fora
do Brasil, assim como aqui, cada país tem seu elenco de portais ou
sites que de maneira similar fazem o mesmo trabalho. São tantos de
destaque que fica até complicado citar todos. Entretanto, um deles se
destaca absurdamente, pois apesar de ter iniciativa norte-americana,
tornou-se um ícone de informação em montanha. É o famoso summitpost.org.

Portal
de conteúdo voluntário, 100% elaborado e publicado por membros que não
recebem nada por isto, assim como o altamontanha.com o trabalho é
voluntário. O site acumula o impressionante número de 54.000 (cinqüenta e
quatro mil) membros. Este número cresce dia após dia. A quantidade de
visitas mensais do portal é astronômica, chega aos sete dígitos.

Observando
os tópicos o que mais vejo é montanhista tentando marcar escalada ou
trekking com montanhista. Troca de informações de montanhas, de
rotas…Isso é muito comum lá. Os tópicos que mais acontecem são de
informações sobre condições de rotas, gelo e equipamentos. Outra coisa,
esta um pouco triste e é muito comum ser observada no portal. Como a
projeção do site é gigantesca e o número de membros é muito grande,
constantemente ficamos sabendo do falecimento de um membro do site.
Praticamente um por mês perde a vida nas montanhas em algum lugar do
mundo. Bem, fácil de se compreender. Muitas pessoas têm medo de voar,
mas mesmo registrando todos os acidentes aéreos, quando comparados ao
número de pousos e decolagens por dia no mundo todo, a estatística de
acidentes fica irrisória.

Comparando
o número de membros do site com o número de saídas à montanhas que
fazem semanalmente, comparando com o número de abertura de rotas
técnicas, condições de gelo, aquecimento global, tempestades,
imprudência e etc, ainda assim, o número de mortes é muito baixo. Quando
acontece, um tópico é aberto com a nota de falecimento do membro e
muitos de nós comentamos neste tópico. Nos últimos 12 meses pelo menos
três que eu conhecia virtualmente morreram nas montanhas. Conhecer de
votar nas contribuições, de trocar comentários em fotos, mensagens.

Conclusão:
Meios de comunicação de massa também são uma importantíssima ferramenta
de coesão social no mundo do montanhismo em geral. É de se registrar
que, provavelmente, atualmente, seja o mais importante de todos. Hoje, é
muito mais comum conhecer pessoas primeiro no virtual e depois no real.

Admiração ao natural, consciência ecológica e afins

Qual
é o montanhista ou mesmo eco turista que não fica boquiaberto admirando
um belo pôr de sol na montanha, na serra, no canyon, na cachoeira, seja
lá onde for? Qual é o montanhista ou eco turista que não fica feliz e
faz fotos divertidas quando chega ao topo de uma montanha, ou quando
termina uma longa travessia?

É
constatação empírica que o homem admira as montanhas há milênios.
Independentemente de quem observa, uma bela montanha como o Agulhas
Negras impressiona. Diversas vezes observei no Parque Nacional do
Itatiaia turistas vindos de diversos estados brasileiros passando ao
lado do Abrigo Rebouças só pra fotografar a montanha: “Aquele ali que é o
Agulhas Negras? Nossa que incrível!” escutei dúzias de vezes.

Está
na moda a consciência ecológica. Mesmo que não se importe com isso, é
capaz de um indivíduo praticar separação de lixo porque está na moda ou é
o que todos fazem em seu condomínio. Organizações não Governamentais
que lutam pela consciência ecológica estão na moda com uma grande
diferença: Nestas ONGs os membros (suponho e gosto de pensar que sim)
são mais informados e de fato pensam ecologicamente, utilizam de
subsídios diversificados para realizar suas palestras, manifestações,
paralisações, divulgações.

O
grande problema aqui no Brasil é que se confunde consciência ecológica
com medidas proibitivas. As Unidades de Conservação e direções de
Parques Nacionais em nosso país não praticam conscientização com o
público que freqüenta caminhadas, trekkings e escaladas dentro dos
limites dos parques. Pelo contrário, proíbem.

Pergunto,
como pode o homem admirar, contemplar e por conseguinte respeitar a
natureza e tudo a que se relaciona, se ele é impedido de ver e desfrutar
do ar puro que tais locais proporcionam?

Ironicamente,
penso que é um tiro que sai pela culatra. A admiração ao natural une
famílias que fazem campismo e gostam de desfrutar de um contato com o
verde sem os problemas que uma grande metrópole nos causa. Grupos de
amigos marcam travessias e trilhas, escaladas, acampamento e conquistas
de vias de escalada. Festas de abertura de temporada de montanha aqui no
Brasil são comuns em cidades diferentes.

Penso
que as proibições só geram mais tentativas. Penso que as proibições só
reforçam mais ainda os pequenos grupos sociais representados pelos
clubes, associações e federações e montanhistas independentes como este
que vos escreve a brigar pela reabertura dos locais fechados,
autorização para camping e pernoite dentro dos parques. Medidas
proibitivas são soluções paliativas das administrações que só causam
revolta e mais união dos praticantes de montanhismo e admiração ao
natural no geral, com o objetivo de reconquistar o direito de ir e vir,
previsto na constituição brasileira de 1988, vigente até a presente
data.

Conclusão:
A admiração à natureza e tudo que nela está associada à consciência
ecológica e, ironicamente, às medidas proibitivas que constantemente
sofremos, só reforçam a coesão social entre nós, seres sociais, que
almejamos nossa liberdade incondicional.

Conclusão final

Acredito
que tenha ficado claro que, apresentadas as reflexões deste mero
montanhista independente brasileiro de curta carreira, amante
incondicional da natureza e de todos os aspectos que compõem a elegância
inegável das montanhas e vales, verdes ou brancos, a montanha enquanto
objeto objetivo dos mochileiros, montanhistas, alpinistas, trekkers,
campistas, fotógrafos e eco turistas, atrai as pessoas a um mesmo local
e, o fazendo, é&nbsp, invariavelmente um fator de coesão social de
importância incalculável.

Dadas
as justificativas apresentadas no decorrer do texto, sejam elas
devaneios solitários ou não, possuem fundamentação argumentada em
análise social e, portanto, é seguro dizer que: As montanhas encurtam
distâncias.

Sabemos que a montanha não vem até nós, vamos às montanhas!

Abrazos a todos

Parofes

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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