Avião do Carvalho

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Na manhã de sexta feira, 03/11/1967, chovia torrencialmente sobre a Serra do Mar nas proximidades de Curitiba, quando o turbo hélice prefixo PP-SDJ 190 operado pela Sadia Transportes Aéreos (depois Transbrasil) fazia sua aproximação para descida no aeroporto internacional Afonso Penna. Cerca de uma hora antes havia decolado de Congonhas, na capital paulista, com 20 passageiros e 5 tripulantes a bordo.

O turbo hélice PP-SDL número 190 foi fabricado pela Handley Page em Woodley Town, Reading, na Inglaterra e estava equipado com 2 turbo propulsores Rolls-Royce modelo Dart Mk-527 de 1.425 cavalos força cada e juntos forneciam um empuxo total de 3.820 hp para elevar o aparelho, com capacidade máxima de 58 pessoas, a 8.140 metros (29.700 pés) de altura numa velocidade de 435 Km/h. O avião era praticamente novo pelos critérios da aviação civil usados na época. Seu vôo inaugural ocorreu em 02/11/1965 e no dia sete do mês seguinte já operava comercialmente pela Sadia. Completaria 3.192 horas de vôo naquela manhã, mas o relógio parou um dígito antes, às onze horas e trinta minutos, na Serra do Marumbi.

    – Atenção TWR, aqui PP-SDJ 190 na rota 270.
    – Ouvindo SDJ.
    – SDJ ultrapassou 032 de SBBI há 2 minutos e estabilizando.
    – Ok! SDJ.
    
O que o comandante não sabia por estar com os VORs (equipamento eletrônico de navegação) desligados é que enfrentava forte vento de proa que o atrasava alguns segundos a cada quilômetro avançado em relação ao ultimo ponto de referência. Chamavam este procedimento de “voo por relógio” e exatamente a 25 quilômetros de distância da cabeceira da pista ou aproximados 4 minutos, o avião se chocou com o cume do Morro do Carvalho numa altitude registrada de 4.635 pés

Redescobrir seus destroços 44 anos depois é missão para arqueólogo. Ciência que desde sempre fascinou a humanidade e décadas atrás também forneceu meu instante Indiana Jones ao encontrar os restos da Janela da Conceição seguindo as pistas fornecidas por um caboclo de Morretes. Nada inédito nem muito importante, mas para mim foi emocionante. Primeiro o trabalho de pesquisa, ler mapas, ouvir histórias, montar o quebra-cabeça e formular uma teoria. Depois o trabalho de campo abrindo picadas, conferindo o rumo e estudando os indícios no terreno. Aparece um pedaço de concreto, um cabo de aço e uma ponte encoberta pela vegetação. A picada avança pelo mato bravio abandonado a própria sorte por décadas para finalmente revelar o que restou da ocupação humana no meio da selva.

O encontro com os restos do avião Dart Herald da Sadia (Transbrasil) não foi muito diferente. Sua localização no Morro do Carvalho nunca foi segredo e poucos anos atrás o pessoal do Nas Nuvens Montanhismo encontrou partes do trem de pouso da aeronave descansando sobre um cume secundário e marcou as coordenadas no GPS.

O achado no Carvalho não foi fortuito e nem tampouco planejado. Na primeira investida o Johny com alguns amigos avançaram do cume do Vigia para o Ferradura até o grotão no fundo do vale e de lá escalando uma pequena cachoeira estabeleceram uma rota dentro da macega até o Carvalho. Na segunda investida já estava presente juntamente com o Otaviano, o Pedro e o Johny. Choveu ininterruptamente e fez um frio dos diabos. Atingimos o cume do Carvalho em 3 horas e seguimos para o Sem Nome debaixo d’água sem nenhuma referência visual e só podia dar no que deu. De grau em grau, no meio da floresta espessa, a picada perdeu o rumo.

A terceira tentativa foi mais frutífera, com tempo excelente retificamos o rumo e atingimos o divisor de águas no início do vale. Retornei uma hora antes para procurar o avião e sozinho vasculhei todo o cume principal sem encontrar nenhum vestígio. Do alto de uma árvore até que vi o cume secundário a sudeste, mas o avançado da hora, a vegetação fechada e a preguiça me desestimularam em prosseguir.

A trilha tinha avançado demais no coração da morraria para que novas investidas de ataque resultassem em progresso significativo, então na primeira oportunidade partimos com as cargueiras preparadas para um pernoite. Desta feita me acompanharam o Elcio, a Barbara, o Otaviano e a Carol com as coordenadas fornecidas pelo Natan. Depois de caminhar três horas e meia abandonamos as mochilas no chão e partimos para a exploração do cume sudeste vencendo uma vegetação infernal, macega de cume e compactas moitas de taquara até que o Elcio encontrou traços de uma velha trilha e finalmente o trem de pouso descansando numa pequena clareira. Ainda insatisfeitos reiniciamos as buscas pelas inclinadas encostas recobertas pela intricada vegetação e não tardaram a aparecer outros destroços enterrados sob uma grossa camada de folhas secas e raízes.

