Na Trilha dos Cachorrões

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Em 2007, depois de escalar o Ferraria num só ataque, partindo do Discoporto e percorrendo toda a crista leste para alcançar o cume e descer pela rota clássica até a Picada do Cristóvão retornando pela Estrada da Conceição, juramos de pés juntos que jamais repetiríamos a experiência. Mas o tempo passou cicatrizando as feridas e quando finalmente só restaram às boas lembranças foi anunciado o fim dos trabalhos de abertura de uma trilha percorrendo esta mesma aresta. Que cachorrada!

A saudade das magníficas panorâmicas oferecidas pela crista nos fez quebrar o juramento e ir conferir de perto o trabalho dos “Cachorrões da Serra” naquele pedaço do paraíso. Menos previdentes ou mais autoconfiantes do que éramos no passado começamos a caminhar as 8:10h pela Estrada da Conceição em pleno trabalho de reconstrução. A estrada está sendo limpa e aplainada, bueiros foram reinstalados e não duvido que as pontes sejam em breve também reconstruídas para uma provável parada de manutenção nas torres e linhas de alta tensão.

A trilha se inicia a meio caminho entre as duas primeiras pontes, num barranco de dois metros a esquerda da estrada, 100 metros adiante teria começado nivelada com a estrada a pouca distância de um córrego que desce a montanha, muito útil para o suprimento do precioso líquido que se fará necessário nas próximas e árduas horas de escalada. Segue subindo pela encosta de vegetação intocada, ao lado de palmeiras Jussara implorando por uma panela, e rapidamente ganha altitude até um primeiro mirante onde se vê o Discoporto logo abaixo, ao lado do Rio Cotia e então nos conscientizamos da insanidade em partir daquele lugar para o ataque de 2007. A encosta é praticamente vertical enquanto a linha estabelecida pelos Cachorrões é suave e agradável até encontrar alguns barrancos instáveis e um túnel de taquaras que certamente serão desviados no futuro com o terreno melhor explorado.

Ao encontrar a linha de cumeada repisa sobre os nossos rastros numa seqüência inevitável que oferece as mais belas panorâmicas de toda a Serra do Ibitiraquire. Vistas magnéticas que escravizam o olhar e obrigam à freqüentes paradas. Só o Paulo Marinho disparou 660 vezes sua Canon nesta empreitada que somadas as do Elcio Douglas ultrapassam de 1000 o número de fotografias registradas.

A crista se afunila numa curva graciosa e encontra o paredão vertical de rocha que cerca o Ferraria como um muro ciclópico. Aqui a nova trilha encontrou um traçado inédito seguindo alguns poucos metros a direita de onde passamos, escalando degraus úmidos, sujos e barrentos que certamente desabarão mesmo com uso esporádico e obrigará a instalação de algum artifício. Em todas as três investidas anteriores o lance foi vencido escalando uma protuberância rochosa ligeiramente à esquerda, limpa e segura que requer não mais do que três ou quatro movimentos bastante precisos apesar de sua excessiva exposição ao adjacente precipício de 600 metros que exige um pouco mais de sangue frio. Depois do obstáculo adentrávamos num bosque inclinado e seco que se estende até o ponto de chegada da via “Deus e o Diabo”.

O novo traçado apresenta a vantagem de percorrer a base do paredão, na horizontal, até adentrar numa pronunciada falha geológica por onde escorre um refrescante veio d’água. A grota é muito bonita e proporciona uma agradável quebra no ritmo da escalada antes de adentrar no bosque. Depois de cruzar a vala no final da falha ficaria interessante desviar a trilha não mais do que uma dezena de metros à direita para que percorresse a cabeceira do imenso paredão da face norte para melhor apreciar o vale abaixo e a imponência da pirâmide final.

A escalada do último trecho se inicia depois de uma curta rampa barrenta com inclinação acentuada que vaza o teto arborizado e percorre em linha reta num paredão coberto de barro e vegetação delicada que lembra bastante a face sul do Tucum e terá o mesmo futuro se não for rapidamente retificada por zig-zags que dispersem a água diminuindo a força das enxurradas. A trilha termina no ante-cume sul e as 15:00 horas já estávamos assinando o caderno de cume.

Subimos sem nenhuma pressa e estimo que gastamos muito mais de uma hora com paradas para fotografias, coletar água e apreciar a paisagem. Depois de outra hora inteira jogando conversa fora debaixo da ventania, as 16:10 sacudimos o esqueleto montanha abaixo com uma longa parada no degrau para apreciar a algazarra das andorinhas sob a luz acobreada do final de tarde que valorizava entre sombras alongadas toda a textura da face norte do conjunto do Pico Paraná.

Trabalho de “gente grande”, parabéns “cachorrada”! O trocadilho é inevitável.

Fotos do Elcio Douglas: https://picasaweb.google.com/116769642690798762418/FERRARIAFACELESTEDEATAQUE

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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