Escalando o Mont Blanc, parte 2

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O casal acordou e me procurou, depois de algumas palavras perguntaram se eu queria formar uma cordada com eles rumo ao cume do Mont Blanc, aceitei o convite já que foram tão cordiais dizendo que queriam “repetir a dose da boa parceria” que vivenciamos no grande colo. Combinamos começar às 02:30h.


As 19:00h de novo derreti gelo, fiz um liofilizado pra jantar, comi e fiquei na beirada do refúgio olhando o que podia da paisagem, pois ainda nevava! Eu deveria passar no refeitório às 20:00h pra receber a resposta sobre a cama, mas quinze minutos antes uma menina do refúgio me encontrou do lado de fora e me disse: “Paulo, consegui uma vaga pra você, mas é no dormitório dos guias e eles são muito chatos em relação a barulho, quando entrar, faça silêncio e não terá problemas ok?” Agradeci e entrei pra dormir às 20:10h, observação à parte: ouvi muito mais barulho do que queria mas fiquei quieto na minha (risos).

Acordei às 01:30h com o bater de mosquetões e piolets, levantei e fui ao banheiro, comi uma barrinha de cereal, peguei a mochila que deixei pronta e fui verificar a previsão do tempo que já estava impressa e fixada na parede desde a noite anterior. Quando cheguei ao lado de fora o céu estava limpo, fazia –2°C e não havia vento algum. A lua brilhava tanto que as lanternas eram dispensáveis, mesmo assim levei a minha.

Começamos a caminhar às 02:40h, tínhamos 990 metros de desnível até o cume, somando algumas descidas que obviamente causam mais subidas, o desnível total aumenta pra aproximadamente 1.200 metros acumulados para subida. Mais uma vez, com previsão boa, caminhamos com calma e cautela. Quando chegamos ao cume da Agulha de Goûter, à nossa frente já havia uma linha de gente subindo. Alguns próximos ao cume da Dome de Goûter 500 metros acima.

A 4.245 metros estávamos ao lado do cume da Dome de Goûter, deixei pra descida. Era 04:10h e continuamos sem nenhuma parada sequer. Descemos um pouco e retomamos a subida até chegar ao terceiro e último refúgio, o Vallot, a 4.362 metros, utilizado somente pra emergências, às 05:00h. O sol começava a nascer, chequei a temperatura e era de –6°C. Ventava pouquíssimo, mas a sensação térmica era bem forte, não sei o motivo.


Video mostrando o nascer do sol, Marcel, Anne, o refúgio e o Mont Blanc de Tacul.

Depois deste último refúgio a rota muda e os riscos aumentam. O caminho se transforma em um filo único e contínuo bem estreito, no máximo um metro. Errou, caiu. Se estiver só e não conseguir frear nos flancos de até 60° de inclinação, já era. Se estiver encordado ainda tem uma chance de alguém te ancorar.

Mais um erro grave que notei dali até o final da escalada, muita gente subindo em solo com um bastão de caminhada em cada mão. Será que ninguém sabe que um bastão de caminhada extendido não serve pra frear um corpo de pelo menos 70kg descendo no gelo em velocidade no caso de uma queda??!! Não pra qualquer inclinação que passe dos 25 ou 30°! Ele partirá ao meio num piscar de olhos! Poucos portavam um piolet de marcha. Alguns até tinham, e onde estava o piolet? Amarrado na mochila! Ainda se perguntam do motivo pelo qual o Mont Blanc já matou tanto. Eis minha resposta, imprudência. Não preciso de dez anos de experiência pra responder isso.

Chegamos a 4.400 metros, muitos grupos já desciam do cume junto dos primeiros raios de sol atrás do Mont Blanc de Tacul. Tráfego de pessoas que significava parar e esperar, passar quando dava, parar e esperar…Uma rotina desconfortável de se fazer em um filo de um metro de largura, com flancos tão inclinados.

Depois de passar pelo Grande Bosse e Petite Bosse, atingimos a rampa final, que desgasta. Contínua, cerca de 25° de inclinação o que não é quase nada, mas a ansiedade já é forte, o cume mais alto dos Alpes está ali, bem perto. Um falso cume ilude, porém o cume verdadeiro dista só uns cinqüenta metros à frente.

Finalmente pisamos no cume do Mont Blanc de 4.807 metros às 07:20h, depois de muito sinal vermelho no trânsito de gente. Eu sentia muito frio e chutava uns –20°C, mas chequei o relógio e a temperatura era de –10,4°C. A previsão acertou de novo. Eu estava feliz como se fosse meu primeiro grande cume! Marcel e Anne também, pareciam duas crianças sorrindo e era sua segunda vez na montanha, a primeira foi em 1998. Fizemos um caloroso abraço triplo bem forte às gargalhadas, parecia que a montanha era nosso Everest, o topo do mundo!

