Cerro Leonera, lugar de leones

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Embarcamos para Santiago na expectativa de muita diversão na área dos lagos e vulcões do centro-sul do Chile, com previsões de tempo bom ao marcar as passagens dois meses antes, mas completamente adverso ao entrar no avião. A mim pouco importava, estava mais interessado no descanso mental que uma viagem desta sempre proporciona e na compra de um par de botas Atlas da Boreal para substituir as antigas que deram seu último suspiro na Travessia Ciririca-Graciosa no carnaval passado. Claro que a escalada de alguns vulcões de baixa altitude e mínima dificuldade só dariam mais sabor ao passeio, mas alta montanha estava decidido a não enfrentar.

Nada de longas aproximações carregando peso nas costas, respirando com dificuldade e controlando enjôo pela falta de aclimatação. Desta vez seria apenas a parte boa do montanhismo. Partir ao amanhecer com o sol dando sinais de vida, subir de teleférico até o fim da linha e caminhar por 3 ou 4 horas até um cume fumegante e gracioso, sentar e apreciar a paisagem com lagos translúcidos e montanhas verdejantes, descer rapidamente para tomar um banho quente e me entupir de sálmon grelhado com papas fritas crocantes antes de dormir. Tudo regado ao bom vinho chileno e afogado em muito pisco sour.

Santiago, bela e formosa, nos recebeu com festa ou seria mera coincidência haver uma corrida de automóveis de fronte ao Palácio de la Moneda? O busão nos despejou no centro da muvuca e os poucos quarteirões que nos separavam da Plaza Itália virou um contorno imenso para o táxi abarrotado com as mochilas que precisou enfrentar o congestionamento gigante causado pelas barreiras, mas enfim no Hostal Amazonas em plena Vicuña Mackenna pudemos esparramar os trastes e descansar o esqueleto.

Cedo, na manhã seguinte, despertamos com o soar da campainha na portaria do hotel e o Moisés surgiu com o bordão que caracterizou a viagem.
“Trrrrim.”
– Atenda lá, Jurandir!
E haviam campainhas soando o tempo todo, no hotel, no metrô, nos bares, nos celulares e nos pedágios automáticos. Depois de algum tempo até o Jurandir reclamou com ingenuidade infantil.
“Trrrrim.”
– Atenda lá, Jurandir!
– Tem que ser sempre no meu?

Mais engraçado foi ver o Jurandir perdido nos corredores do hotel a procura do caminho para a sala de refeições onde fazíamos o café da manhã, se bem que o nome mais apropriado seria chafé. À tarde seguimos para o Mall Sport com o objetivo único de gastar dinheiro, mas a visão imponente do Cerro El Plomo e da cornija nevada do Las Palomas crescendo a nossa frente, somada a frustração com o planejamento furado pelo clima no sul, começou a implantar idéias insensatas em mentes já pouco acostumadas ao bom senso. O magnetismo daquela paisagem branca, pouco a pouco, corroia nossa determinação (minha e do Hilton) em não enfrentar alta montanha e seus infortúnios.

Shopping para mim sempre significou apenas trabalho, mas no Mall Sport volto à infância e ali consigo entender perfeitamente o fascínio que estes estabelecimentos despertam nas mulheres em geral. O Mall, no final da Av. Las Condes, é um shopping totalmente dedicado aos esportes e concentra algumas das mais prestigiadas marcas ao lado dos mais variados produtos para aventureiros de terra, água e ar. Lojas especializadas em montanhismo como Andesgear, Tatoo, The North Face e Mountain Hard Wear abrem um rombo inevitável nas suas contas bancárias. Já possuindo um excelente saco de dormir para -27ºC com Fill Power 600 não pude evitar de gastar uma fortuna num lançamento da Mountain Hard com Fill Power 850 que reduz o peso e o volume a 1/3 do outro. O Hilton, corroído pela inveja, veio atrás no prejuízo e agora o Johny não vai mais poder contar vantagem neste item em particular. Só é aconselhável entrar ali com bala na agulha e disposição para detonar o cartão.

