Batismo de Fogo no Tapapuí

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O Bira é um quarentão com uma protuberância abdominal considerável, mas não exagerada, que resolveu deixar de ser sedentário. Talvez depois de alguma experiência amedrontadora. No ciclo de vida masculino alguns gargalos são inevitáveis e há momentos em que se sente apenas medo e outros que geram verdadeiro e genuíno terror. A diferença entre um e outro não é apenas o fator de escala, na realidade o medo é uma reação natural experimentada imediatamente após a primeira vez em que não se consegue dar a segundona e o terror já é de outra categoria. Ele aparece na segunda vez em que não se consegue dar nem a primeira. O medo passa, mas o terror é prá sempre.

Existem também muitas outras razões para o medo e nada indica que os motivos do Bira tenham qualquer relação com os acima citados. A única certeza é que por força do destino tornou-se cunhado do Moisés, aquele da "Arca", e isto o trouxe até nós. No planeta Terra é assim, aqui se faz e aqui mesmo se paga. Do pecado nem tenho idéia, mas se é pra castigar, deixa comigo!

Então o Moisés programou uma caminhada light pelo Getúlio e, restando energia, talvez uma tentativa no Itapiroca. Achei a oportunidade excelente para convidar o Pioli que há vários anos deixou de nos acompanhar devido a problemas de saúde. Primeiro extraiu duas úlceras para em seguida sofrer com uma trombose na perna direita e a isto tudo se soma os cinco anos de sedentarismo.

Partimos no horário combinado e na altura do posto Tio Doca o Elcio já ensaiava das suas, "Se tivesse companhia iria até o PP!" Mas se depende de companhia hoje não passa do Getulio porque "eu dedicarei o dia para caminhar com meu velho amigo Pioli", fui logo encerrando a questão. Na fazenda o Elcio vazou e alegremente fomos ficando para trás. No primeiro mirante uma parada, na Pedra do Grito outra pausa e por fim na lagoa demos um tempo para o Pioli procurar pelas mudas de fruteiras que juntos plantamos alguns anos atrás.

Em ritmo de passeio chegamos ao cume ensolarado do Getúlio onde passamos longo tempo colocando a conversa em dia sem jamais deixar de relembrar o passado. Vendo que tanto o Pioli como o Bira estavam bem dispostos e com energia sobrando resolvemos encarar o Caratuva apesar dos fiapos de nuvens que já começavam a riscar o horizonte. O frescor da mata e do rio tornavam o ar agradável na primeira parte da montanha, mas o calor aumentava cada vez mais com a altitude e da metade para frente as paradas se tornaram mais freqüentes até que no terço final dividiu-se meio a meio o tempo de escalada com o de descanso. O consolo é que em breve teríamos vista desimpedida no cume da montanha e muitas horas de vagabundagem para recuperar o fôlego.

Esta era a esperança, mas a realidade resolveu testar a força de vontade do novato e do veterano inconformado com a parada forçada. Ao sair do mato vimos o Getúlio todo ensolarado e a tempestade envolvendo o cume numa distância inferior a cinqüenta metros. Não subimos até ali pra morrer na praia sem dar um mergulho e vá que a nuvem se dissipe com o vento! Tocamos em frente, penetrando nas brumas e recebendo na cara os primeiros pingos gelados.

Do cume desciam em fuga os poucos que nos aguardavam por lá. O Kayo, o Ricardo e o Helton que ainda perdeu um tempo conosco comunicando que o Elcio havia se mandado para o PP completar sua septuagésima (é isto mesmo: 70º ) ascensão. Nada me impediria de chegar ao cume e comer alguma coisa em meio das antenas, caixas e quiquilharias espalhadas por lá, mas chegando mal consegui salgar um ovo cozido em meio a tempestade gelada que desandava sobre nossas cabeças. Em minutos virou tudo num mar de lama e o Pioli ainda se aventurou a circular pelo cume para matar um pouco da saudade que certamente aquele lugar despertava, mas nem os anorakes encharcados amenizavam nosso desconforto. De comum acordo nos pusemos para correr com o pé d´água nos calcanhares e a trilha virou rio com água acima das canelas.

Pela metade da montanha deixamos a chuva para trás e pouco depois o rio em que se transformou a trilha tomou um atalho a esquerda e pudemos descer calmamente até o Getúlio ainda ensolarado. Mas a tempestade não estava a fim de nos dar muita folga e meia hora depois nos alcançou por ali. Seguimos até a fazenda com a chuva ameaçando a retaguarda para lá aguardar pelo Elcio que ainda achou tempo e pernas para dar uma passadinha no Itapiroca. Veio ele contando que encontrou três "gatinhas" com cinturinha de pilão no A2, a meio caminho do cume. Pode ser efeito do soroche, o ar rarefeito tem este poder.

Para o Pioli pegar uma encrenca destas não era novidade, mas imaginei que o novato ficaria uma semana andando de muletas e nunca mais encararia outra roubada deste tamanho. Estava errado, o caboclo é encardido mesmo!

