O morro das goiabeiras e das mulheres

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Diferente das capitais da região sul e sudeste, Londrina não foi contemplada com uma serra de respeito próxima como a Mantiqueira, por exemplo. Desníveis relativamente maiores são alcançados apenas indo muito além dos limites da cidade, horas a fio distante da “Pequena Londres”. Restam então dentro do perímetro urbano morros de altitude modesta que, de desnível similar ao Morro Saboó (em São Roque, SP), se situam em áreas rurais e são acessíveis mediante antigas trilhas tropeiras, servindo de diversão pra caminhantes de pequenos serrotes atrás de “montanhismo”. No caso,“morrismo”. Rolês como o Morro das Goiabeiras e o Morro das Mulheres, bate-voltas breves e fáceis nas pacatas, porém charmosas, elevações que destoam da paisagem recorrente, permeada da horizontalidade monocromática de trigo, soja e café.

O primeiro morro que eu e a Lau visitamos foi o das Goiabeiras, situado em Ibiporã, município vizinho de Londrina. Pra isso não houve necessidade alguma de madrugar e, tomando as devidas conduções do eficiente sistema de coletivos urbanos londrinense, saltamos no centrão de Ibiporã meados da manhã. Pra ser mais preciso, o latão nos deixou na Av. Paraná, na frente da Pça Pio XII, onde destoa a bela arquitetura da Igreja Nossa Sra da Paz. Por ser dia sábado o comércio local fervia e, com alguma dificuldade, conseguimos avançar pela muvucada calçada até chegar na Rua José Bonifácio, onde tocamos pro sul.

Dali cruzamos a via férrea, onde chama a atenção a antiga Estação de Ibiporã, datada de 1936, onde funciona atualmente o“Museu do Café”, que por sua vez preserva a memória e patrimônio da cultura cafeeira. Dali continuamos tocando pro sul, pelas Ruas João Barreto e Olavo Bilac, pra finalmente deixar a cidade pra trás, já pisando na empoeirada Estrada Esmeralda. Visivelmente descendo suavemente em direção a uma longa baixada de vale, os horizontes aos poucos se ampliam permitindo avistar as serras dissonantes da horizontalidade dos campos. Da mesma forma, qq curso dágua próximo é denunciado não apenas pelo murmúrio do precioso liquido como tb pela profusão de verdejantes capões de mata á sua volta, q contrastam gritantemente com as campinas douradas de milho e trigo.

Algumas chácaras e sítios pontuam o trajeto aqui e ali, mas a maior parte do trajeto é permeada de campos desertos, de cultivo, pastagens ou terrenos aparentemente abandonados. Desviando de colinas maiores no caminho pra leste, transpomos os Córregos Barreirão e, não mto depois, do Engenho, pra então tocar indefinidamente pro sul, subindo outra vez de forma imperceptível. Um enorme morro surge a nossa frente, mas nosso destino se encontra logo atrás dele. Foi neste trecho q conseguimos uma oportuna carona numa picape, com um tiozinho q ia pra sua fazenda. “É, eu já andei com mochila como vocês e sei bem como é!”, frisou o senhor, q seguiria bem mais pro sul q a gente. É, mochileiro sempre dá carona pra mochileiro. Fato.

O tiozinho nos deixou alguns “kaêmes” adiante, ainda na Estrada Esmeralda, pra depois seguir por uma estrada secundaria e se perder nas colinas ao sul. A gente, em contrapartida, se manteve na via principal q agora desviava pra leste, bordejando o sopé do morro anteriormente avistado. Pelo desnível de terreno aqui já não havia cultura alguma e sim um arvoredo maior ornando as margens da estrada. O dia amanhecera fresquinho e limpo, mas aquele horário da matina o sol já começava a cozinhar os miolos na ausência de sombra.

Conforme avançávamos nosso destino surgia aos poucos à nossa esquerda, elevando suas encostas claras de pasto ralo q se mesclavam a capões de mata ciliar mais escuro, no topo. Enfim, nossa proximidade com uma encosta menos íngreme denunciava um possível acesso ao topo. Contudo, no final da estrada nos deparamos com uma porteira e um aviso com os dizeres:“Propriedade Particular – Vale dos Sonhos – Não entre sem permissão”. Em tempo, na verdade  fomos ao morro sabendo apenas  sua localização, presumindo seus possíveis acessos mediante estudo de imagens aéreas. Isso porque na net não há info avulsa alguma, até agora. O que imagens aéreas não mostravam é justamente isso, propriedades particulares. Na base do acesso aparentemente estava sendo construído um mini-condomínio ou algo do gênero. Isso apenas deixou claro pra mim q a galera devia subir o morro pelo outro lado. E agora, Jose?

