O Fantasma no Glaciar Iver – Final

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Tateava feito cego entre grandes pedras quando ouvi um chamado a direita e vi uma pequena luz tremulante, e prá lá fui. Encontrei o caminho uns cem metros acima do ponto luminoso e segui para o alto no frio mais atroz. Não tardou nada para Jonhy me alcançar no meio das morainas e as primeiras luzes da alvorada nos encontraram nas proximidades do destruído refúgio Agostini (4680m). Esperamos o Hilton e o Luiz na sombra gelada, mas zarpamos assim que chegaram para não congelar por ali mesmo.


Entramos no famigerado acarreo onde a cada dois passos pra cima se escorrega um para baixo e a subida se torna muito lenta e cansativa. No alto do acarreo a trilha segue muito próxima do glaciar a direita de um grande afloramento de rocha maciça. Da base do glaciar Colgante surge uma figura solitária escalado com excepcional desenvoltura e em pouquíssimo tempo passa ao nosso lado como se fossemos lesmas. Reparei que não carregava sequer um piolet apesar da grande inclinação e seus grampons não se afundavam no gelo. Subia em grande velocidade, sem nenhum esforço aparente e parecia flutuar sobre a superfície congelada. Vendo sua eficiência não pude me furtar a constatação que não passava de zero a esquerda naquele lugar.

Nossos caminhos se separavam ali e a figura continuou seu rumo sem tomar conhecimento de nossa presença. Em nossa lentidão viramos a esquerda e contornamos a rocha por passagens bastante expostas para seguir numa travessia em diagonal por uma rampa semi-congelada até um portozuelo banhado pelo sol e já cercado pelo glaciar Iver. Nos sentamos no chão forrado de pedregulhos para esperar o Hilton e o Luiz enquanto podíamos avistar ao longe a estranha figura se aproximando do cume com velocidade impressionante. Ao calçar os crampons percebi que o solado da minha bota estava se descolando em vários pontos. Eram pequenas falhas de continuidade, mas não deixava de ser preocupante. Seguimos em frente caminhando pela borda do glaciar até uma elevação onde encontramos a Pirca Inca (5300m) que em 1954 foi descoberto a múmia de um menino indígena perfeitamente preservado após 500 anos de abandono.

Explorei demoradamente o sítio arqueológico enquanto o Jonhy atravessava o glaciar e quando me decidi a segui-lo vi que o escalador solitário saia do Colgante e se dirigia diretamente a mim na borda do Iver. Aproximou-se rapidamente e parou na minha frente sobre o gelo. Conversamos demoradamente sobre assuntos diversos e ao se despedir me alertou para retornar antes das 14:00 horas. Enquanto se afastava tranquilamente como se estivesse passeando no gramado de uma praça ainda reparei que os dentes dos seus crampons nem penetravam na superfície do gelo, daí veio a minha surpresa, mal dei alguns passos glaciar adentro afundei na neve fresca até os tornozelos. Fiquei tão abismado que fotografei meus pés enterrados no glaciar, não acreditei estar tão pesado e procurei pontos melhores para pisar, mas o efeito era sempre o mesmo e então caminhei sobre as pegadas do Jonhy para poupar energia.

Encontrei o Jonhy largateando ao sol sobre uma elevação com vista avantajada tanto do vale abaixo como do cume distante ainda uma boa hora e meia de caminhada. Acredito que estávamos a uns 5300 metros porque se percebia muito pouca diferença de altitude em relação ao cume (5424m) e a linha a seguir se tornava bem óbvia percorrendo uma série de pequenas colinas arredondadas com o glaciar a direita e o abismo a esquerda. Todos os obstáculos haviam sido vencidos e só restava agora uma caminhada tranqüila que se não fosse pela ondulação do terreno poderíamos chamar de plana. Mas o cume não estava perto, nesta altitude qualquer distância é muito longe.

