Como os britânicos criaram o montanhismo moderno – Parte 2

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Na primeira parte, o historiador e montanhista belga Koen Van Locke, trabalhou em seu texto (tese de mestrado) o pioneirismo inglês no montanhismo, motivos pelos quais eles foram para os alpes mesmo vivendo em um país basicamente plano, o surgimento de uma nova classe social, a classe média alta, a composição desta classe. O perfil do Clube Alpino logo após sua criação, as primeiras aventuras de ingleses desbravando algumas montanhas que eram consideradas impossíveis de serem conquistadas, a hostilidade que encararam no início de todo este processo e até mesmo os primeiros relatos de montanhismo que surgiram. Na segunda parte a objetiva do texto modifica um pouco, abordam-se outros aspectos ainda mais importantes e interessantes sobre a supremacia inglesa no montanhismo/ alpinismo nos primeiros anos de existência.


:: Leia a primeira parte do texto

Texto: Parte de trabalho científico para mestrado desenvolvido por Koen Van Loocke (Bélgica), membro do summitpost.org.

Trabalho completo original com devidas citações e referências bibliográficas.

Tradução – Paulo Roberto Parofes

John Tyndall.

É nesta situação que a real importância da ciência está, e não como um motivo real para começar a escalar (vale reforçar que apesar disto, este foi o caso de alguns escaladores como por exemplo John Tyndall). Por outro lado, havia também alguns montanhistas que repudiaram esta abordagem científica, como Leslie Stephen quando disse: “E que observação filosófica você fez? Será o questionamento de um desses fanáticos que, por um processo de raciocínio para mim absolutamente impenetrável, de alguma forma irrevogável associaram viagem alpina com ciência?

Levaria ainda muito tempo para a opinião pública mudar sobre a questão do montanhismo. Embora o elemento científico de fato diminuísse rapidamente do final de 1860 em diante, a opinião pública manteve-se bastante hostil e ainda levaria muito tempo para isso mudar. Vários acidentes graves, sendo o mais conhecido, é claro, o acidente fatal após a primeira escalada do Matterhorn em 1865 por Edward Whymper, durante a segunda metade do século XIX, só veio a fortalecer essa atitude hostil, muito bem representada por relatos de montanhismo em diversos periódicos:

Gravura de Whymper sobre o Matterhorn.

Entre aqueles que recentemente têm escalado nos Alpes estão, sem dúvida, alguns homens da ciência, que têm um propósito na sua empreitada, habilidade e inteligência para fazê-lo. Estes podem honrar e aplaudir pelos riscos que correm na causa a que se dedicam. Mas o propósito científico inspira três quartos dos jovens que têm realizado a escalada alpina,(…), pela pura excitação do ato de escalar? Quantos por aí que escalam sem nem mesmo ter empolgação, mas simplesmente porque está na moda? (…) Não podemos assumir que a ciência ou as montanhas tenham necessidade de expedições fatais e perigosas dos londrinos inexperientes… “Alerta de perigo”, as pessoas dizem, é um conceito incompreendido pelos Ingleses. Mas não podemos pensar que a voz da opinião pública iria se provar totalmente ineficaz se, reforçando-se com a moral desta última chocante tragédia, protestaria contra um risco inútil e sem sentido de vida por parte de quem não tem objeto científico para buscar e, mesmo que tivesse, não têm inteligência apropriada para segui-lo.

No final desta breve análise histórica só há uma última razão (justificativa) para citar. É a última, embora possa ser a mais importante de todas. Essa é sobre as razões mais pessoais para as pessoas irem escalar montanhas, ou simplesmente estar nas montanhas. Estas razões são provavelmente as mesmas para os montanhistas na época, como são para os escaladores da atualidade.

Motivações pessoais são provavelmente o mais importante, porque sem esses motivos pessoais, apesar da importância da identidade de classe média com base em imperialismo e masculinidade, apesar da importância do esporte e lazer e outras razões sociais relacionadas, e apesar do crescente poder financeiro desses homens, homens (e mulheres) não iriam aos Alpes, e certamente não iriam escalar montanhas. Em suma, poderíamos dizer que: ´Para entender o montanhismo, precisamos compreender o montanhista.”