Não que isso fosse problema, claro. Bastou retroceder alguns metros, pular uma cerca a nossa esquerda, cruzar uma plantação de goiabeiras bem baixa e ganhar os pastos que antecediam aquela propriedade particular, ladeando suas cercas. Minha idéia era alcançar a encosta do morro anterior e, atraves dela, chegar ao selado com o Goiabeiras, passando longe do casario do tal Vale dos Sonhos. E assim foi, andando pelo pasto encontramos um trilho de boi que desceu num vale, cruzou um enorme bambuzal e dali começou a ganhar a encosta do morro anterior. Mas logo o trilho sumiu e nos vimos subindo em meio a um capinzal relativamente alto, onde a Lau teve alguma dificuldade na ascensão não so pela pela declividade acentuada como pela ausência de trilha.

Mas devagar e sempre, em largos e demorados ziguezagues, alcançamos o selado de ligação de ambos morros. No caminho cruzamos com um belo laguinho, onde provavelmente boizinhos matam a sede em dias de sol a pino. Daqui em frente não tinha mais erro, bastava seguir um trilho que ia em direção ao Goiabeiras, já bem longe e acima dos limites da tal propriedade. Mas após um tempo o trilho sumiu e retomamos o restante q nos separava do topo na raça. Saltamos mais uma cerca e subimos o resto da encosta, íngreme e repleta de capim alto, com direito a um ultimo trecho de escalaminhada, onde uns rochedos seviam de apoio tanto como o próprio capinzal. Claro q o trajeto nos deixou ralados e repletos de mato da cintura pra baixo.

Minutos depois pisamos no cume do Goiabeiras, onde uma laje irregular divide o morro num trecho de pasto e capim, e outro com mata ciliar maior. É, realmente o acesso pelo que fomos (sul) não era o oficial por ser mais difícil. Logo deu pra ver que pelo contraforte norte o acesso era bem mais fácil (e menos íngreme), pois bastava acompanhar a espinhenta mata ciliar partindo duma propriedade, logo abaixo. Dane-se, quem ta na chuva é pra se molhar. E com o sol a pino daquele horário, nos prostramos na sombra do baixo arvoredo onde bebericamos td agua possível e mastigamos nosso lanche, que se resumiu a uma simplória maçã. Do alto temos uma bela panorâmica tanto do quadrante sul, que prestigia o verdejante Pq Municipal do Tibagi, as suaves colinas do município rural do Limoeiro e o espelho dágua duma curva do próprio Rio Tibagi; já o setor norte exibe uma paisagem predominantemente rural de Ibiporã, que se estende até Jataizinho. Goiabeira eu não vi nenhuma, mas a Lau jura que viu. Então tá.

Dali de cima já dava pra tracejar mentalmente a volta, que decerto não se daria pelo perrengoso capinzal de hora antes. E assim, depois de bem descansados retomamos o caminho da descida, agora tomando a suave encosta do contraforte norte do morro, que logo nos deixou numa vereda que acompanhava a mata ciliar avistada e, em questão de poucos minutos, nos deixou nos fundos da fazenda Canaã, na verdade um pesqueiro desativado. Com sol cozinhando a cabeça, andamos o restante de estrada de chão até chegar perto das casas do conjunto habitacional do Jd Afonso Sarabia. Mais um tempo, agora de asfalto, chegamos na Rua Ibrahim Prudente, onde finalmente tomamos condução pro centrão de Ibiporã. Lá encostamos num boteco por volta das 14hr afim de descansar e bebemorar o rolê de 13km (no caso, uma “travessia involuntária” do Goiabeiras) antes de voltar em definitivo pra Londrina.

 

Cerca de duas semanas depois, eu e a Lau novamente nos mandamos num domingo pra outro morro frequentado pelos andarilhos londrinenses, o das Mulheres. Ele recebe esse pitoresco nome porque, segundo dizem,  são dois morros que se assemelham a “peitos de mulher”, e se situa no limite de patrimônio Selva e Coroados, bairros rurais do sul de Londrina. Pra isso a gente pegou sem mta pressa o buso partindo do Term. Acapulco em direção ao Selva, meados da manhâ. Viagem rápida esta onde o latão, num piscar de olhos, deixou o limite urbano da cidade pra rasgar o asfalto da PR-445 na direção sul.

Sempre prestando atenção ao trajeto, após o fundo de Vale do Ribeirão Três Bocas saltamos na rotatória que sinaliza a entrada pro Selva, Mas no caso a gente foi na direção oposta, isto é, sentido sudoeste indo pra Coroados. Dali bastou acompanhar o asfalto por cerca de uma hora, mas já tendo contato visual com nosso objetivo, pequenino ao longe. O caminho é praticamente  aberto, deserto e de clima rural, pontilhado por alguns eucaliptos perfilados, uma chácara aqui, um pesqueiro acolá, etc..

