Conflito de Gerações

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Montanhismo é um termo genérico usado para definir muitas das atividades possíveis em meio à natureza, do simples excursionismo a escalada mais radical. É uma invenção relativamente moderna que acompanhou a urbanização das sociedades, surgido talvez da necessidade que algumas pessoas sentem de se manter conectados ao ambiente natural em contraposição ao artificialismo das cidades em que vivem o cotidiano.

Até 1940, ao ser anunciado por Reinhald Maack, o Pico Paraná permaneceu incógnito e intocado, mas sua natureza selvagem não foi o suficiente para impedir a conquista pelos indomáveis Mysing e Stamm que abriram o caminho para a primeira geração de exploradores que desfrutaram de um ambiente limpo e preservado por longos cinqüenta anos. Em função da dificuldade de transporte e acesso se tornou comum partir a pé das imediações do posto de gasolina Tio Doca, no final da tarde de sexta feira, e estabelecer um primeiro pouso no gramado da Lagoa Seca para na manhã seguinte cruzar pelo cume do Caratuva e montar acampamento base no Pouso da Sorte (A1) e dali partir para o ataque final.

No início da década de 90 já existia uma trilha bem demarcada eliminando a necessidade de escalar antes o Caratuva e os obstáculos mais técnicos eram equipados com correntes que descaracterizavam a escalada, mas que de certa forma ainda preservam um pouco da aventura primitiva. Com as sucessivas mudanças de titularidade no antigo sítio dos Armstrong  onde mediante pagamento passou a permitir o estacionamento de veículos somado às facilidades oferecidas pelas correntes, rapidamente caíram em desuso tanto o primeiro pernoite na lagoa como o acampamento no A1 que foi prontamente substituído pelo Campo Inclinado (A2), mas eram ainda raros os que pernoitavam no cume.

As dificuldades para deslocar as volumosas cargueiras com toda a tralha do acampamento acrescida de muitos litros d’água desestimulavam os menos aguerridos na porção superior da montanha e preservava o cume das agressões mais contundentes, mas tudo isto estava prestes a mudar em função de acontecimentos quase perdidos no tempo e aparentemente muito distantes.

As realistas pregações do geólogo João José Bigarella provando a relação direta entre o assoreamento da Baía de Paranaguá com o desmatamento das encostas culminaram com o tombamento da Serra do Mar em 1986 e paralelamente influenciou na formação de toda uma nova geração de Marumbinistas preocupados com questões ambientais e muito envaidecidos diante do novo status a conquistar. As gerações anteriores procuravam apenas aventuras e diversão nas montanhas e agora cabia a eles também a responsabilidade pela preservação do meio ambiente. Era a sacra missão perfeita para entusiasmar adolescentes ateus.

Por mais de um século o Marumbi se manteve como Meca do montanhismo paranaense principalmente por fatores de logística e tradição quando no ano de 1990 se fundou o parque estadual coroando os esforços dos veteranos no auge de sua influencia política e força moral. Se a missão já era sagrada o parque foi transformado em templo desta nova religião agora não mais praticada por adolescentes altruístas, mas por adultos com necessidades bem terrenas e mesquinhas. Tentando unir o útil ao agradável não poucos partiram para o sonho de tirar o sustento do próprio montanhismo. Os mais empreendedores fundaram fábricas e lojas de equipamentos com bastante sucesso na época, algumas ainda em atividade, outros preferindo se encostar na viúva optaram por empregos públicos relacionados a área e houve também os que mantiveram um pé em cada canoa, mas na montanha sagrada parecia estar tudo dominado.

