Mera Peak – Parte 6

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Às 8 da matina, o sol sai detrás das montanhas e banha com sua luz dourada o vilarejo.

Leia a quinta parte do relato

Veja o Mera Peak no Google Earth atraés do Rumos!

Os tetos das barracas exibem uma fina película de neve que caiu durante a noite. Incrível a quantidade de corvos planando sobre a vila. Tenho a impressão de que aqui, em Khare, há mais dessas aves do que nas outras aldeias. Seus bicos, longos e aduncos, singram o ar perpendiculares ao solo. Diligentes, os pássaros de plumagem negra e luzidia voam de seca pra meca em busca de restos de comida. Me dou conta, então, de que os corvos atuam como lixeiros, já que se alimentam de toda a sorte de detritos alimentícios deixados não só pelos porters como por nós turistas. E quer coisa mais chique do que esses lixeiros aéreos dando rasantes elegantes pra pegar o alimento deixado ao léu? Será por isso que os nepaleses nem se dão ao trabalho de observar certos cuidados de higiene, já que os corvos fazem aquilo que eles deveriam fazer? Boa pergunta, Beazinha, boa pergunta!! Ponto pra ti!!

Após o desjejum, subimos Pasang e eu (Nima nem Carol nos acompanham porque segundo informação de Carol, a dedicada enfermeira, ele, gripado, passou a noite febril) a crista duma montanha para atingir seus 5.200 m. A trilha é de tirar o fôlego mas necessária à aclimatação. Paro duas vezes…uuufaaa, bem puxada essa ladeirinha, urge descansar as pernas. Pasang senta numa pedra enquanto espera que eu recupere as forças. A altitude nem cócegas faz no meu bom guia que caminha em ritmo, enganadoramente, vagaroso. Na verdade, Pasang não desperdiça suas energias a exemplo de Nima, que fica se exibindo pra Carol, disparando na frente. O baixinho adora bancar o montanhista fodão, dando largas passadas com aquelas suas pernocas curtas e grossas. Não à-toa, o tampinha está gripado. É isso que dá gastar energia desnecessariamente. Quando crescer, quero ser uma sherpa igual a Pasang!!

Avisto, tremulando ao vento, bandeirinhas de orações budistas, anunciando, graças a deus, a chegada iminente ao cume do “morro”. A visão daqui de cima é muito mas muito bacana mesmo: no vale, ao fundo, as imponentes Chat Pate e Kusum Khang, abaixo, espalhadas ali e acolá, manchas verde-turquesa indicam a existência de vários pequenos lagos cuja coloração vibrante espanta um pouco a monótona tonalidade acinzentada dos maciços rochosos. À frente, uma montanha em forma de ostra exibe uma boa quantidade de neve cobrindo suas encostas estriadas. E o céu dum azulão azuladésimo!! Estou com muito apetite no almoço. Também pudera! Depois dessa pernada, comeria qualquer coisa que me servissem. Entretanto, Nara não deixa a peteca cair. Com seu cardápio variado, nutritivo e saboroso, serve sopa acompanhada dum pão frito e adocicado. Receita tibetana. Lembra a massa dos nossos bolinhos de chuva apesar do formato diferente.

Estou preocupada. Não muito mas o suficiente pra tomar um antiinflamatório: meu pé direito, desde ontem, acusa dor. Creio que é tendinite de esforço. E o nariz não pára de pingar embora já não esteja mais obstruído. Minha voz levemente fanha denuncia que estou ainda resfriada. Desde a reprimenda em Tangnag, Nima vem me saudando com uns ois apertados. Do tipo “sou obrigado, fazer o quê?” Hoje, porém, pra minha surpresa se faz simpático. Não tardo muito a descobrir a razão de tão agradável comportamento. Quer saber se aceito ficar mais um dia aqui em Khare. Um dos motivos seria evitar as 50 pessoas que irão tentar cume no mesmo dia de nossa ascensão. O segundo seria pra se recuperar um pouco da gripe antes do ataque ao Mera Peak. Como não poderia deixar de ser, concordo, é claro. Se bem que minha adesão à proposta não seja por motivos nobres, tipo peninha dele. Não quero, caso eu faça cume, encontrar muvuca semelhante à que encontrei quando alcancei a cumbre do Huayna Potosí. Meio decepcionante o congestionamento no topo da montanha boliviana. Mal dava pra se mover ou tirar fotos sem que algum cabeção se pusesse à minha frente, sacando fotos também.