Na saída do shopping conhecemos o Javier com sua Santa Fé que nos ofereceu transporte para La Parva a U$ 300,00 e a insanidade foi se desenhando com linhas mais fortes. Tanto o Jurandir como o Moisés, ambos neófitos andinos, estavam ansiosos por montanha, por gelo e para carregar peso nas costas. Nesta mesma noite atacaram com ferocidade as prateleiras de um supermercado local e socamos tudo dentro das mochilas cargueiras.

O destino seria o Cerro El Plomo com 5.434 metros que já conhecíamos de outros carnavais e para evitar a repetição da enfadonha rota de aproximação, o Hilton sugeriu seguir pela cumeada do Cerro Pintor até um filo próximo ao Cerro Leonera, onde ele e o Johny estiveram em 2007, e descer as morainas até o refúgio Federacion, 300 metros abaixo. Tudo muito fácil em tese, mas na prática a teoria é outra.
“Trrrrrrrim, trrrrrim.”
– Atenda lá, Jurandir!
– Sempre eu, sempre no meu!

Com as mochilas no bagageiro da Santa Fé fomos namorando os contornos da cordilheira que se desenhavam contra o céu azul daquela manhã quente e ensolarada nos Andes Centrais. Na subida para Farellones, a turistada fazia festa e o português era língua corrente em cada mirante da estrada, consumindo montanhas (…) de empanadas e refrigerantes. Javier nos levou até onde conseguiu avançar sua Santa Fé e nos deixou no início do andarevel (teleférico) do centro de Sky La Parva. Nos últimos minutos de moleza seguimos morro acima pendurados nos cabos de aço, balançando as pernas sobre as morainas até o fim da linha.

Com aclimatação a mil, dos 550 metros da planitude de Santiago subimos motorizados aos 3.000 de La Parva e somamos mais 500 pelo teleférico em menos de 3 horas. Como todos estavam bem e respirando a 3.500 metros acima do nível do mar, no Portezuelo de Piuquenes, concluímos que realmente este negócio de aclimatação é para os fracos. Ainda no ponto final do andarevel, por preguiça de carregar nas costas, mandei para dentro um litro inteiro de Activia e nos colocamos em marcha para o cume do Falsa Parva ainda distante uns bons 300 metros verticais, enfrentando uma rampa de 50º com 20 Kg de carga no lombo. Zig-zags curtos e intermináveis numa encosta instável e recoberta de pedras soltas.

Enquanto lentamente subíamos a pirambeira, uma multidão colorida com seus bastões de trekking descia acelerado para não perder a carona no teleférico. Tudo tranqüilo até os 3.800 metros do cume do Falsa Parva, quando meus intestinos começaram a se revoltar contra o esforço concentrado, a altitude ou pelo litro de Activia insensatamente ingerido. Talvez contra tudo isto junto e a coisa se tornou urgente num lugar sem nenhum esconderijo a vista.


– Mira, mira lá! – gritou um nativo – Um brasileño cagando em la montaña!
– Vai se danar, Mapuche! – pensei – Como sabe que sou brasileiro? É a bunda branca ou o cheiro de feijoada?

Contando apenas com a roupa do corpo para vestir pelos próximos 4 ou 5 dias não podia nem pensar em sujá-la já no primeiro dia, assim não subestimei nenhum sinal da natureza, por menor que fosse, e segui para o verdadeiro Parva lambuzando cada pedra do caminho a intervalos de 100 ou 200 metros. Um trajeto longo demais, imenso para quem está com diarréia desenfreada. Seguimos por uma larga e desértica cumeada limitada em ambos os lados por grotas que despencavam até o fundo das quebradas (vales) abaixo. Contornamos o verdadeiro La Parva por um sendero que passa a menos de 100 metros verticais do cume e descemos pela face oposta até encontrar um refúgio metálico ancorado na cabeceira de um grande ventisqueiro pendurado na íngreme encosta.