Fizemos poucas porém precisas fotos. Cada um tirou a sua, eu tirei pros dois, pedi pra um norte-americanos tirar de nós três, ele levou algum tempo e me disse que não sabia se tinha saído, verifiquei e tinha tirado quatro, todas boas. Agradeci, depois o Marcelo tirou pra mim de duas vistas diferentes sem que o sol atrapalhasse. Fiz minha foto segurando a bandeira portuguesa, dedicando mais uma vez a escalada à minha mãe. Pra quem não sabe, tenho descendência brasileira e portuguesa. Minha mãe nasceu em Viseu/ Portugal, e veio pro Brasil com dois anos de idade de navio. Saudades mãe, segura mais essa!

Não ventava muito no cume, mas o pouco vento era bem frio, que combinados aos –10,4°C tornavam a tarefa de tirar fotos bastante dolorosa, eu queria fazer uma panorâmica do cume mas não fiz, queria um vídeo de cume mas não fiz. A mão doía instantaneamente ao tirar a luva.

Depois de só uns sete ou oito minutos no cume começamos a descer. Quilômetros à distância podíamos ver grupos ainda no início da escalada, despontando logo acima dos seracs que passamos ao lado do Dome de Goûter. Na descida a mesma rotina da subida, passa, espera, passa, espera…Muita gente indo pro cume. Acredito que neste dia, 30 de junho de 2010, pelo menos 100 pessoas tentaram o cume, pelo menos 85 delas chegaram lá.

Já bem cansados chegamos a lateral da Dome de Goûter. Não podia deixar de fazer cume. Saí da cordada e fui sozinho, marcando pegadas no gelo virgem pois ninguém foi pra lá nesta semana. Só fiz duas fotos do cume, uma da Agulha de Bionassai, impressionante montanha e mais bela que o próprio Mont Blanc, e do Refúgio Goûter visto desde os 4.304 metros do cume da montanha, usando 8x de zoom. Desci, voltei pra cordada e continuamos a descer. Meu pé direito me causava muitas dores, meu dedão doía muito e podia perceber várias bolhas. Chegamos ao Refúgio às 10:20h.

Quando me sentei não agüentava de dor, tomei 2 comprimidos de paracetamol que comprei em Calama meses antes. Tirei a bota e a surpresa ruim: O dedão do pé e um pouco de sua continuidade junto ao pé estavam inchados e com coloração roxa. No mesmo pé, 6 bolhas já estouradas e duas cheias de água decoravam meu pé com uma incomum fantasia de lepra. Seria congelamento? Sei lá, achei que não.

Enquanto o casal decidiu descer direto eu preferi ficar mais uma noite no refúgio, descansar bem e cuidar do pé. Tomei uma sopa de legumes sem legumes (que era beeeem diferente da foto rs) e uma coca-cola a 10,50 euros, dei mais uma chorada com a menina que organiza as vagas, que de imediato me deu uma cama no dormitório principal, caí lá e dormi. Depois de trocar e-mails e me despedir do Marcel e da Anne é claro. Foram uma companhia super agradável na montanha!

Acordei às 16:00h. Continuava sozinho no dormitório, saí e olhei pro grande colo e nevava bastante, o ciclo se repetia, dezenas de pessoas escalando e desescalando a rota, fazia bastante frio até e o tempo estava nublado. Com o passar das horas mais gente chegava. Uma invasão polonesa, contei pelo menos 15 polacos. Voltei pro refeitório, pra mesa e pras cruzadas, até que umas 20:00h fiz outro liofilizado e comi debaixo de nevasca, é proibido usar fogareiro dentro do refúgio. Fui dormir.


Nevasca no grande colo

Nova movimentação de cume às 02:00h, o sono ganhou e caí no sono novamente. Acordei de novo sozinho às 07:00h. Tempo límpido, céu azul, porém um vento relativamente forte, o que significava vento bem forte acima. Quando saí notei que deveria ter nevado bastante durante a noite, uma nova camada de neve fresca cobria o grande colo todo, em muitos pontos a neve começou a derreter e congelou em seguida, formando aquela manteiga nas rochas. Meus planos de descer de salomon pra poupar o pé foram por gelo abaixo. Teria que descer de boreal e crampoons indiscutivelmente.

Comi minha terceira e última barrinha de cereal, meu último liofilizado, fui ao refeitório me despedir do pessoal, quando acabei escrevendo no livro de presença de lá. Um rapaz do refúgio me elogiou então era o mínimo que eu podia fazer, me disse: “Paulo, você trouxe luz pro abrigo. Todo mundo que vem aqui é fechado, só fala com seu grupo. Você não, o pessoal do refúgio gostou de você!”. Depois dessa, tinha que assinar o livro concordam? Assinei, deixei endereço do blog e do altamontanha, arrumei a mochila e me despedi de todos em definitivo.