Que o poder corrompe e a necessidade é mãe da criatividade são fatos inquestionáveis, mas nem sempre compatíveis. Equilibrar a preservação do santuário como templo exclusivo da seita ao mesmo tempo em que se incentiva o crescimento de consumidores para equipamentos e serviços ligados ao montanhismo é uma arte complicada. Num dos lados da gangorra implementam atrativos e facilidades, melhorias na demarcação de trilhas, área de camping, substituição das velhas correntes por degraus, eliminação dos mínimos obstáculos a acessibilidade e do outro lado afloram proibições e controles; trilhas antigas e tradicionais são interditadas, imensas áreas ganham status de intangíveis, novas explorações nem pensar, pernoite fora do camping virou pecado, a montanha é fechada com chuva, a noite foi feita para dormir e por aí se vai.

Fácil entender depois que George Orwell desvendou a técnica do duplipensar onde o mesmo argumento serve a dois objetivos opostos a depender da ocasião e do interlocutor. Afinal nesta seita todos também são iguais e alguns poucos bem mais iguais do que outros. Motivos razoáveis nunca faltam para os que têm em mãos tanto o martelo como os pregos. A trilha “B” está interditada para recuperação ambiental, a área “C” para a preservação da perereca careca de olho preto que só copula em raras noites de lua e o setor “C” pelo risco de desmoronamento. Consagrada a segurança como segundo pilar da nova religião criou-se um grupo de socorristas semi profissionais para orientar, fiscalizar e proteger os amadores de fim de semana do perigo que representam a si próprios e a natureza. A montanha tem nova administração e novas regras. O novo poder ascendente derruba os símbolos das gerações passadas para demonstrar que agora manda no pedaço e desaparece com a cruz do Marumbi varrida pela ventania de uma calma tarde sem vento. Toda e qualquer arbitrariedade se justifica nestes pilares politicamente corretíssimos e ninguém em seu juízo perfeito pode argumentar contra a segurança e a preservação do meio ambiente.

Mas o diabo que fez a panela nunca soube fazer a tampa. Aventura e risco desde sempre fizeram parte do espírito de montanha e não foram poucos os que abominaram esta tutela hipócrita preferindo arriscar-se por conta própria no Pico Paraná e arredores. O desmonte da RFFSA e a privatização dos trilhos apenas aceleraram o processo de abandono no Marumbi e o montanhismo mudou de endereço. No rastro dos pioneiros seguiu também a manada em busca da liberdade no pecado. De graça o Marumbi estatal ficou caro e o ingresso no PP privado acompanha as leis de mercado.

Este incompreendido ente difuso chamado genericamente de “mercado” é uma força da natureza como a gravidade e junto dela moldou as relações entre os seres vivos desde o alvorecer dos tempos e por mais que tentem não serão os homens a dominá-lo.

As trilhas no Ibitiraquire têm geologia muito diferente daquelas no Marumbi e com o aumento de tráfego começaram a sofrer com a erosão, mas bons moços é o que não falta neste planeta. Só um grande clube da capital poderia enfrentar este problema “adotando a montanha” e imediatamente aplicando o programa pré concebido de “manutenção de trilhas”. Dentro dos bosques, nas inclinadas encostas úmidas e barrentas onde se contavam os tombos em dúzias, cavaram degraus e fincaram estacas. Na saída para os campos onde cada um se virava de seu jeito, demarcaram um caminho único para minimizar o impacto. Sinalizaram com placas as bifurcações para ninguém mais se perder. Com uma furadeira a gasolina encheram as pedras com degraus para evitar desvios. Substituíram as velhas correntes nas pirambeiras por degraus anatômicos para evitar as manchas de atrito dos elos contra as pedras e também para facilitar resgates de hipotéticos feridos.

Ninguém deste mundo pode ser contra o discurso em prol da preservação do meio ambiente e das ações pela acessibilidade e segurança a não ser este famigerado e incompreensível “mercado” que embaralha tudo. Encostas lisas e escorregadias, trilhas confusas, mato fechado, trechos de escalaminhada com variados graus de dificuldade e outros obstáculos naturais selecionavam os poucos aptos durante o percurso e desestimulavam os inúmeros ineptos salvaguardando o meio ambiente.

