Cerro Mercedário

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Há algum tempo, por algum motivo que ainda desconheço, sentia uma forte ligação com essa montanha: o Cerro Mercedário.Talvez seu isolamento, sua magnitude. Durante varias vezes me fizeram a pergunta: Mas porque o Mercedário? E eu simplesmente não sabia o que responder. E ainda não sei.

Final de dezembro, parti para a Argentina. Durante 2 dias fiquei em Mendoza, cidade base para a maioria das expedições nos Andes Argentinos. Não querendo gastar muito tempo por ali, fiz o que devia que fazer, comprei o necessário e ouvi algumas recomendações de montanhistas por lá a respeito dessa montanha. Acho que a dica em comum foi: Tome muito cuidado. Seu isolamento neste caso, representa um imenso perigo. Era ano de La Niña e para ajudar, muita umidade vinha do pacífico nesta ocasião.

Parti para Barreal, 200km ao norte de Mendoza, pequena cidade que era a base para expedições ao Mercedário. Lá conheci Ramón Ossa, dono de uma pousada na cidade e quem melhor conhece a montanha. Já havia participado de varias expedições por ali, já que na região, além do Mercedário haviam vários outros “ Cordóns “, cadeias de montanhas altas, como o Ansilta e o Ramada. Durante esta visita ao Mercedário me deparei sempre com a pergunta: Mais está indo sozinho? Está levando GPS, radio, né?

Creio que por vergonha, eu dizia que estava. Que levava tudo, mas na verdade, não tinha nada. Advertido por Ramón sobre o perigo daquela montanha, seu isolamento fazia com que qualquer resgate fosse complicadíssimo, e também me contara sobre casos de edema severos na temporada passada, além de fatalidades que ocorreram recentemente. Tudo isso me fez repensar na coisa toda.

No dia seguinte, Ramón me disse que havia um casal de ingleses querendo subir e que poderíamos rachar o custo do transporte. Excelente, era a grande oportunidade. Os conheci e combinamos tudo para sairmos na manhã seguinte. Nesta noite dormimos no camping da cidade. Durante um breve descuido, fui tomar banho e nesse momento alguém entrou na minha barraca e levou todo meu dinheiro. Na hora, isso foi um tanto desanimador. Já não sabia o que fazer, porém, foi quando Derek, um dos ingleses, veio até mim e disse que estavam subindo de qualquer maneira, e eu poderia vir junto. Algo para me animar naquele momento, uma grande ajuda. Nesta hora, tudo que tinha na cabeça era aquele verso de uma música dos Novos Baianos que diz: “ e pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto “. Era uma maneira de me confortar.

Partimos rumo a Laguna Blanca, ponto de partida da rota. Chegamos a um abrigo um tanto destruído, com uma placa do Clube Andino Mercedário. O mais engraçado era que alguém havia escrito embaixo da placa do clube: “Las barbies de La montaña“… Achei aquilo uma comédia. Bons motivos pra levantar meu humor que por causa do roubo, ali estava um pouco abalado.

Derek e Ellie eram mais velhos, tinham entre 50 e 55 anos. Mesmo assim tivemos uma empatia legal e subimos até o campo base conversando. Da Laguna Blanca até o Guanaquitos, campo base do Mercedário, eram umas 3 horas. Porém, eu não estava nada aclimatado. Quando cheguei ao campo base, sentia os efeitos da altitude, embora nem estivesse tão alto, sai de 600m para 3600m e senti isso. Procuramos um lugar legal para acampar e assim o fizemos. Até então ainda estávamos caminhando juntos, o que iria mudar um pouco dali pra frente. Naquele acampamento, os Guanacos, primos das Lhamas, vinham até perto da porta da barraca. Além deles, o resto da vida selvagem era rica: Condores, lebres, raposas. Todos juntos, num mesmo quadro, com a linda vista para o Mercedário.

