Mãe Catira – Farinha Seca

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Quem desce a Estrada da Graciosa, famosa vereda de paralelepípedos graníticos q interliga o planalto curitibano ao litoral, não deixa de se encantar com o enorme e verdejante cadeia montanhosa q ladeia a sinuosa estrada desde seu inicio. Falamos da Serra da Farinha Seca, q embora na carta surja agregada a Serra da Graciosa, na verdade é um único acidente geográfico q recebeu dois nomes por confundir-se com a estrada homônima. Independentemente disso, formam uma única e majestosa cumeada de 10kms q se espicha a partir do Morro Mãe Catira e finda no Morro da Balança.


Mesmo próxima de serras mais notórias, a visitação da Farinha Seca é rara, senão inexistente para além do conhecido Morro do Sete. Os motivos vão desde terreno bastante acidentado e muita “quiçaça” no caminho, isto é, vegetação ruim, agreste, suja e espinhenta. Não bastasse isso, suas cristas e cumes não são descampados rochosos e sim cobertos de “macega”, mata arbustiva rija, espessa e compacta. Mas o q gera desinteresse a uns é decerto colírio pra outros. Foi assim q nasceu o desejo de realizar a “Longa Travessia da Farinha Seca”, desafio este cujo maior obstáculo era o pioneirismo duma linha de cristas totalmente selvagens, virgens e inexploradas.

O projeto era ambicioso e o tempo disponível do feriado, apertado. Há tempos q ouvia falar da Travessia da Farinha Seca e a tempos q vinha “me oferecendo” pra integrar a expedição q Julio Fiori (altamontanha.com) vinha organizando à região. São contadas nos dedos da mão as pessoas q já enfrentaram essas montanhas e de tds apenas as trupes do Giancarlo Castanharo (mais conhecido como Cover) a mais de uma década atrás e mais recentemente os NNM (Nas Nuvens montanhismo) conseguiram rasgar a serra de cabo a rabo, entretanto, sua rota desconsiderou o Balança, q tb integra a crista inicial ao sul. Portanto, a travessia completa pela crista da Farinha Seca era algo completamente inédito e pioneiro. Será q vamos conseguir? Vejamos…

Pois bem, após uma madrugada mal dormida de viagem embalada em fina garoa, chegamos à Estrada da Graciosa naquela fria e enevoada manhã de quinta, as 7:30. Estacionamos então na pastelaria logo após o portal, meio q descontentes por conta da mesma&nbsp, não estar aberta a fim de nos providenciar um revigorante desjejum. Se bem q quiçá nem houvesse tempo pra isso, pois não demorou pro resto dos integrantes daquela supertrip darem o ar da graça, saídos de 3 carros q chegaram quase q consecutivamente.

Do primeiro veículo saíram os veteranos Fiori e Moisés, q dispensam apresentações, além da “lenda viva” Elcio Douglas Ferreira e a belezura-pau-pra-td-obra Bárbara Pereira, a Báh, do segundo surgiram nada menos q o presidente da Fepam, o Natan e sua esposa Michele, ambos do “Nas Nuvens Montanhismo”, o Otaviano e sua esposa Carol e finalmente o Pedro Hauck do terceiro, estes últimos montanhistas de garbo do site altamontanha.com, acumulando as funções de programador e editor, respectivamente. Francamente, nunca havia visto tanta gente de renome junta a não ser na “Adventure Fair”. E o melhor, prontos pra ação! Olha, me senti pequeno diante de td aquela galera, uma vez q minhas credenciais se limitam apenas a trilheiro de final-de-semana e pretenso articulista-amador nas horas vagas.

Após as devidas apresentações imediatamente embarcamos rumo nossos respectivos destinos. Ué, como assim destinos distintos? Sim, com tempo apertado para uma empreitada deste porte precisariamos, além de muita mão-de-obra pra abrir passagem diante dos obstáculos q se apresentariam, logística bem diferenciada. E a idéia previa dois grupos começando nos extremos opostos da pernada de modo a otimizar o avanço e assim, das chances de conclusão plena da travessia. Os dois casais acompanhados pelo Pedro e do Jurandir Constantino que aguardava em Porto de Cima iniciariam a caminhada pelo Morro da Balança enquanto os demais fariam a investida pelo Morro Mãe Catira para reencontrar-se no meio da travessia. Simples e aparentemente eficaz, afinal a “união faz a força”.

Assim, nosso intrépido quarteto paulista acompanhou então o veiculo do Fiori enqto o resto do pessoal, em tese, foi direto pro Balança na outra extremidade da pernada. Não rodamos nem&nbsp, alguns poucos kms Graciosa abaixo q logo adentramos numa precária estrada de chão, à direita. Serpenteando devagarzinho pela mesma não demorou a estacionar em definitivo num local chamado Casa Garber (ou Casa de Pedra, tanto q tem as ruínas de uma bem do lado). Fomos recebidos por um velho e roliço senhor, q tem o pitoresco apelido de “Espalha Brasa” e autorizou a permanência dos veículos. Falador como ele só, estava com a barba recém-feita, sinal q naquele dia visitaria “as primas” na cidade.

