Julio Fiori fala de anarquismo, liberdade e responsabilidade no montanhismo

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No alto de seus 53 anos de juventude, Julio César Fiori é uma personalidade polêmica no meio. Com muita experiência, viveu as diversas fases do montanhismo no Paraná, desde a época em que enfrentar trilhas, lama e penhascos se chamava “Marumbinismo” até o momento atual, onde observa os valores originais do montanhismo sob ataque constante do ambientalismo politiqueiro, da urbanização e da humanização da natureza.


Curitibano, arquiteto de formação, pai de família e montanhista inveterado, também, fundador do portal AltaMontanha tem como hobby escrever histórias de montanhismo, contos do cotidiano, memórias e crítica social além da coluna que mantém no portal AM. Também é autor do livro Caminhos Coloniais da Serra do Mar, onde conta de forma leve e agradável a história do desbravamento e colonização do Paraná através dos caminhos e trilhas primeiramente usadas para vencer a Serra.

Adorado por uns, odiado por outros, Julio não se importa com as críticas. Nesta entrevista fala um pouco sobre conceitos e sobre sua vivencia no montanhismo do Paraná ao longo das ultimas três décadas.

Julio se preparando para escalar.

1) Fiori, conte como foi que você começou a fazer montanhismo? Conte sua trajetória no meio.
Andar no mato não era opção para quem viveu a infância nas colônias de imigrantes ao norte de Curitiba. Construir cabanas com gravetos, nadar nos rios e subir em árvores era parte obrigatória do aprendizado e a Serra do Mar sempre esteve presente no imaginário da piazada. Ninguém se fazia homem sem antes escalar o Marumbi. Na adolescência os horizontes se alargaram com incursões farofeiras mais ousadas pelo Itupava, Salto dos Macacos, Graciosa e finalmente cortei as travas frontais do velho Kichute, mas paralelamente surgiram outros compromissos. Estudar, trabalhar, rock and roll, mulher e filhos. Em 1970/80 era difícil conciliar tais interesses. Depois, com a vida estabilizada, retornei as origens refazendo o itinerário e encontrei a região do Marumbi dominada. Então, apesar das dificuldades de acesso, parti para o território ainda livre nos arredores do Pico Paraná até que o Ibitiraquire ficou pequeno e começaram as viagens, Mantiqueira – Serra dos Órgãos, atrás de clássicos como a travessia Petro-Tere e Dedo de Deus, mas há uma hora que se quer ainda mais e aí surgem os Andes.

Julio Fiori na montanha

2) Você é conhecido como uma pessoa que não tem papas na língua, fala o que acha sem medo de ser politicamente correto. O que você acha do moralismo que tomou o montanhismo e por que montanhistas se preocupam tanto com isso.
Não considero o “montanhista” um ser politicamente correto e muito menos moralista. O montanhista é forte e determinado o suficiente para abrir o próprio caminho sem deixar-se intimidar por estas patrulhas de pentelhação, é consciente de sua capacidade e avesso a politicagem. Hoje se confunde montanhismo com ambientalismo principalmente pelo interesse e paixão do montanhista em defender os locais em que pratica seu esporte/cultura do avanço desenfreado da urbanização. Os ambientalistas infiltrados usam este moralismo invertido para deturpar e enfraquecer a cultura corroendo o espírito puro do montanhismo. O ambientalismo é um vírus para o qual o montanhismo ainda não encontrou anticorpos, mas já começou a procurar.

Fiori em seu local preferido, a montanha.

3) O que você acha do papel que os Clubes e as Federações tem hoje na política do montanhismo?
No Brasil a maior parte dos clubes nasceram na tradição das associações excursionistas do início do século passado, de onde também surgiu as raízes do turismo natureba&nbsp, e ainda carregam no sangue este parentesco. Para justificar o nome são programadas algumas atividades “escoteiras” do tipo mutirão enxuga gelo aqui, caminhada para iniciantes acolá, mas o objetivo principal é pizza, cerveja e fofoca. São entidades meramente sociais reunindo pessoas que precisam encher o tempo e conversar sobre algum assunto. É o ambiente ideal para fazer política e também para contaminação com o vírus da gripe e do ambientalismo. Claro que por vezes há montanhistas no grupo, mas estes não desperdiçam tempo com esta embromação e sua verdadeira sede social é a montanha.

4) Como funciona a anarquia do montanhismo que você sempre fala?
Engana-se quem pensa que anarquismo é bagunça ou desorganização. Anarquismo é liberdade e para tanto requer muita responsabilidade. O anarquista não reconhece chefe, patrão, presidente ou ídolo. Faz seu próprio caminho e arca com todas as responsabilidades e custos por sua atitude. Mesmo sem saber, todo montanhista é parte anarquista e para escalar uma nova rota tem que negociar individualmente com o dono/administrador da propriedade ou arriscar no cambau, se expondo por caminhos inéditos, explorando e aventurando-se. O cambau é a cara do anarquismo e aumenta a adrenalina, mas não diminui a responsabilidade com o meio ambiente, com o respeito pela preservação e integridade da propriedade alheia e com a ética do montanhismo. Assumir riscos faz parte do espírito e da cultura do montanhista.