Depois disso entramos de cabeça no projeto do Prof. Raul Friedmann para atualizar e corrigir as cartas topográficas da Serra do Mar, inserindo as trilhas tradicionais e identificando montanhas, cumes, recantos e cachoeiras com seus nomes oficiais e apelidos locais. O segredo para manter as mentes e os corpos interessados no projeto está na exploração dos pontos de convergência dos interesses e a bola da vez é a Farinha Seca que ficou por muitos anos esquecida. Não é filé como o Ibitiraquire, o Marumbi ou a Prata, mas tem seus atrativos.

No último mês do ano explorei o Pequeno Polegar com o Paulo e o Moisés, depois o Elcio e a Barbara retificaram o fundo de vale e alcançaram o Casfrei. O tempo e a temperatura de janeiro nunca foram de grande valia para atividades na serra e o recurso sempre foi apelar para o ataque. Desta vez o Johny planejava retornar ao Tapapuí, ponto médio da cadeia de montanhas que formam a Farinha Seca, erroneamente chamada de Serra da Graciosa. Mas para não perder o foco andando por terreno previamente mapeado resolvemos alcançá-lo pelo leito do Rio do Meio, apesar dos riscos envolvidos.

Andar pelo rio no auge do verão tem vantagens significativas. É relativamente mais fresco que as trilhas, piscinas e cachoeiras para se refrescar é o que não falta, para beber é só se abaixar e minimiza o uso do facão, mas nem tudo são flores. Nesta época a progressão é prejudicada pelo maior volume de água e para avançar 1000 metros se anda 1500 em zig-zags a procura de pontos de apoio sem falar no empenho de atravessar emaranhados de tranqueira arrastada pelas cabeças d´água. Mas o perigo maior são as tempestades no final de tarde que dentro do rio se tornam mortais.

Um supersticioso diria que a coisa começou pra lá de agourenta. Ainda na noite de sexta o Pick alegou problemas profissionais para sair da reta. Está ficando esperto o rapaz! Mas isto foi só bom senso, o problema real aconteceu com o Felipe que bateu o carro ao se dirigir ao ponto de encontro. Acertou um "infeliz" que furou o sinal na volta da balada e foi capotar 50 metros adiante. O anjo da guarda estava atento e ficou apenas nos danos materiais, mas nos custou outra baixa e uma hora de atraso. Compareceram o Johny, o Paulo Marinho e o Elcio. No trevo de Quatro Barras encontramos o Moises e o Bira que nos seguiram num segundo carro até a Comunidade de Rio do Meio, na velha Graciosa que agora está sendo restaurada.

Abandonamos os automóveis no campo, defronte a única casa sem o aviso de "Proibida a Entrada" e como ninguém apareceu para nos atender, fomos embora. Cem metros em frente pulamos a porteira e penetramos no pasto deserto com as verdes montanhas fechando o horizonte. Uma hora e meia de campo, lama e bosta de vaca com o calor aumentando antes de atingir a mata sombria. Adentramos por uma antiga estrada de serviço tomada pela capoeira que logo desapareceu, cruzamos um riacho de águas límpidas e orientados pelo forte murmúrio das águas encontramos o Rio do Meio deslizando macio por entre pedras cobertas de limo verde, alto como um gramado bem aparado. , O rio é de fácil progressão apesar do grande volume das águas nesta estação, as botas pouco escorregam em função da boa aderência proporcionada pelo tapete de limo e o declive é suave em comparação com tantos outros rios de serra que já caminhamos.

Rapidamente encontramos a primeira cachoeira que contornamos pela lateral, ainda cuidando para não molhar as botas. Doce ilusão para quem de antemão sabia que enfiar o pé na água seria inevitável no decurso da jornada. Muitos afluentes a esquerda e a direita, ilhas pluviais e corredeiras passaram antes de entrarmos numa espécie de cânion parecido com o dique de diabásio do médio Mãe Catira, mas com a particularidade da parede vertical estar visível apenas do lado direito até que se fechou numa belíssima cachoeira em degraus. Muito acima encontramos a nascente brotando fortíssima por debaixo de uma pedra e o leito continuou seco até desaparecer.

O Moises encarou a subida abrindo passagem com o peito e, numa distância segura, o acompanhei arregaçando o entorno. O Moises e o Elcio já haviam rasgado seus calções dentro do rio, pulando pedra, e o último agora vestia apenas uma saia do tecido que restou. Oh visão do inferno! Um escocês no Tapapuí. O calor aumentava dentro da mata abafada e o suor encharcava as faces, com a proximidade do cume se fechava a quiçaça e vencido um último degrau penetramos num capim alto misturado a quiçaça baixa dominada por enxames de butucas ensandecidas. O cume secundário é coberto por macega alta, densa, dura e retorcida que cruzamos descendo o porrete. Batendo na lenha e nas pernas pra matar as butucas. Isto me lembrou do cara que corria até a janela, no décimo andar, cuspia na rua e pulava na cama morrendo de rir dos transeuntes, até que se distraiu.