Pauline Ranken e Lucy Smith eram membros originais do Ladies ‘Scottish Climbing Club, fundado em 1908, cujo mandato era “reunir senhoras amantes da escalada de montanhas e incentivar o alpinismo na Escócia, tanto no inverno quanto no verão.  ” Nesta foto, eles demonstram escalar em pares, onde o único método de impedir uma queda era agarrar a corda.

Ao pensar em razões pessoais, motivações como a religião, a aventura, sublime, a ciência (para alguns homens), a simplicidade, tranqüilidade, esporte, camaradagem, vêm à mente, mas esta lista é realmente interminável, já que todo montanhista de vez em quando tem suas próprias razões pessoais para a escalada.

Razões como essas são muito pessoais, mas, como dito, não menos importantes. Sem razões como estas nenhum britânico ou qualquer outro homem ou mulher de qualquer nação teria ido para os Alpes escalar tantas montanhas, vencer tantos passos de altitude ou cruzar tantas geleiras ou vales. Nas frases abaixo alguns montanhistas da “Idade de Ouro do montanhismo” tiveram a palavra para justificar o porquê eles foram para os Alpes escalar tantas montanhas:

Para ver de relance, a todo redor das mais estupendas barreiras da natureza, e estar presente, por assim dizer, no mesmo momento em dois diferentes vales, separados, que pertencem a diferentes reinos, onde diferentes línguas são faladas, e cujo fluxo de águas segue para mares diferentes, esta novidade da combinação entre elementos similares excita a imaginação, e dá origem a esse sentimento de admiração surpresa que as pessoas que possuam a mínima parte de temperamento poético geralmente sentiram em situações como esta”. (Forbes, J.)

“…Talvez ainda possa ser o meio de induzir um ou outro leitor a visitar os lugares, a memória da qual pode um dia ajudá-lo a suportar serenamente e gentilmente as provações da vida”. (Wills A.)

“O fato é que dá o encanto inexplicável ao montanhismo é a série incessante de cenários naturais únicos, que são na sua maior parte apreciados somente pelo alpinista”. (Stephen L.)

Minha alegria estava na natureza, para respirar o difícil ar do cume da montanha glaciada. Onde as aves não ousam construir, nem insetos batem asas Sobre o granito sem vida” (parte de poema de Alfred Wills)

Deixamos a Inglaterra no início de maio de 1866, com a esperança de escapar do vento frio que ainda permanecia em nossa primavera Inglesa, e para encontrar os Alpes inferiores em toda a sua beleza fresca, para nunca mais ser tão intensamente apreciado como no momento em que a última neve derrete sob uma hora de luz do sol, e muda, como em um passe de mágica, em flores e gramados.” (Tuckett E.)

Ao tentar a escalada, estávamos apenas motivados pelo amor à aventura, com a esperança de quebrar o sistema exclusivo de Chamonix, e pelo desejo de tornar-nos familiarizados com a beleza e a topografia das regiões alpinas. Fomos ao exterior por lazer: foi o prazer que buscamos, e pensamos pouco sobre descobertas úteis. Verdade é, que o prazer era nobre e de caráter superior (…) relativos a, então, estas excursões de montanha como um alívio temporário de árduas tarefas ou confinamento entre quatro paredes”. (Hudson C. e Kennedy E. S.)

E tantos outros.

Como tiveram sucesso dominando os Alpes?

Depois de tentar entender algumas das razões para os britânicos terem conquistado tantas montanhas alpinas, outra questão vem à mente: Como os britânicos conseguiram se tornar a força dominante nos Alpes durante a “Idade de Ouro de Montanhismo”, e por que não algum país alpino como a Suíça ou a Áustria? Isto é ainda mais notável porque a Inglaterra é mais ou menos um país plano. A primeira visão é notável que alguns ingleses foram para os Alpes para escalar, mas é ainda mais surpreendente que conseguissem se tornar a força dominante nos Alpes, muito à frente dos países de fato alpinos.

Uma das razões mais importantes que facilitou para que conseguissem tornar tão dominantes foram as deficiências estruturais dos países alpinos durante a década de 1840 até a década de 1860. Mesmo que as pessoas desses países  quisessem escalar, a maioria deles não tinha possibilidade para tanto.