O Hilton foi o primeiro a chegar e também a desmoronar por ali, deitado atrás das pedras de uma pirca, esperando mocado do vento que já assobiava nas orelhas. O abrigo estava ocupado por duas ‘chicas’, protegidas do vento frio, que esperavam os namorados retornar de um ataque ao Leonera. Eis toda a diferença na falta de aclimatação, enquanto eles andavam bem aclimatados, leves e soltos, num passeio de fim de semana, nós chegávamos nos arrastando com uma banda de tambores e tubas martelando dentro da cabeça.

A 4.000 metros, de frente para o Cerro Pintor com suas paredes formadas por extratos nítidos e coloridas, de uma verticalidade magnífica, o pôr do sol parecia tingir a desolada paisagem com novas cores a cada vez que se levantava os olhos. Cheguei bastante enfraquecido pela diarréia e desgastado pelo esforço, tanto que me apossei do abrigo assim que as meninas o desocuparam e sobrou para o Hilton com o Jurandir montarem a barraca do lado de fora. E também a cozinha de onde saiu uma parca refeição engolida com sofrimento juntamente com um comprimido de Diamox para aliviar a pressão.

O abrigo de lata, conforme placa informativa, foi projetado e construído pelos alunos de arquitetura da Universidade do Chile. A noite fria foi excepcionalmente longa devida principalmente aos efeitos diuréticos do medicamento e da diarréia incessante que me obrigava a constantes incursões externas. Sair apressado pela pequena portinhola de entrada se provou uma manobra arriscada e extremamente complexa na urgência do momento. Só desejo que o professor da matéria tenha passado pelo mesmo problema durante a inauguração e reprovado toda a turma em planejamento. Na barraca ao lado, as coisas não ficaram muito melhores e a certa altura, enquanto o Hilton fotografava o céu noturno, foi atropelado por um trem desgovernado:


– VoouuVomitaaaaarrrrrrrrrr – grunhiu o Jurandir atirando-se meio corpo para fora da barraca enquanto despejava o jantar,o almoço e o café da manhã.

O vento seco do norte transformou-se em furacão durante a madrugada e não parou mais de soprar com violência incontida. Parecia não tolerar aquela estrutura metálica que metralhou a noite inteira a pedradas. Ficar em pé exigia esforço concentrado na direção contrária ao vento, mas o problema maior estava em administrar as lufadas alternadas que de 50 km/h em breves instantes se reduziam a metade para imediatamente retornar a fúria anterior. Só nos forneceu uma trégua ao amanhecer que bem aproveitamos para engolir um rápido desjejum enquanto desmontávamos o acampamento e socávamos as tralhas de volta nas mochilas cargueiras.

Seguimos para o norte em direção ao Cerro Pintor, tomando um desvio a esquerda que o contorna a poucos metros do cume e entra em Cancha de Carreras, mas a única coisa que corria nesta pista era o vento que dobrou sua velocidade. A paisagem desértica e estática contrasta com a força do vento. Nada se mexe apesar da ventania furiosa.

Na metade da tarde atingimos uma zona de acampamentos caracterizada por uma série de pircas nas proximidades de um ventisqueiro parcialmente protegido pela proximidade de uma colina marciana cujos tons de ferrugem coloriam o ambiente. Dali tínhamos uma vista privilegiada para os glaciares Iver e Colgante no Cerro El Plomo bem a nossa frente de onde facilmente se distinguia o Refúgio Agostini na mesma cota em que nos encontrávamos. Um precipício de 300 metros verticais nos separava do Refúgio Federacion, no fundo da quebrada, e ficou claro que descer aquela grota com as cargueiras definitivamente não era para nosso bico apesar do Hilton insistir que havia uma passagem por morainas depois de um afiado filo que víamos a pouca distância.

