DEUS, O DIABO E O TREKKEIRO NA TERRA DO SOL

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Dia e meio de viagem de incessante sacolejo por empoeiradas e precárias estradas de terra foram necessários pra chegar ate Monte Santo, arraial localizado nos cafundós do sertão norte baiano. Monte Santo???

Pois é, a 1ª vista mais uma vila perdida em meio à ressequida caatinga conhecida apenas pela romaria local ao alto do morro homônimo, local místico da região. Entretanto, poucos sabem que em 1963 este pacato local teve sua rotina drasticamente mudada p/ servir de cenário p/ clássico “Deus e o Diabo na Terra do Sol“, de Glauber Rocha. Desta forma e como sou fã assumido de filmes sobre o cangaço, esta curta e oportuna passagem pela cidade bastou p/ subir o “Caminho de Santa Cruz“, seguir algumas pegadas do aclamado diretor e tentar compreender os “porquês“ do sertão ser o principal personagem de sua celebrada ópera sertaneja.

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Saltei do ônibus no arremedo de “rodoviária” em meio ao breu da meia-noite, para ser abordado pelo único taxista ávido por algum turista, raros na cidade. Romeiros são mais comuns. Declinei da oferta e me pus a andar rumo ao centro, aos pés da Serra do Piquiriçá, majestosamente silhuetada pelo céu estrelado. Não havia alma viva à vista, e o jeito foi buscar algum canto p/ encostar a barraca.

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Contudo, a quantidade industrial de vira-latas nada amigáveis da vila tornou esta tarefa um tanto difícil, tentei me acomodar num loteamento, mas logo fui enxotado por estridentes latidos. Idem perto da rodoviária, num terreno baldio, onde fui confundido com mendigo. Por fim, após zanzar todo arraial buscando descanso e discrição, cabei armando minha “choupana” em meio aos arbustos do jardim da praça central, diante da igreja, ironicamente, sem sinal dos pulguentos. E a noite transcorreu agradável com temperatura amena, embora qualquer som próximo me fizesse ter o sono interrompido inúmeras vezes.

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Levantei antes que amanhecesse quase 05h30min, ainda resmungando pelo resquício de noite mal-dormida. Me dirigi então ao sopé das escadarias q palmilham o morro, enquanto surgiam primeiros sinais de movimentação e burburinho pela cidade, assim como a incipiente luminosidade matinal dissipava as sombras permitindo avistar os contornos mais nítidos da Serra do Piquiriçá, única elevação destes rincões retilíneos do sertão. No alto do morro, a Capela de Santa Cruz destoa como um pontinho branco dos tons ocres da montanha.

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Para os romeiros, o “Caminho de Santa Cruz” é “pernada” obrigatória de 3 km de extensão e 550m de altitude, na qual os penitentes atribuem milagres e graças alcançadas. Dizem que alguns enfrentam a via sacra de pés descalços ou com rituais de auto-imolação para ampliar o sofrimento. Da minha parte não havia promessa alguma a ser paga, apenas curiosidade em seguir a tradição à minha maneira, ampliei meu calvário subindo não com o fardo de uma cruz nos ombros, mas sim com uma pesada cargueira de quase 15 kg nas costas.

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O tempo ameno daquele horário permite um começo de subida tranqüilo, embora seja o trecho + íngreme, composto de degraus irregulares em meio a uma muretinha, que impede que grandes e espinhentos arbustos invadam a escadaria. O caminho, construído no séc. 18 com pedras dispostas artesanalmente, tem seu charme especial e é impossível não pensar imediatamente numa espécie de “Trilha Inca do Sertão”, ate porque depois escadaria é modo de falar. O que resta é apenas uma rampa pavimentada com pedras irregulares alternadas com degraus num canto e noutro da obra feita por beatos. No caso, 25 capelas dispostas ao largo de tudo percurso, cada uma com algum significado litúrgico.

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Pouco depois, o caminho vira para esquerda e o terreno arrefece em suave aclive, tornando a pernada menos desgastante. Ando sem pressa alguma, apreciando a mudança drástica de vegetação deste&nbsp, trecho. Os grandes e verdejantes arbustos ao pé da serra cedem lugar a uma paisagem mais desoladora, e a leve brisa matinal faz um rebuliço no monte de pé-de-pau que cobre a serra: cactos, pequenos mandacarus, juremas, aroeiras e umbuzeiros ressequidos se misturam a algum lixo, principalmente sobras de rojões de fogos de artifício. Sim, aqui também há farofa e respeito algum nem por vias sacras. Uma breve pausa para retomada de fôlego é necessária, assim como já se tem um belo visual do quanto já se subiu desde a cidade, ao mesmo tempo que o sol começa a estender seus raios sobre a paisagem da planura do sertão.