O dia, que estava esplêndido, começa a nublar após o almoço. Lentamente, as nuvens vão se acumulando. No início, filtram, sem muita parcimônia, os raios solares, até que não resistem e toldam por completo céu e sol. O resto da tarde permanece cinzenta e fria, muiiiito fria. Um sacrifício deixar o calor do saco de dormir e caminhar até a casinha pra fazer xixi (e foram três as minhas idas ao infecto banheiro). Sem nada para fazer, prossigo na leitura dos Ressuscitados. Cansada de ler, resolvo dar um rolê pra espairecer as idéias e estender as pernas. Sentados em frente dum armazém, um casal. Ele exibe um ar cansado, desanimado. Não resisto e lasco a inevitável pergunta quebra-gelo “where are you from?” Ele é escocês, de Fife!! A cidade natal de Ian Rankin, autor do policial que há pouco lia na barraca. O homem conhece também alguma coisa da obra de seu conterrâneo. Infelizmente, ambos não conseguiram fazer cume. Ele não esconde sua frustração pelo insucesso. Ela, nem um pouco abalada, cuida de consolá-lo.

Três montanhistas que lograram êxito na subida ao Mera acabam de chegar à aldeia. Suas fisionomias satisfeitas de vencedores incomodam um pouco o homem, reação que não me passa despercebida, já que observo atentamente a cena. Ele encaçapa sua inveja e, generoso, escuta atento o relato dos conhecidos. Reflito que este homem também não deixa de ser um vitorioso ao iniciar um processo de elaboração de sua frustração e inveja. Afinal, ele tem todo o direito de se sentir chateado durante um tempo. Cheio de esperança, gastou dinheiro, enfrentou uma viagem cansativa pra, no final, não alcançar o cume do desejado Mera Peak, é de doer mesmo!!

Nara, uma versão masculina de Cherezade na culinária, continua encantando meu paladar ao apresentar na janta um pastel recheado com verduras (lembra aqueles rolinhos chineses com repolho). Nima, durante a refeição, informa que seguirá o roteiro original. Amanhã, então, simbora pro acampamento-base do Mera Peak. Ao me dirigir pra barraca, o brilho da lua crescente destaca-se discreto em meio ao céu estreladíssimo. Límpido, o firmamento encontra-se despido de quaiquer rastros de nuvens que o encobrira a tarde toda. E, mais uma vez, escuto o troar duma avalanche vinda das bandas do Mera Peak. Será um sinal? E de que tipo? Daqui a dois dias vou saber. Até lá, só resta aguardar…

Indecisões no acampamento-base do Mera Peak

Dois porters depositam junto à porta da barraca chá e água quente preu lavar mãos e rosto. Um deles anuncia naquele canhestro sotaque inglês “wake up tea, Bitriz”. Às vezes, sinto umas fisgadinhas de culpa já que não estou acostumada com tanta mordomia. Tanto é verdade que me valho apenas de faxineira. E não faz muito – coisa de dez anos atrás – pegava pesado no serviço doméstico. Os porters, aparentemente, não se mostram descontentes em servir aos turistas. Ao contrário, se somos super valorizados e mimados é porque o turismo tornou-se, com o boom da escalada e do montanhismo no Himalaia, a principal fonte de subsistência duma grande parte da população nepalesa. A grana das gorjetas mais o salário que as agências lhes pagam garantem uma renda extra às suas atividades usuais exercidas fora da temporada turística.

