O montanhismo contemporâneo

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Em uma coluna anterior, discuti a mudança do pensamento na relação do homem com a montanha até chegarmos aos tempos atuais, onde deixei uma pergunta: O que faz os homens subirem montanhas até hoje. Deixarei aqui minha opinião sobre as impressões que tenho do montanhismo contemporâneo.

Nunca podemos afirmar que uma mentalidade que existia em um tempo histórico anterior deixa de existir, ela sempre nos acompanha, pois as inovações não são para todos e em todos os lugares. Há sempre locais que ficam no tempo, mas o que vale não é mais o velho e sim o que de novo aconteceu. Se a novidade toma proporções maiores e passa a ser uma forma de pensamento generalizada, ou seja, do senso comum. Aí podemos dizer que este período histórico sofre uma tendência que influencia todo o modo de vida desta época.

As idéias de preservação da natureza não são novas, pois desde os anos 70 elas vêm sendo aceitas, mas somente nos dias atuais é que uma maioria pensa que vale muito mais a pena manter uma floresta em pé do que se ter um grande pasto e só agora que a opinião pública repudia, por exemplo, os crimes ambientais que acontecem no mundo inteiro.

Este exemplo é muito pertinente, pois o montanhismo se desenvolve em áreas naturais e a crise ambiental tem tudo a ver com o que acontece no montanhismo de hoje, pois nunca foi tão proibido ir para uma montanha, mas ao mesmo tempo, os próprios montanhistas aceitam a proibição como parte da solução de problemas ambientais que as montanhas sofrem.

Vegetação campestre colonizando a região queimada do Caratuva em 2012. – Fonte: Arquivo pessoal de Pedro Hauck

Isso faz com cada vez mais fique questionável o montanhismo em lugares tradicionais, que por ventura, são os mais populares. Os Alpes, os Pirineus, as Rochosas e até a Serra do Mar e Mantiqueira sofre com problemas ambientais decorrentes do excesso de pessoas em trilhas e não há nada que se fazer a não ser avaliar cada caso e planejar um uso sustentável para cada lugar.

O montanhismo tornou-se uma atividade até certo ponto popular. Se antes os montanhistas fabricavam seus equipamentos, hoje eles têm Megastores onde podem comprar o que precisam com tecnologia de ponta.

Se conquistar uma montanha alta como o Everest só foi possível em tempos super recentes (1953 faz pouco tempo!) por causa da evolução dos equipamentos, com a grande revolução tecnológica que vivemos nos últimos 20 anos, o próprio Everest se tornou “fácil”, pois com a experiência acumulada, Sherpas bem treinados e equipamentos de ponta, desde roupas, passando por aparelhos de previsão de tempo, chegar ao teto do mundo não é mais “grande coisa”, mas obviamente tem um preço.

pedras riscadas e lixo no cume

O turismo de montanha é algo inevitável e é até positivo. Primeiro por que é uma atividade econômica que se bem direcionada pode trazer grandes benefícios às regiões montanhosas, como geração de emprego, renda e desenvolvimento. Depois, valoriza uma das profissões mais belas e responsáveis do mundo, a do guia de montanha, que é algo que em seu significado real quase não existe no Brasil, exceto com a  AGUIPERJ e outras escolas menores.

Por outro lado, o turismo de montanha desmistifica um pouco o montanhismo e permite que pessoas bem remuneradas possam frequentar montanhas sem compromisso, rompendo toda uma cultura chamada por nós de “cultura do montanhismo”. Neste mundo globalizado, já houve uma dezena de casos em que pessoas alcançam o cume do Everest sem que nunca tivessem ido antes à uma montanha. Será que isso é bom? Ou é uma ridicularização do montanhismo?

Infelizmente hoje, a grande maioria das pessoas que frequentam montanhas não assimila e não sabem o que é e nem que existe a tal da “cultura do montanhismo” e por isso, só por causa disto, não podemos chamar-las de “montanhistas” por mais que sejam turistas experientes, ou também “farofas” bem rodados.
Algumas pessoas ficaram bravas por que neste site o montanhista se acha no direito de estar “acima” do turista da montanha, entretanto não há que se negar que um montanhista pode ser um ex. turista ou ex. farofa, tudo depende de seu comprometimento, pois todos têm e assimilam o espírito de aventura, mas não há como comparar um montanhista que se auto-guie e planeje suas expedições, com pessoas que pagam para que outras façam tudo por eles.

O montanhismo se tornou turismo? O montanhismo caiu no marasmo ou na repetição? Acabaram os desafios?

Ora, estas perguntas são naturais e a resposta para todas elas é não!

Os desafios habituais do montanhismo tradicional se tornaram objetos de turismo da mesma forma que visitar o Coliseu em Roma, só um pouco mais extremo. Você pode como turista chegar em Chamonix e comprar um pacote para escalar o Mont Blanc, assim como pode chegar em Mendoza e escalar o Aconcágua. Estas montanhas que são as que sempre chamaram atenção de todos não são mais desafios para o montanhismo, mas próximo a elas há centenas de milhares de outras montanhas menores, de grande dificuldade técnica, que ainda não foram escaladas e por mais que o montanhismo tenha se tornado popular, muitas montanhas menores ficam desertas até mesmo na época de temporada.

O que aconteceu hoje é que os desafios não têm mais nomes. Qual montanha ainda não foi escalada? Ora, um monte, mas você sabe o nome de uma delas? Isso cada especialista dirá, seja o escalador de Big Wall, de Rocha em livre, de gelo ou de altitude.

Há uma infinidade de montanhas de 7 mil metros a serem escaladas no Himalaia, uma infinidade de montanhas de gelo sem nome e sem rotas no Peru, Bolívia, Alaska,.. Torres de granito no meio do Campo de gelo continental na Patagônia e na Groelândia… Os objetivos se desconcentraram e por isso saber qual conquista é mais significativa é difícil saber.

Há pouco tempo, um jovem americano conquistou em solo uma montanha rochosa no Paquistão em estilo alpino e sem ajuda de ninguém. A montanha se chamava Tahu Ratun, mas acho que seu grande feito não ficará na história, pois todos os anos dezenas de outros jovens escalam montanhas extremas como estas, muito mais difíceis que, por exemplo, o Cerro Torre que Cesari Maestri conheceu na década de 60, mas suas conquistas não serão equivalentes àquela de outrem. Talvez no futuro este período seja lembrado por grandes conquistas individuais muito mais extremas e difíceis que as de antigamente, realizadas em estilos mais arrojado e ético, mas o nome destas pessoas e suas montanhas fugirão da memória.

Tudo isso é para mim o montanhismo contemporâneo, um montanhismo de alto nível, mas ao mesmo tempo sem o “glamour” de antigamente. O montanhismo continua evoluindo, o que involuiu foram as maiorias que frequentam as montanhas, se isso é bom ou ruim, só o tempo dirá…

Veja: O significado histórico de subir uma montanha

 

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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