Lá fui eu enfrentar o grande colo de um jeito que eu detesto, descendo e em más condições do terreno, eu estava tenso. Tomei mais 2 comprimidos de paracetamol pra aliviar o pé, me equipei e comecei a descida sozinho. Fui pisando em ovos a cada passo, super adrenado. Do jeito que as rochas estavam, um acidente seria triplamente mais fácil de acontecer. Quando cheguei na travessia, depois de desescalar aquele terror que é o colo semi congelado, passei pelos 30 metros da travessia quase correndo. Na outra extremidade, já seguro, parei e olhei a rota pra um grupo guiado, vigilante por causa das rochas. Um a um eles passaram, por último passou o guia e me agradeceu dizendo “obrigado, você é um bom homem”. Pergunto eu, se ele era o guia, por que estava por último??!!


Exemplo de inexperiência sem limites na travessia do grande colo, vejam este vídeo que encontrei no youtube!

Dali até o Tête Rousse desci de esqui bunda, chegando lá mais rápido. Quando entrei o pessoal da recepção me reconheceu, lembraram de mim, a primeira pergunta foi se fiz cume, dei a resposta positiva pra Dome de Goûter e Mont Blanc. Fui parabenizado e me disseram que era ótimo pois todo mundo fica cego pelo Mont Blanc e ignora a Dome, ou não vai pra poupar energia.

Peguei a mochila no locker, meu 1 euro de volta (o locker é de graça mas precisa de uma moeda de 1 euro pra liberar a tranca e a chave), reorganizei tudo dentro das mochilas, abandonei o gás pois seria proibido mesmo no vôo, pendurei a mochila menor na maior e comecei a descida dos 800 metros de desnível até a estação de trem. Mais 2 comprimidos de paracetamol pra dor na descida, perdi as contas de quantos foram, são muito fracos os comprimidos hermanos! Fui embora.

Parei algumas vezes pra beber água de degelo, fazia um calor de 27°C no glaciar, fiz algumas fotos outras vezes. Cheguei à estação de trem às 13:00h. O tempo lá pra cima já começava a mudar. Encontrei algumas pessoas que disseram que a proporção de cume para aquele dia já não era tão boa quando antes, muitas pessoas desistindo por causa do frio de –15°C próximo ao cume e ao vento mais forte. Confirmei minha descida pras 14:45h (quando se compra o ticket do trem que custa 17,50 euros, paga pela subida e descida). Troquei de roupa, de bota e com os comprimidos ainda aliviando as dores do pé, comecei a caminhar pra fazer fotos.

Conversei com um senhor alemão que viu que eu era brasileiro e veio bater papo. Papo agradável e longo. Quando a hora chegou desci de trem até os 1.800 metros e lá peguei o teleférico de volta pra cidade (mesmo que o trem, um só valor de 13,30 euros para subida e descida), na altitude de 1.035 metros de Lês Houches.

Existe uma trilha bem longa pra fazer todo esse trajeto (teleférico + trem = 1.335 m de desnível), mas não preciso provar nada pra ninguém e também não queria me desgastar antes do tempo. Mesmo de onde iniciei minha investida, o desnível acumulado total de ascensão que fiz foi de 2.650 metros. Bastante coisa. Raramente alguém se aventura a esse desgaste extra de 1.335 metros. Desde a estação de trem se observa toda a trilha, e havia somente 1 pessoa subindo nela.

Em Lês Houches, esperei o ônibus pra Chamonix (que não paguei! He he he) e lá, sob chuva, peguei um trem (na verdade troquei de trem 3 vezes) pra Zurich ao custo de 68 euros.

O Mont Blanc tem 4 rotas tidas como normais como a que eu fiz, porém a Goûter é a mais freqüentada. Entretanto, todas as rotas exigem experiência mínima moderada de deslocamento em glaciar, freio em caso de queda no gelo, equilíbrio bom, e coragem pra passar pelos filos pra chegar ao cume. Falar isso não é nenhuma tentativa de auto promoção, é fato. Passei pelos filos adrenado subindo e descendo.

Antes de tentar esta montanha pesquise bastante, fique atento as informações de tempo e condições do gelo, estas informações estão pra todo lado em Chamonix, Lês Houches e nos refúgios, e são gratuitas. Isso pode ser a diferença entre a vida e a morte nesta fácil porém mortal montanha que, até hoje, já ceifou 68 vidas (número tido como oficial que encontrei online, pode ser maior).

Meu pé: Quando cheguei em Zurich, Suíça, comprei gase e fiz um curativo meia boca no dedão e parte do pé, comprei e coloquei curativos pras bolhas estouradas e procurei andar pouco na medida do possível, o que não foi fácil tendo que dormir na rua por 3 noites (cidade lotada por causa da Zurich fest, 3 dias de farra e bebedeira com 2 milhões de turistas na cidade – albergues e hotéis lotados), mantive a bota desamarrada pra aliviar a pressão. No segundo dia cogitei procurar um hospital e até comentei com o Pedro por e-mail, mas “dei mais um dia”. Começou a melhorar na manhã seguinte. No quarto dia tirei as bandagens em definitivo, mas os curativos das bolhas continuaram por uma semana. Não acredito que tenha sido um leve congelamento, mas não seja um tonto como eu, procure atendimento médico hospitalar em caso de ferimentos e suspeita de congelamento!

Não deixe de ler a primeira parte desta matéria.

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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