Faz muiiito frio quando deixamos Khare. Na manhã outonal, bóiam, no céu dum azul ainda pálido, nuvens que não empanam em nada o brilho alegre dos raios solares. O vilarejo, à medida que ganhamos altura, torna-se mais e mais pequenino. Um pontinho inidentificável até que some de vez. Árduo o ziguezagueante aclive inicial que leva até o Mera La. Palmilhando uma trilha de chão batido, a pendente, cuja inclinação é bem acentuada, atinge 40º. Minha respiração torna-se pesada e arfo bastante. Paro pra descansar vez por outra. Pasang, agora na frente, pacientemente, espera por mim, sentando-se nas pedras. Nima, até então indeciso sobre se iríamos pernoitar ou não no primeiro acampamento-base do Mera Peak, situado um pouco antes do passo, decide, quando ali chegamos, prosseguir viagem até o segundo campo-base onde pousaremos. Eu nunca vi guia tão indeciso quanto ele. Bem possível que tenha sido Carol que o fez mudar de idéia, talvez porque não tenha se agradado do lugar. Vá saber!! E eu refém dos caprichos desses dois….arre!!

Antes de continuarmos a pernada, fazemos uma breve pausa em frente a única construção ali existente. Eis então que Nima, se aproveitando duma pergunta que fiz acerca duma montanha, resolve demonstrar seus “conhecimentos” da língua portuguesa, aprendidos com Morgado, guia brasileiro que mora na Ásia e com quem ele trabalha há oito anos. Mais pra impressionar Carol do que pra me agradar, larga uma ou outra palavra em português….deus, please, dai-me forças, porrr fa-vorrr, pra agüentar tanta boçalidade!!

Ultrapassado o passo, o areal que forrava a trilha é substituído por neve consolidada, já que acabamos de ingressar no glaciar Mera. Como são poucos os trechos resvaladiços, desnecessário o uso de crampons. Assim, continuo calçando botas de trekking. E para segurar a onda nas zonas mais escorregadias, suficiente o apoio dos bastões. E, no panorama espetacularmente branco, poucas são as rochas que se encontram desnudas de neve, tanto assim que se destaca em tão alvo cenário um paredão rochoso cinzento-claro em cuja tonalidade sóbria intrometem-se atrevidos pigmentos ferruginosos. E durante um tempo, basta olhar pra trás que continuo a enxergar as já conhecidas montanhas Kusum Khang e Chat Pate em cujos flancos e topos pairam nuvens encobrindo-os.

A até então familiar paisagem é definitivamente sepultada de meu campo de visão na próxima curva da trilha, restando apenas a imensa brancura do glaciar Mera. É muito lindo e impactante o contraste entre a neve e o azulão do céu. Tenho de confessar, a bem da verdade (não sei se a sinceridade, às vezes, é uma virtude ou defeito dos verborrágicos), que passado um tempo se torna monótono tal cenário. Nenhum verde pra descansar a vista, só aquele branco refulgente que machuca os olhos pra caramba. Tem de se ter bastante tolerância visual pra agüentar um branco tão intenso! Fendas e mais fendas acumulam-se em ambos os lados do estreito trilho cavado na neve por milhares de pés durante a temporada. Nenhuma, porém, que inspire cuidado já que a trilha passa bem ao largo delas. Ao longe, enxergam-se os vultos de turistas e porters que se dirigem ao acampamento-alto, localizado atrás das poucas rochas que conseguiram escapar do pudico manto de neve que envolve tudo num raio de algumas dezenas de quilômetros.

Depois do passo, embora o trajeto seja na neve, a pernada torna-se bem mais fácil. O aclive não é tão empenado quanto aquele trilhado sobre o areal. Minha respiração torna-se compassada, sem grandes sobressaltos arrítmicos. Encontro um italiano que mal sabe falar inglês. Desassombrado, passa por mim sorridente, todo feliz. Tem cara de quem vai fazer facilzinho o cume do Mera. Caminha a passos largos. Até parece um sherpa!! O trajeto até o segundo acampamento-base do Mera não leva mais que 3 horas e 30 minutos, tanto que, passados 15 minutos do meio-dia, alcançamos o lugar onde iremos passar a tarde e parte da noite.