Enqto ajustávamos as cargueiras nos ombros o tempo à nossa volta apenas tendia a piorar. As brumas agora davam lugar a um céu cor-de-chumbo com direito a garoa engrossando cada vez mais, sem dar sinais de melhora. O Elcio cogitou a possibilidade de abortar a trip diante daquelas condições climáticas, mas vendo q nós – paulistas retados – estávamos resolutos a pernar do jeito q fosse, não cedeu a seu impulso fazendo jus a fama de perrengueiro-sob-qq-cirscunstância q o precede. Apesar de estarmos ao sopé do Mãe Catira, sua cumeada aqui encontra-se totalmente invisível à nossos olhos, engolida por completo pelos tons opacos do mal tempo. O Mãe Catira, por sua vez, recebeu este nome devido a uma escrava alforiada que no sec. XVIII fixou residência nas margens do rio do mesmo nome, às margens da Graciosa.

Começamos a pernada oficialmente um pouco depois das 8:30, qdo a garoa enfim deu trégua, tomando uma picada próxima do casa do seu pançudo proprietário. Óbvia, bem batida e sinalizada de fitas, a trilha sobe o Mãe Catira progressivamente pela sua encosta forrada de mata, q por sua vez fornece as raízes necessárias q aqui servem de degraus. O ritmo é ágil e não tarda pra Báh, Moises e Élcio, a quem apelidei de “Trio Ligeirinho”, dispararem na dianteira distanciando-se bastante da gente. Eu e o resto preferimos subir sem pressa, obedecendo nosso ritmo e desfrutando da pernada. A piramba então embica forte, fazendo o suor escorrer em bicas pelo meu rosto e a umidade embaçar os óculos.

Após uma breve parada num pequeno curso d´água q refresca a goela e enche alguns cantis, a pernada prossegue no mesmo compasso anterior, sempre atentando pras marcações de plástico na vegetação. Mas é aqui q reparo q o bravo e decidido Mamute estranhamente vai ficando pra trás. Pergunto do q se trata e ele apenas responde que padece de uma inconveniente dor nas “partes baixas”, fruto de uma antiga infecção, estar prejudicando sua ascensão normal. Ele bem q tenta prosseguir, mas no final entrega os ptos e decide sabiamente retornar. Era a primeira baixa da trip.

Após me despedir do Mamute apresso o ritmo de subida até emergir nos primeiros campos de altitude, onde reencontro o resto do pessoal as 10:10, q aqui descansa apreciando o visual ao redor, já q as brumas haviam parcialmente se dissipado. Estamos numa encosta próximos da bifurcação q, em menos de meia hr, leva ao alto dos 1457m do Mãe Catira e, numa hora, aos 1339m do cume do Morro Sete, q recebe este nome por ostentar este número cravado num paredão. Fiori me dá a opção de visitar estes cumes, mas abro mão dela por não querer atrasar o ritmo do grupo, até pq eu já via os pontinhos coloridos do “Trio Ligeirinho” já na montanha ao lado! O Mãe Catira é o pto culminante de td Serra da Farinha Seca, mas apesar de não visitar seu topo dali&nbsp, já se tem um bom vislumbre do entorno: ao norte avista-se a silhueta de td cadeia do Ibitiraquire, com o PP espetando majestosamente as nuvens, e ao sul notamos uma serie de elevações sucessivas q correspondem ao Popoaçu Mirim, Casfrei, Esporão do Vita e Tapapuí.

Após bordejar os campos arbustivos do Mãe Catira começamos a descida ao vale q dá acesso à montanha sgte, isto é, ao Popoaçu Mirim q tb é conhecido como Pequeno Polegar. Mergulhamos então novamente na mata, equilibrando-nos sobre as raízes e firmando no tronco das arvores em volta. A desescalaminhada íngreme lembra bastante à do Corcovado de Ubatuba e num piscar de olhos pisávamos no leito pedregoso de um pequeno córrego no selado entre as montanhas. Sem perder de vista as benditas fitas amarelas no arvoredo, a jornada outra vez embica forte montanha acima acompanhando pela esquerda um enorme paredão rochoso da encosta do Popoaçu Mirim. Ao emergir novamente nos campos de altitude, aqui tomados por caratuvas q dançam ao vento, o brumado toma conta dos 1382m do estreito cume do Pequeno Polegar, tomado de espessa macega. Eventuais janelas apenas permitem vislumbre dos impressionantes penhascos verticais do Morro Sete, bem do lado, assim como do “Trio Ligeirinho” subindo a encosta do Casfrei, a próxima montanha da cadeia.