Alguns pedaços de alumínio da fuselagem descansam entre as árvores e mais abaixo descobrimos toda a turbina Rolls-Royce partida em dois pedaços precariamente equilibrados na vertente inclinada. Só esta turbina tem mais de três metros de comprimento por um metro e vinte de diâmetro. O que restou do avião está espalhado pela encosta, dividido em fragmentos pela violência do impacto. Sinais de uma tragédia humana que a história registrou enquanto a natureza pacientemente encobriu.

O acidente vitimou 21 pessoas no impacto e deixou outros 4 feridos, o radiotelegrafista, um engenheiro de voo e 2 passageiros, que esperaram mais de 27 horas para serem resgatados pelos bombeiros que escalaram a montanha abrindo uma picada. Dos feridos 2 vieram a falecer em hospitais de Curitiba e 2 sobreviveram para contar a história. O curioso é que sobreviveram apenas os que foram arremessados para fora da cabine por não estarem atados as poltronas pelos cintos de segurança no momento do impacto.

A história do resgate é bem mais cabeluda. Foram tempos difíceis em que os recursos humanos e materiais eram muito escassos. O acidente ocorreu as 11:30 horas da manhã com tempo péssimo; chuva e neblina, e os bombeiros foram imediatamente acionados atingindo as encostas do Carvalho pela Estrada dos Mananciais onde iniciaram uma picada. Bateram facão até a exaustão e as 19:00 horas montaram acampamento para o pernoite. Neste mesmo horário, depois de um dia normal de trabalho, alguns poucos montanhistas, Vitamina inclusive, conseguiram se mobilizar e iniciaram a escalada da montanha por outra face, via Morro do Canal. Avançaram noite adentro ouvindo batidas compassadas na fuselagem, gritos de dor e gemidos intensos na medida em que se aproximavam. Chegaram ao local do desastre juntamente com a coluna dos militares que reiniciou os trabalhos ao amanhecer. Já havia pouco o que fazer e boa parte dos feridos morreram de hipotermia durante a noite úmida e gelada da Serra do Mar.

Comenta-se na região que tudo com algum valor comercial, principalmente alumínio, foi destrinchado e resgatado com o uso de carrinhos de mão e padiolas pela picada aberta pelos bombeiros até a Estrada dos Mananciais, onde seguiu seu destino para reciclagem. Nada se perde, tudo se transforma ou quase isto.

Até meados da década de 80, quando a aeronáutica iniciou as operações com os radares aéreos do projeto Cindacta, os acidentes com aviões na Serra do Mar eram demasiadamente frequentes e seus fragmentos ainda estão espalhados pelas montanhas em lugares de difícil acesso.

Dados Técnicos da Aeronave
Fabricante: Handley Page (Reading – Inglaterra)
Tipo: Handley Page HPR.7 Herald
Motor: 2 turbo propulsores Rolls-Royce Dart Mk-527 com 1.910hp ou 1.425 Kvv (cada)
Altura de Serviço: 29.700 pés ou 8.140 metros
Velocidade de cruzeiro: 275 mph ou 435 Km/h
Empresa Operadora: Sadia Transportes Aéreos (futura Transbrasil)
Registro: PP-SDJ
Número de Série: 190
Primeiro Vôo: 02/11/1965
Início das Operações Comerciais: 07/12/1965
Horas Voadas: 3.191 horas
Capacidade: 58 passageiros

Dados do Vôo e do Acidente
Data: 03/11/1967
Origem do Vôo: Congonhas –SP (CGH/SBSP)
Destino do Vôo: Afonso Penna – PR (CWB/SBCT)
Hora do Acidente: 11:30h
Altitude do Choque: 4635 pés ou 1.412,74 metros
Localização: Morro do Carvalho (Serra do Marumbi) a 25 Km (15,6 mls) do destino
Tripulação: 5 (todos pereceram)
Passageiros: 20 (18 pereceram)
Motivo da Queda: O relatório do acidente apontou que o mesmo “voava por relógio”, com os dois VORs (equipamento eletrônico de navegação) desligados conforme comprovado nos destroços. Estava fazendo a chegada em SBCT (Curitiba) no rumo 270 e informou a TWR (torre de controle) que havia ultrapassado a relativa 032 de SBBI, que é o ponto onde o terreno já está plano a 4 minutos do NDB CT.
Aconteceu que o comandante não voava pelo VOR e pegou vento de proa que o fez se atrasar na chegada ao NDB CT e informou a TWR que estava 2 minutos a frente do bloqueio quando, na realidade, ainda se encontrava sobre a serra.
Probable Cause: "Pilot error through improper procedure in instrument flight.
a) Lack of a dynamic programme for aircraft accident prevention;
b) Non-confirmation over Curitiba Afonso Pena NDB;
c) Inaccurate position relative to Curitiba/Bacheri NDB;
d) Failure to use VOR equipment;
e) Failure to execute all the phases of the descent, with assumed interception of downwind leg without confirmation of position;
f) Momentary radio-direction finding indication of inaccurate fix."

Alerta
Local de difícil acesso. Distante aproximadamente 5 horas de caminhada pesada, por mata densa, sem trilha ou picada demarcada. Passagens verticais expostas, com fendas profundas e muitas vezes escondidas por galhos podres e folhas mortas. A subida do Morro do Carvalho é executada vencendo um lance vertical de grau III na pedra úmida onde são necessários alguns conhecimentos de escalada técnica. Não fornecemos tracklog para GPS.
 

 

 

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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