Neste momento creio que começava minha verdadeira conexão com aquela montanha. Todo motivo de eu estar ali começava a fazer sentido. Éramos como pessoas com coisas em comum, e queríamos nos conhecer.  Não sou religioso. Embora eu tenha minhas próprias concepções sobre espiritualidade. As religiões antigas, as crenças indígenas, a espiritualidade dos povos meso-americanos, todos nos dizem sobre os grandes espíritos da Natureza. Algumas os chamam de Devas. Eu prefiro somente os sentir.

Acho que isso parte um pouco de minha descendência indígena. E também por aquela rota ter sido feita pelos Incas há 500 anos, senti aquilo tudo muito forte, e tudo fez completo sentido.

Embora, em livros, a primeira chegada ao cume tenha sido atribuída a europeus. Mais ou menos o que ocorreu com o continente americano. Eu, prefiro buscar entender outros lados da história. Conquistar uma montanha é muito mais que chegar em seu cume. É se tornar um amigo, é ser bem vindo, criar uma relação de amizade onde se deixa um pouco de si e leva um pouco da montanha consigo. É criar um laço. Ser um filho daquele ser imponente e poderoso, e saber respeitá-lo. O custo é muito alto para aqueles que não conseguem entender essa ligação, que vêem a montanha como um oponente. A aclimatação é uma conexão com aquele ser. Deve saber respeitá-la, entendê-la, e entender seu próprio corpo. O período de aclimatação é uma ligação, uma entrega à montanha.

No dia seguinte partimos para o segundo acampamento, o Cuesta Blanca. Este acampamento é numa base de uma encosta rochosa bem íngreme, e bastante protegido do tempo. Já chegamos embaixo de neve. Dali pra frente, seria assim por todos os outros dias: Manhãs lindas, e a partir do meio dia, tudo mudava.

Na manhã seguinte, Derek e Ellie, como bons ingleses que são, já haviam traçado todo planejamento e já estavam dispostos a subir um pouco mais. Já tinham boa experiência e acabavam de voltar de outra montanha, por isso já estavam um pouco mais adaptados. Quiseram subir um pouco mais, e eu, que já não havia dormido bem, quis os acompanhar mais descendo depois de volta ao Cuesta Blanca. Assim fizemos.

Subir a encosta de gelo foi um tanto árduo. Pior que saber que era árduo, era saber que eu ia ter que subir aquilo duas vezes. Mas tranqüilo. Subimos juntos, andamos ate perto do próximo acampamento, eles acamparam ali mesmo e eu desci. Foi uma decisão boa, já que consegui me aclimatar bem melhor dessa maneira, e no outro dia estava inteiro para subir para a Pirca Del Indio, acampamento avançado, no ombro da montanha e o ultimo protegido das condições climáticas.

No quarto dia na montanha, eu já me sentia melhor. Fazia exercícios de respiração, para ajudar na aclimatação e bebi MUITA água. Até mijar de 15 em 15 minutos. Isso foi essencial. Acordei e fui para a Pirca Del Índio. Esse lugar recebia este nome devido a presença de formações de rocha em formato de templos, feitos pelos Incas, para rituais. Todo o tempo isso foi uma coisa que me provocou uma grande admiração por aquele povo, terem traçado aquela linda rota.

Durante a minha ida para a Pirca, vi no mapa que havia um rio de gelo que descia desde um glaciar, até Cuesta Blanca. Fui até o rio e reparei que estava muito mais fácil de se locomover sobre ele do que sob as pedras. Assim, fui pelo rio, e acabei passando a barraca dos ingleses sem nem ver. Foi muito difícil chegar em Pirca. Debaixo de neve e pedras de gelo o tempo todo, sem visibilidade, meu humor se deteriorou pouco a pouco. Caí num lugar meio plano e armei a barraca ali mesmo. Estava com falta de ar e um pouco de náusea. No que entrei na barraca, já preparei pizza e comi umas 3. As vezes nem tinha fome, mais sabia que naquela altitude, o corpo se deteriora muito rápido e me forçava a comer. Precisava de alimento, e a gordura daquele queijo caiu que nem uma luva. Já me senti muito melhor depois dela.