Despencamos então pela grota oposta novamente, sempre atentos às marcações, agarrados ao tronco e raízes aéreas das arvores feito macacos. E tome mais desescalaminhada onde td cuidado é pouco, afinal, o perigo está justamente ao se apoiar em pedras soltas ou galhos podres. Frestas na vegetação permitem avistar nosso destino, bem ao lado. Após uma descida longa e acidentada, no fundo do vale nos brindamos com uma breve parada pra beliscar alguma coisa, ao meio-dia, protegidos da neblina gelada por enormes rochas verticais q parecem nos emparedar naquele exíguo espaço. Os fumantes tb tem a sua vez de relaxar naquele meio de nada e lugar nenhum, com Fiori puxando seu indefectível charuto e Vivi seu cigarrinho amassado.

Retomamos a pernada contornando um espesso bambuzal pra em seguida passar p/ subida propriamente dita do baixo Casfrei. A ascensão é curta, íngreme e praticamente em linha reta piramba acima, sendo assim num piscar de olhas galgamos seu cume coberto de vegetação lenhosa e dura q vai até a altura do quadril. Pra variar, do alto víamos nitidamente a trinca de ptos coloridos destoando da encosta verde do alto da montanha sgte do trajeto, o Esporão do Vita e logo atrás com brumas encobrindo sua cumeada, o imponente Tapapuí.

A marcha prosseguiu no mesmo compasso anterior, isto é, com uma nova e íngreme descida em direção ao colo sgte q nos separava da base do Esporão do Vita, a sudoeste.&nbsp, Após atravessar um espesso bambuzal no vale, passamos a ganhar altitude através duma encosta suavemente inclinada&nbsp, tomada por&nbsp, bromélias gigantes. Desviando a td momento de suas longas e afiadas espadas se cruzando à nossa frente, emergimos enfim no alto do Esporão do Vita, as 14:15, onde o “Trio Ligeirinho” nos aguardava. Da sua cumeada coberta de macega e alguns outros arbustos menos lenhosos q alcançavam à altura da barriga tivemos uma boa panorâmica do q havíamos percorrido e do q ainda faltava.

O vento soprando do mar rapidamente dispersava as brumas a oeste deixando o céu claro e a atmosfera transparente, dando ânimo redobrado á empreitada. As nuvens q não se diluíam com as demais eram represadas pelos altos paredões serranos, a leste, deixando á vista um belo e maravilhoso tapete alvo ocupando td horizonte. Foi aqui onde uma enorme caranguejeira “saltou” na camiseta da Vivi, deixando-a apavorada. Seu grito pode ser ouvido em Paranaguá há 80km de distância. No entanto, a guria foi tranqüilizada pela Báhzita q não pode ver nenhum bicho peçonhento q já quer imediatamente pegar na mão. “Ai q linda! Ela não é venenosa não, Vivi! Deixa ela comigo!”, emendou a galega no mesmo instante em q segurou a enorme aranha cabeluda como se fosse um ursinho de pelúcia.

Pois bem, as marcações e fitas amarelas anteriormente deixadas q indicavam o “caminho” chegavam apenas até aqui. Caminho é apenas modo de dizer, pois a “trilha” nada mais era q um pequeno espaço de mato abaixado no peito q possibilitava a passagem de apenas uma pessoa. Daqui em diante o avanço seria na raça, conforme disse! E lá foram o Fiori, Élcio e Moises na dianteira, rasgando mato no peito, enqto o resto arregaçavam mais o mato pros retardatários. Foi já logo neste trecho q rasguei fundo o dedo numa taquara espinhenta q ricocheteou com força ao ser afastada bruscamente. Pra estancar o sangue não me restou opção senão improvisar um band-aid com a própria fita adesiva com q vínhamos sinalizando o caminho ate então. E diga-se de passagem, quase td mundo fez uso dela pra remendar cortes, perfurações e dilacerações, inevitáveis em td jornada. Percorríamos visivelmente uma crista em suave declive sentido sudoeste, q depois ascenderia um pouco ate encontrar a base do enorme e abaulado Tapapuí, q por sua vez desvia da crista principal quebrando pra noroeste. Em tempo, o Tapapuí detém dois cumes: o principal no extremo noroeste da montanha, de 1438m e outro, mais próximo da crista principal, chamado de 00B por corresponder supostamente a este azimute.

Contudo, ao percorrer dois terços de crista resolvemos cortar caminho descendo a encosta rumo o pto mais alto do vale q divide o Esporão das encostas mais próximas do Tapapuí. Deixamos os campos de macega pra mergulhar outra vez na mata fechada, onde transitar entre arvores retorcidas e as bromélias era relativamente mais fácil. Após chafurdar alguns brejos e cruzar poças de água parada fomos atraídos pelo som inconfundível do precioso liquido correndo em meio a um leito de pedras e lajotas ensaboadas de limo. E assim chegamos nas nascentes do Rio Taquari sendo recebidos por uma pequena cachoeirinha q refrescou nossos rostos suados. De agora em diante bastava apenas seguir rio acima, saltando as pedras de uma margem à outra ou escalaminhando as encostas mais íngremes sem gde dificuldade.

Continua…
Texto de Jorge Soto e fotos de Jorge Soto e Moisés Lima
http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html
http://jorgebeer.multiply.com/photos

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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