No lugar, apenas uma casinha coberta por um lona azul que faz de telhado. Após o almoço e um breve descanso, Nima me convida pra ir treinar numa parede de gelo ali perto. Informo-me com Pasang se, de fato, é necessária tal atividade, se é imprescindível pra alcançar o cume da montanha. Meu sereno guia faz um sinal negativo com a cabeça. Contente de me livrar do exercício físico – ah, estou preguiçosa, confesso…..ou cansada, como quiserem -, limito-me a curtir a escalada de Pasang até o topo do paredão de gelo pra fixar a corda, de modo a permitir que Nima, Carol e Nara subam jumareando até lá. Nima, como não podia deixar de ser, resolve fazer seu showzinho. Que nem um pavão, – essa criatura, santo cristo, é dum exibicionismo doentio!! – resolve mostrar que ele é o tal: usa apenas as piquetas pra subir o muro de gelo. Ele quase bate palmas prele mesmo quando retorna. Canso de tanta chinelagem e vou embora. Qual não é minha surpresa, quando vejo, um pouco mais adiante, olhando através dum aparelho parecido com um telescópio, quem?! O glaciologista francês que conheci em Khare!

Vou ao seu encontro. Ele não se mostra surpreendido ao me ver. Já sabia pela nossa conversa em Khare que eu viria pra cá, destino inevitável de quaisquer turistas que escolhem o trekking até o Mera Peak. Conversamos um pouco, não muito. Como está trabalhando, não quero atrapalhá-lo. Conta que chegou há três dias com a missão de consertar um aparelho de medição meteorológica. Mostra-se satisfeito porque logrou êxito na tarefa. Comenta que dois de seus colegas, que já se encontram aqui há dois meses, quase todos os dias vão até o Mera em 2 horas e 30 minutos!! Puxa vida!! Que fôlego esses homens têm!! E morro de inveja deles!! Taí uma profissão que me interessa. Na outra encarnação, quero ser glaciologista, je veux, oui oui, je veux!!!!

Simpático, oferece chá e UM biscoito (generoso, não?). Despeço-me e vou fotografar duas montanhas lindas que ficam na frente de minha barraca: Naulakh Peak, com sua rampa suave coberta por um impecável glaciar, é um xodó! Já Chomi Lingma, não tão atraente, se destaca, contudo, devido ao seu formato quadrangular. Nima, cada vez mais rendido à forte influência da cultura inglesa – leia-se de Carol -, segue fielmente a cartilha hamletiana do "to be or not to be". E partilha, submetendo à aprovação popular (eu e Carol, evidentemente) seus dois planos: 1) ataque na madrugada ao cume do Mera, 2) ou subida, amanhã, até o high camp onde dormiremos, partindo na madrugada do dia seguinte até o topo da desejada montanha. Como se fosse um jogo de cartas marcadas, nos inclinamos pela opção número um. Agora, 17 e 30, não bate sol algum na zona onde estamos acampados. Somente as montanhas, situadas à ocidente, usufruem da luz carinhosa dos últimos e renitentes raios de sol. Sinto um frio de doer os ossos!! Também pudera, encarapitada a 5.400 m acima do nível do mar, o que mais eu poderia esperar? Calor nigeriano? Hahahaha!! Até parece, né, Beazinha?!

E não é que a lua escolheu, como nascedouro para seu incipiente crescente, o lado direito do Naulakh Peak?! Será isso um bom sinal? Espero que sim! E um zum zum excitado, que mais se intui do que se escuta, paira no ar. É o grito silencioso do “queremos atacar, enfrentar, desafiar, enfim, ter sobre nossos pés o cume do Mera Peak!!”

Continua…

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