Larguei meus ossos ao lado Jonhy e ficamos por ali a espera do Luiz e do Hilton que nunca chegaram. Via-se Santiago no horizonte em meio a uma névoa de poluição e toda a cordilheira coberta de gelo branco e brilhante. O sol foi lentamente aquecendo a carcaça e a ausência total de vento deixava o lugar muito agradável, bateu a inevitável lombeira e me virei de lado para dar aquela bodeada gostosa. Não sei quanto tempo permaneci adormecido, mas foi extremamente difícil me mover novamente. Conversamos bastante e o assunto se desviou para nosso estranho visitante. Já não lembrava do que havíamos falado além de sua última recomendação, nem da língua usada. Tinha a impressão que conversáramos em espanhol, mas também poderia ser italiano, inglês ou português tinha certeza que não. Para falar a verdade o encontro já parecia mais uma alucinação dupla do que realidade, era uma sensação muito estranha. E consultamos o relógio só para saber que havíamos pisado na bola, tínhamos esquecido nosso primeiro objetivo e o tempo que dispúnhamos não seria suficiente para alcançar o cume e retornar com segurança então nos abandonamos a mais pura preguiça, sem remorsos.

Como é boa a vida de vagabundo, sentados ao sol a 5400 metros de altitude com o mundo todo espalhado aos pés, jogando conversa fora e só esperando as horas passarem. E como demora passar as horas quando não se têm nada a fazer. Com uma boa garrafa de vinho e uns dois charutos dava prá ficar ali pra sempre, na toca do índio. Mas antes que estas idéias malucas contaminassem nossa pouca força de vontade, resolvemos “deitar o cabelo” e iniciamos a descida novamente com as pernas enterradas até a canela no gelo mole e agora também pastoso.

“Na descida todo santo ajuda”, ajuda a quebrar os chifres, isto sim. Atenção redobrada pra não despencar montanha abaixo feito um hamburger embalado em Gore-Tex. No acarreo descíamos esquiando pelas pedras soltas, envoltos uma nuvem de poeira até que minha bota foi pro saco. Subitamente perdi o freio e o joelho veio bater quase na boca, girei no eixo e caí de barriga fazendo uma pequena avalanche. Fiquei atônito sem saber o que de fato ocorreu, se houvesse caído de lado ainda estaria rolando e quicando em direção a base do Iver.  Esperei baixar a poeira para ver os estragos, não tinha nenhum osso quebrado, mas minha Nikon D100 tinha levado um baita cacete e o solado da minha velha Asolo 8000 estava preso apenas por um fio de cola no calcanhar. Era o fim de uma velha companheira, pouco fiel na verdade, que já tinha me deixado na mão outras vezes e avisos nunca faltaram, eu que solenemente os havia ignorados. Há tempos vinha sendo remendada com Super Bonder, desde a Bolívia em 2005 para ser exato.

Descer se apoiando num único pé deixou tudo mais complicado e a perna direita já não dependia do bastão apenas para o equilíbrio, agora era muleta também. Sem o solado a bota perde toda a aderência, mas ainda é bem melhor do que ficar descalço na moraina, então passei a máquina fotográfica para o Jonhy e fui me equilibrando até o acampamento base aonde chegamos ao final da tarde. Meia hora depois começou a nevar e na boca da noite a terra tremeu. Um pequeno terremoto no Olla Del Plomo, mas toda a cabeça da montanha havia explodido no sul do Chile, 1000 quilômetros para baixo.

 A manhã seguinte despontou bonita e ensolarada como todas as outras, mas agora tínhamos que suportar as cobranças do Luiz em relação a escalada no dia anterior.
– Você veio até aqui a passeio? – insistia feito um pica-pau.
– Claro que vim a passeio mesmo – retrucava o Hilton – e você, veio prá que? Ora vai se f….

Pensei até que iam se tramar na bordoada antes de chegar ao carro e ainda tínhamos que agüentar o Hilton afirmando que tínhamos visto um fantasma.
– Estávamos atrás de vocês e não vimos ninguém no glaciar, fotografou?
Procuramos nas máquinas alguma imagem que comprovasse o que afirmávamos, mas nada, nenhuma fotografia em mais de cinqüenta. Só meus pés enterrados na neve e o glaciar deserto. Gelo a perder de vista. Fantasmas não aparecem em fotos.

Desmontamos o acampamento e preparamos as mochilas para as mulas que chegariam as 10:00 horas conforme combinado e nada. Ao meio-dia, já cansados de tanto esperar, carregamos tudo nas costas e iniciamos o retorno debaixo do sol a pino. 30 kg em cada mochila e calor de quebrar coco.

Nunca xinguei tanto um cidadão quanto aquele muleiro tratante nos confins do Chile, pelo menos um palavrão por quilômetro.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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