Ali estava sozinho. Iria ficar esperando uma janela de tempo bom. O próximo acampamento, Caballitos, era a 6000m e tinha fama de ser turbulento, as barracas se quebravam quando o tempo era feio. Me prometi que só partiria para lá sob uma janela muito boa de 2 dias. Estava preparado pra ficar em Pirca por 5 dias. Não tinha pressa. Ali era lindo, e as ruínas Incas me fascinavam. Durante os dias que fiquei em Pirca, sonhos muito lúcidos me atingiram: Sonhava com índios, com festas e rituais, e sentia toda aquela presença ancestral muito fortemente. É uma questão de sensibilidade, creio.

Depois de uma noite em Pirca, acordei melhor. Estava muito forte e disposto, decidi dar uma subida até a crista que levava ao próximo acampamento. O que parecia perto, na verdade, foi um martírio. Tudo ali é muito difícil, e foi muito duro chegar até um pouco mais adiante, beirando os 5800m ( segundo meus cálculos, já que eu não tinha GPS nem altímetro, me baseava em mapas ). Fiquei lá por uma ou duas horas, esperando meu corpo entender que iríamos subir ainda mais. Depois voltei para a barraca, já que uma tempestade chegava. Aquela noite foi intensa, ventos muito fortes e neve o tempo todo.

Manhã do terceiro dia em Pirca, depois de uma noite muito fria, acordo por volta das 9h da manhã e minha barraca estava escura. Por um breve momento achei que o sol não havia nascido aquele dia. Brincadeiras à parte, abri a barraca e percebi que estava embaixo de 30 cm de neve. Tudo em minha barraca havia congelado, minhas roupas, comida… Algo em torno de -30C foi o que rolou naquela noite.

Nesse momento olhei para a rota e percebi que estava completamente soterrada. E muita coisa rolou na minha cabeça. Estava forte, mas estava sozinho. Me lembrei de um texto de um amigo sobre a “ febre de cume “ e naquele momento pude entender tudo que levava a este estado. Havia gastado 7 dias até ali, depois de todo empenho, é simplesmente difícil aceitar. Mas devemos ser humildes. Estar ali, sozinho no ombro do Mercedário já era um privilégio imensurável. Eu devia aceitar aquilo e que não fosse uma derrota, mas uma experiência riquíssima.

Desarmei acampamento e neste dia, na parte da manhã o tempo já fechava e uma nuvem negra se aproximava. Senti que devia descer. E fui. Praticamente corri descendo a montanha. Quando cheguei a Cuesta Blanca, onde havia deixado um pouco de coisas, havia um bilhete dos ingleses, que haviam descido 3 dias antes porque Ellie estava vomitando muito. Fui ate o campo base, o Guanaquitos. Acampei por lá naquela noite, e a pior tempestade de todas chegou naquele fim de tarde. Muito vento e muita neve. Acordei na manhã seguinte, oitavo dia, com um “slush” ( mistura de neve com chuva ) no campo base. Ou seja, estava nevando a 3600m.

Nem quero imaginar o que aconteceria se ainda estivesse em Pirca Del Indio. Provavelmente seria soterrado. Acordei e fui ate a estrada, na laguna blanca, esperar carona. Nenhum carro passou por umas 3 horas. Comecei a descer caminhando, e quando já tinha andado mais umas 2h, passa uma caminhonete da empresa mineradora que existe ali na região e me dá carona de volta para Barreal.

Bem, depois desta intensa experiência, era hora de arrumar meus equipos de rocha pra ir escalar em los Arenales. Mais isso fica pra outra história! Abraços a todos."

Por Felipe Dias de Itanhandú

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