No dia em que eu morrer

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A montanhista Isabel Suppé escreveu o texto abaixo em protesto à exibição de uma foto do corpo do montanhista indiano Malli Mastan Babu, que faleceu no final de Março deste ano no vulcão Três Cruces, Chile, após ser atingido por uma tormenta anormalmente forte, a mesma que gerou enchentes em cidades no meio do deserto do Atacama.

Tal foto em que aparece o corpo de Malli foi amplamente divulgado nos meios de comunicação e compartilhados em redes sociais. Isabel Suppé, que já quase perdeu a vida em um acidente numa montanha boliviana, num caso que ficou conhecido como “Touching the void feminino”, conheceu o montanhista indiano um pouco antes de sua trágica morte nos Andes.
 
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No dia em que eu morrer – Por Isabel Suppé
 
No dia que eu morrer, peço que meu cadáver não seja exibido no facebook, twitter, ou youtube. Peço que ninguém compartilhe imagens de meus restos mortais e nem curta eles. Pelo nome da decência humana, pelo bem de meus familiares e amigos, peço, suplico, que ninguém as venda aos meios de comunicação.
 
Um pedido redundante? Qualquer ser humano ético pensaria que sim. No entanto, não poucas vezes, a índole sagrada da morte é profanada quando uma vida termina durante o exercício de esporte extremo.  A já midiática prática do alpinismo fica ainda mais sensacionalista quando a foto de um cadáver oferece uma suculenta carniça para os olhos de leitores carniceiros. 
 
Há apenas três semanas, estive sentada em uma pequena cidade argentina onde compartilhei um almoço e muitas risadas com meu amigo Malli. Comemos um churrasco e brindamos pelo futuro que parecia cintilar nos olhos estrelados dele. Falamos de montanhas e planos e mais planos de escaladas. Não sabíamos que o futuro de Malli não existia.
 
E isso é o que eu gostaria de me recordar de Malli: Sentado na pequena mesa rústica do camping de Fiambalá, disparando risadas que por sua vez revelava a brancura de seu sorriso em seu rosto escuro e bem humorado. Em menos de duas semanas, Malli estava morto. Uma terrível tormenta havia truncado sua vida nas alturas do vulcão Três Cruces.
 
Entre tristeza e incredulidade me agarrava na última imagem tão cheia de alegria que ele havia deixado. No dia seguinte, as coisas pioraram. Uma foto detalhada do corpo de Malli, despojado de seu sorriso começou a circular no facebook e youtube, nos meios impressos, e digitais. A obscenidade de alguém havia matado Malli pela segunda vez. Sua morte, sua solidão, seu desespero fora jogado fora quando liguei o computador e me deparei com uma imagem de um corpo sem vida que jazia sobre a neve num dos lugares mais solitários e gelados do planeta. Vi seu rosto e entendi que Malli sabia que ia morrer enquanto congelava entre os restos de sua barraca destruída pelo vento. Sua expressão desesperada me perseguirá para sempre, mas o ato de violência que implica na exibição de seu corpo no facebook, da forma mais vulgar imaginável.
 
No dia em que eu morrer, peço respeito. Peço decência. Peço piedade. Peço que meus restos não sejam exibidos nos meios sociais. Farei o que posso para morrer de velhice e nos braços de um ser querido, de uma morte pouco espetacular que não interessará nem ao facebook nem ao instagram nem a nenhum outro meio. Se meu desejo não se cumprir, peço que qualquer culpado de profanar minha morte seja julgado por seus atos, ainda que seja nada mais que no tribunal da decência humana.
 
Isabel Suppé
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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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