A coisa estava insuportável, um calor infernal, 20 butucas em cada perna, 10 em cada braço e mais 10 ou 20 distribuídas entre o pescoço e o rosto. Para cada 50 que se matava na bordoada apareciam outras 100 para ocupar o lugar vago. Picavam antes mesmo de aterrissar e não perdoavam nem as partes "protegidas" pelas roupas. Em meia hora estudamos o entorno, discutimos as possíveis rotas desde o Casfrei até o Farinha Seca e por esparsas brechas nas nuvens vislumbramos as magníficas paredes do Morro Sete, as encostas do Pequeno Polegar e do Farinha Seca na vertente oposta. Do cume principal, a menos de meia hora pelo campo, não quisemos nem saber. O Elcio vazou, se estapeando feito louco, e nós o seguimos pouco depois antes que alguém sucumbisse vitimado por um choque anafilático.  ,

Um enxame de butucas enlouquecidas nos seguiu até o rio. A atmosfera estava agora densa e o calor era tanto que nem o frescor do rio nos reconfortava. Na Cascata dos Degraus o recurso foi tomar uma prolongada chuveirada. O corpo liberava nuvens de vapor e após um merecido descanso, depois de farto lanche, reiniciamos a descida.

Descer um rio de serra é sempre uma coisa complicada, exige demais dos joelhos e com freqüência se usa o quinto apoio. A mínima bobeada pode causar uma fratura e a água só aumenta de volume, mas não se tem mais nenhuma preocupação com as botas. As do Elcio tem excelente sistema de escoamento, só comparável a sua capacidade de absorção.

O Moises descia sozinho, entre o primeiro e o último grupo, e tomou o bonde errado. Numa comprida ilha fluvial seguiu pelo braço mais raso e o rio acabou sumindo por entre as pedras. Insistiu mesmo assim e perdeu também as pedras. Numa manobra mais arriscada quase abraçou uma jararaca e por fim decidiu-se a voltar sobre seus próprios passos até nos reencontrar.

O Bira acompanhou o Johny na descida e deu-se mal. A cada vez que sugeria uma parada para descanso ouvia a mesma ladainha, "Agüenta só mais um pouquinho que a frente tem um recanto bacana". E assim foi enrolado até a saída do rio. Ao chegarmos, 15 minutos depois, encontramos o Bira sentado numa pedra, quase transparente, em completo silêncio. Aquele silêncio que diz com todas as letras: "Acabou a brincadeira, não falem mais comigo". Mas a descida forçada não foi nenhuma sacanagem com o amigo, era extremamente necessária naquele momento. Desde as cabeceiras vínhamos ouvindo o rugir dos trovões a nossa volta, sempre mais intensos e mais próximos. A coisa iria engrossar muito em breve e não seria nada saudável estar dentro do rio quando começasse a refrega.

Ao cruzar o pasto vimos as montanhas totalmente encobertas pela tempestade que descia em nosso encalço despejando intermitentes clarões de relâmpagos. Pernas pra que te quero! E no caminho fui coletando grandes penas de carcará, principalmente as do rabo para distribuir aos amigos mais distraídos. Guardar sempre a vista uma pena do rabo de uma ave é uma ótima simpatia. É sabido que quem tem pena do rabo jamais será viado! Desviando dos atoleiros encontramos uma manada de búfalos que ao nos perceber assumiram uma posição defensiva. Fecharam um circulo com os filhotes protegidos no centro e para cada passo que recuavam também avançavam dois. Dois ou três animais estavam bastante nervosos e para passar ilesos também assumimos nossa formação de defesa. Juntamos-nos num grupo compacto para confundir a visão estrábica do búfalo que percebe apenas um só animal grande, desengonçado e desconhecido não se aventurando num ataque.

Ao retornar aos automóveis encontramos o caboclo a nossa espera com uma lorota na ponta da língua. Contou que assustado com a presença dos carros abandonados debaixo de sua janela deixou de trabalhar na pedreira para guardá-los e nos cobrou R$ 20,00 pelo prejuízo. , Como achamos o preço justo e acatamos sem pechinchar, esclareceu no ato do pagamento que era o valor por veículo. Na cara dura fomos extorquidos por um matuto "ignorante" e ainda agradecemos na despedida.

Antes mesmo de entrar na estrada já desabava o mundo e nem a velocidade máxima do limpador de pára-brisas dava conta do aguaceiro. O dia virou noite e a água corria pela pista sinuosa da Estrada da Graciosa. O Bira levou muito azar na escolha da época para se iniciar no montanhismo e até agora só pegou ralação nas suas duas primeiras incursões. Chuva, butucas e esgotamento, nada de visual ou vida boa num cume limpo e ventilado. Mas se conseguir superar estes traumas iniciais e comparecer na próxima caminhada, certamente teremos um novo companheiro de valor. O que ele nem imagina é o quanto ficou sinistro dentro daquele rio que escapamos por um triz. Em Curitiba não choveu metade daquele toró que pegamos na estrada e mesmo assim contabilizou dois mortos arrastados pela enxurrada.

Fotos: Elcio Douglas Ferreira e Paulo Marinho
 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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