O DNA das Travessias

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Uma travessia é coisa fisicamente muito simples, basta iniciar a caminhada em um ponto qualquer do mapa e terminá-la em outro, preferencialmente bem distante do primeiro, mas montanhismo não é um esporte qualquer. Montanhismo é antes de tudo uma filosofia e então as coisas se complicam. Aos que discordam aconselho parar esta leitura e investir suas energias na Corrida de Aventura.

Apesar de muitas vezes contraditório e abrigar seres com egos maiores do que as montanhas que escalam, o montanhismo é um exercício onde a cooperação e o companheirismo sempre tende a se sobrepor à competição pura e simples. As informações são compartilhadas e os pares se incentivam a repetir uma nova via aberta na rocha, caminhar por uma trilha recém descoberta ou resgatar do ostracismo aquela rota pioneira por muitos já esquecida.

O montanhismo é antes de tudo uma experiência da alma que sempre almeja novos horizontes, dos olhos que anseiam por novas perspectivas, da mente em busca de mais conhecimentos e do ser procurando intensamente se encontrar. É um esporte vagaroso onde o corpo sofre para regozijo da alma muito mais do que pela fugaz descarga de adrenalina na corrente sanguínea.

As verdadeiras travessias só se completam quando chegamos ao destino com a alma e a mente transformada pela nova experiência. Neste processo importa menos a distância percorrida ou a velocidade alcançada e muito mais a qualidade das paisagens, a natureza dos obstáculos e principalmente a camaradagem entre os participantes.

Na Serra do Mar paranaense, das muitas travessias possíveis, temos algumas já consideradas clássicas como a Alpha-Ômega e a Ciririca-Graciosa que não podem faltar nos currículos mais completos. Ambas com desafios diferentes entre si, mas igualmente complexos e com algumas variantes que podem se ajustar à disponibilidade de tempo, época do ano ou preparo físico de seus desafiantes.

Na primeira as dificuldades se concentram na orientação, agora facilitada em muito pela popularização do GPS, na mata fechada e hostil que encobre os rastros na rota pouquíssimo percorrida, nas condições meteorológicas quase sempre adversas e no espírito contraventor para infiltrar-se numa área considerada intangível, assumindo os riscos de se ver enquadrado na esdrúxula legislação ambiental ao do nada aparecer na sede do parque ou dele sumir sem deixar vestígios.

A Ciririca-Graciosa é mais completa nos seus desafios e mais exigente quanto à qualidade e experiência de seus pretendentes. Percorre praticamente todos os ecossistemas existentes na região serrana, dos cumes mais salientes as grotas mais sombrias, campos alpinos, mata de galeria, florestas fechadas, bosques fantasmagóricos, rios, cachoeiras, cânions e corredeiras, trepa mato e trepa pedra, tudo com muita fartura.

Há outras menos famosas, mas igualmente interessantes como a Travessia da Farinha Seca que apresenta desníveis vertiginosos e paisagens alucinantes da Casa Garber até o Morro dos Macacos e talvez por contraste se torne monótona dali ao Morro do Balança onde recupera toda a magia na tensa descida até o Rio Ipiranga.

Travessias no Ibitiraquire são muitas e de beleza inigualável, mas nada supera a paisagem e os desafios da travessia da serra por cima do Pico Paraná descendo ao litoral pela face escarpada do Ibitirati. Numa mesma e contínua rota se juntou toda a beleza da aproximação ao tradicional PP para depois despencar pela verticalidade absoluta do Ibitirati e assim do ponto mais elevado da região sul descer abruptamente ao nível do mar passando por mirantes estonteantes. É delas a mais curta, a mais complexa e a que mais exige do físico e da mente. Impossível sair dela sem a alma lavada pelas mais puras emoções.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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