Quase todas as nações europeias estavam conturbadas pelas Revoluções de 1848 e suas conseqüências. Por causa dessas revoluções a maioria das pessoas  estavam mais ocupadas com a sobrevivência ou com a tentativa de tirar o melhor proveito desta situação, enquanto essas revoluções foram seguidas por uma série de mudanças impactantes na sociedade. Portanto, não era muita gente que poderia “desperdiçar” dinheiro e tempo nas viagens, sem falar nas escaladas. Isso era algo com que a maioria das nações alpinas tinha que lidar. Além das revoluções de 1848, houve a “Sonderbundkrieg” na Suíça em 1848, a unificação e todos os outros problemas da Alemanha em 1871 e na Itália, o “Resorgimento” em 1861. Na França, houve a criação, declínio e queda do Terceiro Império, seguido pela guerra franco-prussiana de 1870-1871, enquanto a Áustria-Hungria foi abalada com inúmeros problemas com os movimentos nacionalistas de todos os cantos do império.

Esta lista pode ir assim por diante. Fica assim bem claro que outras nações muito conheceram um desenvolvimento tranqüilo e pacífico como a Grã-Bretanha e, portanto, eles não foram capazes de desenvolver atividades sérias sobre o domínio britânico nos Alpes durante os anos 1850 e 1860. Só mais tarde o domínio britânico iria começar a declinar em favor dos países alpinos (na maioria França, Alemanha e Áustria).

Esta pode ter sido uma das mais, senão a mais importante razão pela qual os britânicos puderam dominar os Alpes por aproximadamente 20 anos em meados do século XIX. Outras razões, além dessas de âmbito mais político, são perceptíveis a nível mais social e econômico.

A Revolução Industrial, que começou no final do século XVIII, na Inglaterra, foi responsável pelo desenvolvimento e crescimento de uma classe social relativamente nova, a classe média. Esta classe média na Grã-Bretanha, como visto anteriormente,   foi sem dúvida muito importante para a “invenção” do montanhismo. Entretanto no continente a Revolução Industrial aconteceu efetivamente apenas algumas décadas mais tarde, e por isso esta nova classe média sobressaiu igualmente mais tarde.

Assim, em meados do século XIX não havia uma forte (financeiramente) e influente classe média no continente como havia na Inglaterra, e isto gerou consequências sobre o montanhismo nessas nações continentais. Eles só começam a escalar de 1860 – 1870 em diante, quando seu poder (principalmente financeiro/ aquisitivo) começou a crescer na sociedade. Este foi o mesmo momento em que a hegemonia britânica começou a enfraquecer.

Uma pequena observação importante tem que ser registrada. As duas razões que foram dadas aqui a respeito de porque os ingleses conseguiram se tornar tão dominantes durante a sua idade de ouro do montanhismo é claro, não são todas as razões. Estas são apenas duas de muitas outras existentes, e a imagem construída neste texto, portanto, pode ser uma versão simplificada de um assunto muito mais complexo. Mas seria fantasiar demais ir muito mais a fundo para construir conhecimento sobre o assunto. Seria necessário analisar o desenvolvimento social e econômico das diferentes nações alpinas, e mais especificamente o papel das respectivas classes nessas sociedades. E isso significaria ir longe demais, entrar demais no mundo da subjetividade. Assim acabei dando duas razões, que parecem ser de grande importância no que diz respeito à questão proposta.

Conclusão

Gravura de Whymper mostra o momento em que 4 dos seus companheiros morrem após uma queda no Matterhorn.

Depois da tragédia no Matterhorn em 1865 quase todos os altos picos alpinos foram escalados, na maioria por montanhistas britânicos e seus guias de montanha locais. A primeira escalada do Matterhorn marca o fim de uma era do alpinismo. Gradualmente, a influência e a dominação dos britânicos nos Alpes começa a diminuir a posição esta que foi tomada por alpinistas alemães, austríacos, italianos, suíços e franceses.

Não só os alpinistas mudaram, a aparência do montanhismo também mudou. Considerando que a maioria dos montanhistas britânicos tentou explorar e conquistar de certa forma todas as altas montanhas, isto já não era possível depois que quase todos os picos foram escalados e explorados. Em vez de simplesmente escalar montanhas, os montanhistas mais e mais (especialmente os alpinistas de elite) começaram a procurar outras rotas mais difíceis, mais longas ou mais diretas sobre as montanhas. Um processo que ainda hoje acontece.

