O Braço Feio do Azeite

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– E aí, alguém já subiu esse na Serra do Azeite?
Com esta pergunta acompanhada de foto publicadas no facebook começou de modo totalmente despretensioso a mais rápida decisão para escalar a montanha mais desconhecida que tenho notícia.

A foto tirada de um automóvel em movimento mostra um conjunto de montanhas escarpadas que de longe lembra um pequeno Marumbi por sua súbita elevação e verticalidade. Depois, com o acúmulo de comentários, descobri ser um dos poucos que desconhecia esta formação rochosa que chama a atenção dos que passam pela Régis Bittencout, BR116, na altura do quilômetro 516. Em resposta ao Johny (João Carlos de Andrade e Silva) surgem imediatamente vários viajantes que já haviam especulado sem sucesso sobre ela, mas também uma contribuição valiosa do Jorge Soto que enviou a carta topográfica da região.

Na noite seguinte, num jantar que reuniu os veteranos Arlindo Toso e Henrique Paulo Schmidlin (Vitamina) em torno de algumas garrafas de vinho, aproveitei para pedir informações e descobri que esta montanha também estava a tempos nos planos do mestre, mas pouco pode agregar ao que já sabíamos.

A semana iniciou tenebrosa com frio e chuva intensa, tornados derrubando postes e arvores, quebrando janelas e telhados e inundações em meia Curitiba, mas mesmo com tais expectativas desanimadoras o Vita me liga na segunda feira perguntado se o ataque estava confirmado porque também queria estar presente na empreitada. Na sexta feira o tempo se mostrava incerto e nada se tinha acrescentado ao nosso conhecimento sobre a montanha, mas a atração pelo desconhecido fez com que o Pedro Hauck pegasse o Johny as 5:00h, o Vitamina as 5:15h e as 5:30h da madrugada de sábado já seguíamos pela BR116 em busca da montanha “sem nome” na Serra do Azeite.

O céu encoberto por pesadas nuvens deixava poucas aberturas por onde o sol forçava passagem e ao estacionar numa parada de camioneiros nem conseguíamos ver as montanhas à frente, encobertas por espesso nevoeiro. A vilinha de beira de estrada imediatamente me trouxe lembranças de suas congêneres no interior da Bolívia amazônica, Coroico para ser exato, com suas pequenas vendas grudadas umas as outras, seus quintais com galinhas e outros animais caminhando livremente seguidos do extenso bananal que se perde na neblina da encosta. Imediatamente tratamos de obter informações sobre nosso destino, mas de concreto somente descobrimos que a montanha chama-se Braço Feio. Alguns locais subiram recentemente até o topo de um primeiro morro visto da estrada, mas não há notícia de alguma escalada até o cume.

Seguimos a pé pelo acostamento e adentramos numa rua de terra, assinalada no mapa, em busca de pilhas para o GPS no mercado local que estava fechado, mas no caminho conhecemos o “Pernambuco” que nos alertou sobre os perigos da serra, cobras venenosas e ataques de onça, mas queria falar principalmente da existência de ouro nas grutas e cavernas no alto dos morros. Por fim nos perguntou se estávamos armados porque um companheiro sempre atirava nos outros depois de descoberta as minas ou as panelas com o metal.

Deixamos o “Pernambuco” e sua sabedoria para trás seguindo em frente pela rua repleta de barracos e cachorros que vinham nos recepcionar com seus dentes arreganhados até que no último casebre vimos uma velhinha nos espionando por uma fresta aberta na porta e para ela pedimos informação. Falou-nos de uma trilha, de uma plantação de abacaxi nos morros e nos indicou outro morador que cuidava de uma roça mais adiante e era conhecedor das matas, mas no caminho identificamos uma bifurcação a esquerda seguindo na direção desejada e por ali fomos nos enfiando.