5) Como você enxerga a normatização do montanhismo e o caso Abeta?
Ninguém é contra a liberdade, alguns “éticos” é que são contra a liberdade dos outros. Querem uma reserva de mercado para si mesmos. Acontece que o montanhismo é uma cultura complexa e incompreensível para as pessoas “normais” e grande parte dos clubes mal disfarçam que flertam perigosamente com o turismo, diria até que tem uma atração irresistível pela idéia Abeta, e o Estado não desperdiça uma chance de intrometer-se na vida alheia. Normatização e Abeta não pertencem ao mundo do montanhismo e deveriam ficar restritas ao turismo onde até as considero necessárias diante do modismo atual. Turismo de aventura virou um negócio lucrativo e como tal precisa de regras para funcionar a contento. É essencial separar estas atividades. Quando um grupo de montanhistas contrata uma expedição guiada automaticamente se transformam em turistas e como tal tem direitos e deveres estabelecidos em contrato, mas se este grupo empreende a mesma expedição por conta própria apenas liderados pelo mais experiente estão praticando montanhismo e devem assumir de forma independente todos os riscos da aventura. Veja que um detalhe faz toda a diferença e dá pra deixar ainda mais confuso quando se pensa que o guia, mesmo recebendo dinheiro, está provavelmente fazendo montanhismo. Como tudo no montanhismo esta também é uma linha tênue que se resume na predisposição de algumas pessoas a assumir riscos.

Caminhando na montanha.


6) Você vivenciou muitos momentos históricos do montanhismo paranaense. Como enxerga o momento atual? Está melhor ou pior que há 20 anos atrás?

Não está melhor, nem pior. Os problemas é que mudaram, mas os verdadeiros montanhistas nunca se deixam intimidar por eles. É como sexo, dá prazer e se faz por debaixo dos panos, as escondidas e com poucas testemunhas, mas depois de um tempo dá pra contar e gozar novamente inúmeras vezes. As proibições e regras são totalmente ineficazes tanto para um como para o outro e sempre haverá alguém escalando uma montanha proibida, comendo alguém ou ambos.

7) Como você visualiza o futuro do montanhismo do Paraná?

O paranaense e principalmente o curitibano tem montanhismo no sangue. Somos uma mistura de italianos, alemães, japoneses, polacos e índios que já nascem com comichão para escalar, andar no mato e no gelo, arriscando o pescoço e assumindo riscos. Herdamos a tradição empreendedora desta gente destemida que abandonou seus lares atravessando mares e oceanos a revelia de reis, ditadores, presidentes e exércitos mercenários para desbravar terras e montanhas desconhecidas. Sempre faremos um montanhismo autentico.

8) Você causou muita polêmica ao defender a retirada das escadas do Pico Paraná. Por que este posicionamento?
O montanhismo é esporte e cultura onde o aprendizado é gradual e infinito. A montanha é tanto a escola como o professor e cada uma tem alguma coisa a ensinar através de seus obstáculos naturais. As escadas, cordas fixas e cabos de aço são artificialismos que cerceiam este processo. Como o extinto Mobral e o atual sistema de cotas que presenteiam com diplomas os analfabetos funcionais e eliminam os méritos da conquista. É perigoso porque permite que pessoas inexperientes tenham acesso a lugares potencialmente mortais para os quais estão incapacitadas e finalmente porque desguarnecem os ambientes naturais para a invasão desenfreada do turismo inconsequente que produz a erosão das trilhas e a degradação dos cumes.

9) O que achou da recolocação das escadas feitas pelo CPM?
Não me surpreendeu, está no DNA de muitos clubes e este não é exceção. Na maioria são apenas urbanóides que dizem amar as montanhas, mas não as aceitam com sua naturalidade e seus obstáculos. Dizem amar a Deus, mas acreditam que podem fazer melhor que Ele consertando seus “erros”, nivelando o relevo e as pessoas, na cidade e na montanha. Como formigas querem transformar o mundo num formigueiro, construir calçadas, pontes, rampas e escadas. Tem prazer em construir benfeitorias e inventam todo tipo de desculpa que as possam justificar. Preparam o terreno para a Abeta. Primeiro incentivam a invasão instalando estas facilidades, depois reclamam da conseqüente destruição e finalmente exigem controle artificial do acesso com guarita, policiamento e cerca de arame. Na verdade os donos da montanha querem uma cópia da chave para decidir quem pode ou não pode subir. É o jogo do poder, da politicagem e a razão de existir das associações. Foi assim no Marumbi.

10) Você é responsável pela abertura de diversas trilhas que dão acesso à montanhas na Serra do Mar do Paraná. Qual é a diferença nos impactos entre as trilhas que você abriu e as trilhas com escadarias, sinalização e as facilidades urbanas do CPM?

Abri novas e recuperei muitas outras trilhas na Serra que ainda hoje são usadas e outras tantas que permanecem esquecidas sempre pela lógica do montanhismo de respeito ao relevo e aos obstáculos, explorando mirantes, fontes de abastecimento de água, clareiras naturais para acampamento e principalmente oferecendo aprendizado constante e uma leitura respeitosa da montanha para quem se aventurar a percorrê-las. Nelas há riscos variados e não se constituem incentivo ao turismo fácil ou pago. Quem as percorrer é digno deste mérito.

Julio Fiori nos Andes

11) Quais são seus projetos no montanhismo?
Sou completamente ortodoxo em matéria de montanhismo e só meus “cúmplices” na aventura sabem dos planos, mas prometo escrever um relato honesto e completo depois de consumados. Com fotos.

12) Qual é o recado que você pode dar às pessoas que estão começando agora no montanhismo?
Não peçam permissão para pretensos figurões. Tracem uma meta coerente com seu grau de experiência, pesquisem, planejem e se informem com os mais experientes. Um verdadeiro montanhista jamais nega informação a seus pares. Montanhismo é aventura e risco, sempre um pouco a frente, sempre mais ousado. Sem adrenalina não vale. O que é mole para alguns já foi dificílimo para mim e será também para os iniciantes, mas o mérito da conquista e da auto-superação recompensa todos os sacrifícios.

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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