A noite não foi nem um pouco agradável naquele acampamento exposto. O vento uivava pelas encostas e estremecia as barracas com suas lufadas intermitentes, levantando uma invisível, mas sempre presente nuvem de poeira. A poeira fina como talco tinha cor, cheiro, gosto e textura de cimento seco, formava redemoinhos atrás da pirca e entrava barraca adentro. Em pouco tempo tudo estava coberto por grossa camada de pó. Roupas, saco de dormir, botas, panelas e talheres revestidos de cimento verde acinzentado. Não tenho dúvidas que no contato com a umidade dos pulmões estava se transformando em concreto maciço e sentia seus efeitos na garganta. Uma pedra se formava ali.

Durante a madrugada a água nas garrafas pet congelou dentro das barracas e ao contrário do dia anterior, o vento não diminuiu de intensidade ao amanhecer. As dores de cabeça do Hilton pioraram bastante durante a noite e decidiu ficar na barraca. Eu, mesmo com a garganta empedrada e dificuldade para engolir, decidi acompanhar o Moisés e o Jurandir no ataque ao Cerro Leonera distante umas 3 ou 4 horas pelo que pude avaliar. Partimos sem carga, debaixo de um frio atroz em meio a ventania. Ao chegar ao filo exposto já tinha princípio de congelamento nas mãos e precisei vestir outro par de luvas.

O terreno mudara radicalmente e agora cruzávamos uma afiada aresta com precipícios em ambos os lados. Buracos na rocha que despencavam 300 metros até o fundo do Estero de Molina onde, presumivelmente, se encontrava La Hoya e íngremes encostas que do outro lado caem sobre o Estero La Leonera. A passagem é estreita e escorregadia sobre uma pilha imensa de lajotas instáveis entrecortadas de ventisqueiros e pequenos penitentes. O sendero passa por uma pequena área de acampamento por detrás de um contraforte e sobe decidido pelas imensas morainas numa diagonal de leste para oeste onde o vento não encontra obstáculo. O trajeto é longo e desgastante, atravessado por grandes ventisqueiros açoitados pelos ventos e o piso torna-se cada vez mais instável. Uma montanha de caliça.

Segui pacientemente pela trilha até a direção mudar para o norte e se tornar visível outro filo totalmente exposto aos ventos. As linhas desenhadas nos ventisqueiros não deixavam dúvidas quanto a ferocidade dos ventos que os atacavam e finalmente cheguei a conclusão que já havia sofrido demais para quem partira decidido a não fazer alta montanha. Desejei boa sorte aos camaradas e comecei a descer. O Moisés e o Jurandir, bastante adrenados diante da perspectiva do primeiro cume nos Andes, seguiram por mais uma hora tenebrosa até não ter mais o que subir. Estava conquistado o Cerro Leonera de 5.050 metros e poucos minutos tiveram para comemorar sua vitória escondidos do vento por detrás de dois pedregulhos. O furacão gelado tornou-se infernal nos últimos 100 metros e ameaçava varrê-los dali junto dos seus pensamentos. Não existe prazer, contentamento ou conforto em nenhum cume andino com mais de 3.000 metros. Os deuses incas que por aí moravam só podem ter parte é com o capeta cujo “casillero” iríamos apreciar em Pucon.

No acampamento mais uma noite terrível respirando poeira e com temperatura em elevação para piorar o que já estava ruim, o calor me forçou a dormir com a porta da barraca aberta. O amanhecer trouxe temperatura amena e atmosfera estranhamente silenciosa, o vento norte havia cessado totalmente durante as últimas horas da madrugada e o horizonte se apresentava totalmente limpo. Víamos uma delgada fumaça branca se elevando de uma cratera vulcânica a nossa frente e os cumes mais altos começavam a cobrir-se com espessas camadas de nuvens reticulares. Visão esplendida e ameaçadora nos avisando que era hora de cair fora bem rapidinho dali, antes da virada no tempo. Não se desprezam os avisos da natureza.

Continua em…
Sálmon com Papas e Casillero del Diablo

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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