O Johny havia assinalado no mapa um rio que nasce perto do cume, desce no sentido norte-sul até um contraforte e vira para oeste até encontrar a estrada e segue em paralelo para a BR. Era uma rota dura, mas viável diante da falta de informações e nunca perdemos a esperança de encontrar uma trilha cortando a floresta. A estradinha abandonada cruza algumas cercas de arame farpado e afunda em brejos lamacentos para depois cruzar um riacho onde encontramos uma placa anunciando o começo do Parque Estadual do Rio Turvo. Do lado oposto nascem várias trilhas intercaladas por clareiras de desmatamento que solenemente desprezamos para nos manter fiéis em acompanhar a direção geral apontada pelo rio demarcado no mapa.

A trilha se mostrava cada vez mais promissora apesar de inúmeras bifurcações fortes tentando nos desviar da rota. Percorríamos uma mata terciária com vestígios recentes de extrativismo. Encontramos não poucas toras cortadas a moto serra, algumas já abertas em tábuas e outras a espera do mesmo destino até que atingimos uma zona de transição onde já havia espécimes da mata nativa e por fim uma grande clareira aberta na floresta por onde o sol iluminava a terra. No chão irregular da clareira estavam plantados os abacaxis, ou ananás selvagem e algumas bananeiras ao lado de um abrigo estruturado com bambus e coberto por folhas da palmeira guaricana. Dentro um fogão de chão e outros vestígios de ocupação temporária para manutenção do roçado.

Em frente à mata atlântica tornava-se magnífica em toda sua majestade, intocada pelos séculos, preservando suas imensas arvores nativas disputando a luz solar no alto dossel enquanto bromélias, orquídeas e cipós preenchiam espaços intermediários. A trilha continuava na agradável penumbra por dentro do bosque, paralela ao rio apesar de bem distante e sempre subindo em direção a crista que nos guiaria ao cume.

O progresso da caminhada era evidente e rapidamente alcançamos o selado que dava acesso à face leste das montanhas onde encontramos nova clareira na encosta cultivada com ananás selvagem, bananeiras e outra tapera, esta coberta com telhas de fibrocimento na nascente do Rio Azeite. A trilha é o acesso a estes roçados no meio do sertão e agora na crista acabou-se a moleza e nos preparamos para enfrentar terreno virgem.

Em fila indiana iniciamos a escalada pelo barranco da crista desatando nós de cipós unha-de-gato, moitas intrincadas de taquaripoca e macega duríssima. Com apenas um facão para abrir a frente de avanço, seguimos nos revezando em turnos de quinze minutos. E como passava rápido o turno dos companheiros e demorava horas para terminar o próprio! Guiados apenas pelo terreno e pelo GPS de um telefone celular que algumas vezes demonstrava nossa posição e o ponto onde queríamos chegar, mas a intervalos alguém subia numa arvore para melhor orientar a marcha.

Barrocas intermináveis varando mato, agarrando raízes e troncos raquíticos cobertos de musgo. Em determinado momento subimos pelas lajes de um riacho que rapidamente desapareceu na encosta, noutras aproveitamos descidas da água de chuva e não poucas vezes nos embrenhamos em trilhas dos catetos com a desvantagem de serem muito baixas para rastejar. De homens não encontramos nenhum sinal, marca ou qualquer vestígio acima do selado. A mata perde a força com a altitude e a taquaripoca domina totalmente o terreno e pensei em recorrer à técnica de deitar as taquaras com uma comprida vara de pau, mas não encontrei nenhuma adequada para o serviço e quando consegui a mata já havia se recuperado e ela não foi mais necessária.