Livre dos obstáculos e do “perigo”, o Pico Paraná é semanalmente invadido por multidões de excursionistas, muitos sem experiência nem consciência, sapateando numa única linha concentram o impacto sobre o solo frágil. A trilha se transformou numa vala com até meio metro de profundidade por onde correm as enxurradas agravando a erosão, as partes planas se transformaram em barreiros imensos, a erosão expõe as raízes desestabilizando as árvores e o vento faz o resto. Clareiras de acampamentos se alastram, o lixo se acumula nas grotas, papel higiênico e fezes para todo lado, pontos de abastecimento de água poluídos com restos de comida e urina. Com o acesso facilitado o cume está sujo e careca e a degradação se alastrou em iguais dimensões para as montanhas vizinhas. Dois grandes incêndios já consumiram as matas nativas de uma imensa encosta do Caratura, segunda maior montanha da região sul, e do próprio cume do Pico Paraná.

Na única emergência séria de nada serviram os degraus anatômicos e as placas indicativas com o excursionista de primeira (e última) viagem morrendo de hipotermia sobre a trilha depois de uma semana esperando socorro debaixo da chuva com meio mundo procurando nos lugares errados. E finalmente para não esquecer o economês, com o aumento da demanda sobe continuamente a soberba do dono da porteira e o preço do ingresso. Culpa do “mercado” e da natureza porque os bons moços fizeram a sua parte.

Então surgem os moços maus e arrancam alguns degraus para afrontar a civilização que reage violentamente ao ataque covarde. Depois de publicamente defender a ação destes marginais insensíveis ao meio ambiente comecei a receber também as lamúrias e gritos de ódio dos mais destemidos montanhistas:
– E agora? Sem os degraus não conseguirei mais chegar ao cume.
– Meu pai tem 50 anos e precisa dos degraus pra me acompanhar.

A todos respondi com minha boa e característica educação; vai treinar no Anhangava piá que um dia você aprende; tem cego, paraplégico e pessoas com mais de 70 anos subindo o Everest então bota teu velho na academia e para de chorar as pitangas. Mas hoje, longe do calor dos fatos, já penso diferente e estou mais propenso a concordar com as idéias do Henrique Paulo (Vitamina) Schmidlin. Não adianta lutar contra a realidade de fatos consumados e a solução definitiva passa pela privatização completa do parque. Lembro que a estatização do Marumbi foi um fracasso total por falta de verba e também de usuários. Ou o contrário. Não se pode confiar num governo que nega verba, oriunda dos impostos de todos os paranaenses, para manutenção de uma unidade de conservação freqüentada por meia dúzia de gatos pingados e pelo insignificante motivo de que sem ninguém para incomodar o mato cresce sozinho e os animais fazem a festa. Além do absurdo de agora cobrarem a energia elétrica consumida nas casas particulares e só falta qualquer dia taxarem a vilinha também com imposto territorial.

Agora que os bons moços “desadotaram a montanha” por absoluta falta de “melhores condições de trabalho” só resta a alternativa das odiadas PPPs, parcerias público privadas onde se cobraria ingresso coerente com os investimentos na real manutenção das trilhas e preservação do meio ambiente sem descuidar da acessibilidade e segurança dos usuários. Dentro de um estudado “plano de manejo” seriam construídas passarelas elevadas com madeiras de reflorestamento em suaves aclives de 8% para atender também aos cadeirantes, mirantes panorâmicos a cada 50 metros e pontes do mesmo material para vencer os grotões alem dos indispensáveis teleféricos. Largura de no mínimo 2 metros para permitir o tráfego de quadriciclos que no final da tarde recolheriam o lixo dos containers instalados nos mirantes para a devida reciclagem onde estarão também instalados os telefones para emergências, quiosques vendendo caldo de cana e milho cozido sem jamais esquecer dos banheiros químicos. No primeiro mundo já é assim.

Tudo muito “sustentável” e no padrão FIFA.

 

 

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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