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Nova curva, agora pra direita, subindo a crista da serra ate o fim em terreno relativamente plano. Minhas costas estão empapadas de suor, mas ainda assim mantenho meu ritmo de ascensão constante. No caminho, cruzo com um senhor e seu filho que sobem o morro como exercício matinal, programa típico dali. “Ta pagando promessa com seu pára-quedas?”, me pergunta. Respondo que de certa forma, sim. Após metade do trajeto sou brindado, alem do belo visual, com uma refrescante brisa que alivia meu semblante ofegante. Os horizontes se ampliam consideravelmente e, num penoso e extenuante esforço, subo os últimos degraus daquele caminho sacro, ate finalmente alcançar o alto do Morro do Monte Santo, quase uma hora após galgar o primeiro degrau daquela escadaria interminável.

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Largo minha mochila na ultima capela e dou um rápido visual na bela Igreja de Santa Cruz, que nomina o caminho, por sua vez criado justamente pela sua semelhança com o calvário de Jerusalém. A igreja esta trancada, mas pela janela consigo ver o que deve ser a Sala dos Milagres, onde dezenas de velas, tulhas de ex-votos de madeira e recibos de promessas cumpridas se juntam à cera derretida em novelos presos a barbantes, forrando as paredes.

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Assim, tomo meu merecido café-da-manhã sentado numa muretinha de pedregulhos, enquanto chegam jovens em trajes de ginástica, se alongam, pra em seguida retornarem escadaria abaixo. A paisagem daqui é muito bonita. Assim como Glauber, que subiu o morro a fim de buscar locações para seu filme. Acompanhei o sol se firmar sobre a horizontalidade da vasta planície de tons monocromáticos acinzentados que se estende ate onde a vista alcança, pipocada por pequenos espelhos d´água de açudes, refletindo um céu azul intenso e isento de nuvens. Ao longe, avistam-se os lajedos bege-claros sem fim onde foi rodada a cena do monólogo de Corisco. La embaixo, a cidade em miniatura se espraia e a igreja matriz, diminuída, parece caber na ponta do dedo começando mais um novo dia.

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Mas o tempo urge e é hora de descer. Logo o sol vai começar a açoitar a pele sem dó, e o vento carregar uma “quentura” que mais parece o “bafo do demo”, como dizem por aqui. Fazer este caminho à tarde é tecnicamente impossível devido ao calor sufocante, a menos que se seja um bode ou um calango. Daí que qualquer incursão ao topo é feita nas primeiras horas da manha (ou final da tarde), já que as romarias praticamente são feitas à noite. Na descida, o movimento aumenta de tias e tios em sentido contrário, que olham com curiosidade o meu “pára-quedas”. Fico imaginando o formigueiro humano que ali deve se tornar na Semana Santa.

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Assim vou perdendo altitude aos poucos, enquanto atento com cautela aos degraus irregulares e trechos mais íngremes do caminho, e em menos de meia hora estou outra vez ao pé da serra, respirando aliviado. Me dirijo a um boteco do lado da praça central, onde as 8hrs – pelas informações colhidas – parava condução rumo Euclides da Cunha, e dali prosseguir minha jornada sertão adentro. Enquanto aguardava conversei com a simpática atendente do bar, que me contou que ali tudo mundo tinha um velho parente ou conhecido que havia “aparecido” no filme e que guardava boas recordações daquele ano em que “fazer figuração era a atividade mais bem paga naquelas bandas”.

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E não é pra menos, o clima hostil e o solo agreste continuam os mesmos, permitindo uma fonte de renda limitada, quando dá, restam pequenas roças de subsistência de milho, mamona, feijão, sisal, criação de bodes, trabalho temporário em grandes fazendas, que alem de deter açudes permanentes se encarregam de grilar o resto de terra que sobra. Sem mencionar nos ônibus lotados de “Severinos” que partem diariamente rumo às grandes metrópoles na busca de vida melhor, sendo que metade deles retornam, desiludidos. Nesse contexto de pobreza, resta o consolo na fé, na devoção e no fervor religioso, que aqui sim são o ópio do povo.


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Os anos se passaram e a embalagem da cidade pode ter mudado, mas sua essência continua a mesma. Isto é, a imensurável fé sertaneja e os infortúnios do homem nordestino continuam sendo dignamente retratados no filme de Glauber. Agora compreendo seu status de “clássico” do cinema nacional. Da mesma forma, existem peregrinações de vários tipos, de cunho religioso, histórico, ecológico, filosófico, etc. Uma visita a Monte Santo e seu “Caminho da Santa Cruz” preenche estes três primeiros quesitos. Só assim percebe-se que o sertão, com sua dramática e triste sina de sol e seca, pouco mudou desde seus dias de grandeza cinematográfica.


Jorge Soto
http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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