Do alto de uma arvore o Johny avistou os campos que antecediam a pedreira do cume a distancia de vinte metros e tudo pareceu resolvido, mas passado algum tempo o Vitamina reclamou que aqueles vinte metros eram intermináveis e colocou em dúvida a precisão do observador. Por felicidade e destino desviamos dos campos e chegamos direto nas grandes pedras quando nos separamos para encontrar uma forma de subir. O Johny e o Pedro tentaram um contorno pela esquerda enquanto eu e o Vitamina nos aventuramos na vertente à direita até que também nos separamos com o Vita explorando uma formação mais a direita por um vão nas pedras que tudo indicava encaminhar-se para o cume. Tomei a direção oposta no que parecia levar a um mirante, mas que subiu ainda mais e acabei por escalar o verdadeiro cume daquela montanha. Logo atrás vieram o Pedro e o Johny e muito depois o Vita que se demorou explorando a área e parando para o almoço.

Empoleirados com os pés balançado no vazio podíamos ver todo o trajeto de subida desde as últimas casinhas da estradinha, mas não a parada de caminhões em que estacionamos o carro por ficar oculta atrás de um morro. Isto causou certa estranheza porque em teoria o cume é visível da rodovia, mas isto ficou esclarecido em pouco tempo. As nuvens estavam represadas pelos cumes, avançando e retrocedendo com as rajadas de vento que se alternavam de leste e de oeste. A neblina se mantinha próxima e espessa o suficiente para encobrir a paisagem ao norte e do nada apareceu outra montanha ao nosso lado.

Poucos metros mais alta e calculamos não menos de uma hora para vencer a grota que nos separava, adentrar os campos e alcançar o cume coberto de mata. O Vita já estava cansado e demonstrou pouco entusiasmo em desprender tal esforço para galgar uns poucos metros, mas o velho guerreiro é de aço! Descemos do puleiro para mergulhar na grota novamente abrindo espaço pela macega. Não uma, mas duas lombadas cruzaram nosso caminho antes de escalar o barranco e despontar no campo que de campo nada tinha. Pura quiçaça dura e espinhosa que o Pedro foi vencendo nadando de braçada na capoeira da altura do peito.

No cume arborizado abrimos uma ínfima clareira para descansar os ossos e o Johny procurou por um mirante ao norte que só conseguiu escalando uma arvore na beira do precipício. A visão estonteante recompensou todo o esforço da escalada e pudemos finalmente ver de perto os paredões a prumo que aparecem da estrada, a crista afiada e as grotas dantescas. Depois de sete horas de trabalho duro pudemos finalmente descansar no alto dos 1.138 metros no Braço Feio da Serra do Azeite, detonar o que restou de comida e o Johny chegou até mesmo a tirar um bom cochilo com a cabeça apoiada na mochila.

Discretamente comemoramos mais este cume por desconhecer que o Vitamina completaria 83 anos na segunda feira, sete de outubro. Com esta informação certamente teríamos levado um bolo, velas e alguns extintores de incêndio para apagar a fogueira.

As 16:00 horas iniciamos o retorno aproveitando o rastro que deixamos na subida, muitas vezes orientados pelas marcações deixadas pelo Vitamina que esticou um carretel de linha nas passagens mais duvidosas e rapidamente alcançamos a trilha no selado. Na clareira dos abacaxis encontramos dois cachos de banana recém cortados que não estavam ali na subida e tivemos a certeza que estávamos sob vigilância constante, mas nada ouvimos além do canto dos pássaros. Em duas horas e meia de caminhada retornamos a vilinha ainda com muita claridade e encontramos um dos amigos do “Pernambuco” sentado de papo com um vizinho na garagem de uma casa. O assunto da semana naquele povoado, sem dúvida, será sobre os quatro loucos que escalaram a montanha, mas não íamos deixar ficar apenas nisso. Sem pestanejar, o sacana do Vitamina imediatamente para ele se dirigiu:
– Você estava certo camarada, encontramos ouro nas pedras lá em cima. As pepitas brilham dentro das grutas escuras, mas não tanto que valha o trabalhão para arrancá-las de lá.

Não duvido que já no domingo aquelas montanhas estivessem coalhadas de caipiras com baldes e picaretas atrás do vil metal causador da sanha assassina que destrói as mais sólidas amizades como alertou o sábio “Pernambuco”.
 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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