De 1870 em diante o alpinismo se tornaria mais e mais popular, especialmente nos países alpinos. Uma simples olhada em alguns dados estatísticos relativos a números de  associação de membros em clubes prova isto. O DÖAV (Deutscher und Österreichischer Alpenverein), por exemplo, tinha cerca de 100.000 membros em torno de 1900. As outras associações alpinas não eram tão grandes, mas em comparação com o número de alpinistas durante a década de 1850 e 1860, quando os ingleses dominaram os Alpes, os números ainda assim eram enormes.

E assim alpinismo transformou-se de um movimento pequeno e elitizado a um movimento relativamente de massa. A distinção que montanhistas britânicos queriam fazer com outras classes sociais perdeu sua força e significância durante esta mudança, a medida que alpinistas começaram a chegar de todas as classes sociais.

Sabemos que somos uma pequena fatia da sociedade, e ser constantemente motivo de risos; respondemos assumindo que somos o sal da terra, e que nossa diversão é a primeira e mais nobre de todas as diversões”. (Stephen L.)

Durante o último quarto do século XIX outra mudança ocorreu. Lentamente alpinistas ingleses começaram a trocar sua área de ação dos Alpes para outras cadeias montanhosas de todo o mundo, como os Andes, Cáucaso ou  Himalaia, onde ocorreu o mesmo processo. Explorando e conquistando, masculinidade e imperialismo mais uma vez foram alicerces do montanhismo britânico, fato que o Clube Alpino ainda hoje exalta:

La raison d´être de l´Alpine Club a toujours été de conquérir des voies dures et nouvelles. … Si l´exploration des Alpes est terminée depuis longtemps, les members de l”Alpine Club continuent de réaliser plus de “premières” que n´importe quel pays”

Traduzindo: “O objetivo do Clube Alpino tem sido sempre conquistar novas rotas.(…) Se a exploração dos Alpes é longa, os membros do Clube Alpino continuarão a fazer mais inovações do que qualquer outro país.” (Bonhème P.)

Neste artigo, tentei dar algumas das razões para os membros britânicos da classe média alta começassem a escalar montanhas. Foram dadas razões sociais bem como políticas e econômicas. O Alpinismo foi “inventado” por estes homens de classe média alta a fim de fortalecer sua identidade de classe média, e por fim sua posição social, com a importante conseqüência de distinguir-se dos menos favorecidos, bem como as classes mais altas da sociedade britânica. Assim conceitos como masculinidade e imperialismo foram de grande importância. Embora, no fim, as razões pessoais individuais prevaleceram como motivos mais fortes.

Dentro deste breve artigo histórico nem todas as razões para o surgimento do montanhismo foram enumeradas e tratadas. Isso é simplesmente impossível dado o fato de que a lista é interminável e muito subjetiva. Não obstante, tentei escrever um panorama histórico razoável sobre o motivo pelo qual montanhistas britânicos começaram a escalar, e, por conseguinte porque “criaram” o montanhismo como conhecemos hoje.

Sem dúvida pode ser dito que o montanhismo já existia antes de os britânicos chegarem, e, portanto, os britânicos não criaram montanhismo como tal, e é difícil discordar disso. Ainda assim, é, sobretudo graças a esses pioneiros britânicos que o montanhismo se tornou da maneira que o conhecemos nos dias de hoje.

Pela primeira vez na história o alpinismo se tornou de alguma forma organizado. Foi somente graças à fundação do Clube Alpino em 1857 que outra associação alpina seria fundada, e assim organizar o montanhismo, ajudando-o a se desenvolver e crescer rápido. O mesmo pode ser dito sobre as razões não-científicas que montanhistas britânicos deram ao alpinismo. Foi graças a eles que uma forma não-científica do alpinismo tornou-se socialmente aceita.

Finalmente montanhistas britânicos foram capazes de difundir o montanhismo em todo o mundo, principalmente graças à quantidade incalculável de livros e guias sobre façanhas do montanhismo (incrivelmente bem escritos) publicados. Graças a eles os Alpes e os mais especificamente o alpinismo tornou-se conhecido por muitos. E assim sendo, creio que é correto dizer que em meados do século XIX, “britânicos de classe média alta recém formada criaram o montanhismo moderno.”

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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