Abandonamos a estrada em favor duma via de chão q nasce pela direita, onde placas indicando “Acampamento Shalom” e “Chácara Pedacinho do Céu” servem como referência. Uma vez nessa via, bem mais arborizada,nossa rota segue na direção oeste, indo de encontro com sopé do serrote que pretendemos subir. E sempre acompanhando o curso do Ribeirão Três Bocas, q marulha relativamente afastado a nossa direita, escondido num capão de mata. Tanto q logo de cara passamos por cima dum pontilhão de concreto por um afluente do mesmo. Memorizei esse lugar pq por ali seria depois a nossa volta.

A pernada nesta via é tranquila, sinuosa, com pouco desnível. Mas uma vez alcançada a tal “Chacara Pedacinho do Céu” e passar sob a linha de torres de alta tensão o visual se abre, permitindo vislumbre tanto duma ampla e larga baixada como do selado do Morro das Mulheres q temos q chegar. No fundo da baixada, antes de cruzar um capão de mata e da estrada tocar pro norte, deixamos a via em prol de outra q nasce pela esquerda. Uma vez nela não tem mais erro, pois é ali que inicia de fato a ascensão ao morro.A subida pela via segue sempre na direção sul, inicialmente de forma imperceptível, mas com chão tremendamente precário e repleto de pedregulhos soltos. Mas uma vez no alto e transposta uma porteira, a via finda no que parece ser uma simplória moradia mocada nas encostas do morro desnudo. Mas observando bem dali nasce uma picada, agora lindamente gramada, que continua a subida do morro, agora em largos ziguezagues e cercada de arbustos de porte médio. Aberto e sem sombra, o calor do sol daquele horário se faz imediatametne sentir e são feitas inúmeras paradas pra bebericar o precioso liquido. Paradas estas que, olhando por sobre o ombro, revela tanto o desnível vencido como os vastos horizontes a nossa volta.

Dessa forma e em pouco menos de 40min após deixar a ultima estrada de chão, caímos finalmente no largo colo que une os dois morros, onde uma estreita picada cercada de mato une os dois cumes. O topo do extremo leste tem um simpático bosque além de muito capim alto, de onde se tem vista somente da região do patrimônio Selva. O cume mais interessante (porém desprovido totalmente de sombra) é o outro, do extremo oeste, privilegiando os quadrantes norte, oeste e sul, com destaque pro bairro rural de Espirito Santo em meio a abaulada e verde morraria. E, claro, o visu de Londrina despontando, pequenina e alva ,no horizonte. Aqui a Lau ficou descansando (e tomando litros de água) na sombra dum minúsculo arbusto, enqto eu fui dar uma bizoiada no largo e espaçoso topo, forrado de capim ralo, onde pastavam alguns bodes curiosos. Ah sim, os arbustos aqui tdos continham alguma frutinha comestível, desde juá, amora silvestre e até uva japonesa.

Olhei pro celular e era pouco mais de meio-dia. Descansados, empreendemos a volta pela continuidade da picada, q do cume onde estávamos se pirulitava com forte declividade morro abaixo. Tocando sempre na diagonal pela encosta sul, a vereda logo amansou mas se manteve nas mesmas condições q antes, ou seja, precária. Lama, pedras soltas e trechos lisos demandam atenção redobrada, mas conforme se avança o caminhar torna-se mais ameno. A vista q se abre, por sua vez, não difere mto la de cima, apenas os detalhes torna-se mais nítidos na medida q se perde mais e mais altitude.

Após duas cercas, acabamos dando nos fundos dum casebre e, depois, duma fazenda, q depois soubemos se chamar “Rancho Serrano”, e era composta por enormes estufas repletas de alface. Num piscar de olhos caímos no asfalto e retomamos o caminho da volta – e com sol castigando a cachola – contornando o sopé sul do morro na direção norte. Mas como não voltaríamos pelo mesmo caminho e sim por uma picada q sabia existir no Vale do Ribeirão Três Bocas, abandonamos outra vez o asfalto e adentramos na mesma via anterior (aquela do “Acampamento Shalom”) e seguimos por ela até o pontilhão daquele afluente do Ribeirão Três Bocas, lembra?

Pois bem, uma vez na ponte, basta retroceder, adentrar numa picada discreta em meio aos arbustos e depois acompanhar o afluente, vale abaixo, em direção ao rio principal. Visivelmente palmilhando os limites dum plantio e o capão de mata, uma vez no fundo de vale é preciso buscar a trilha em meio a vegetação q circunda o Ribeirão Três Bocas. Mas com farejo de picadas esta logo foi encontrada. Logo estávamos na margem do riozão, q corria com forte intensidade vale abaixo. Como a trilha, em tese, tava do outro lado havia q encontrar um jeito de atravessá-lo e claro que lá fui eu testar a profundidade. Mas não deu nem pra chegar a tocar a água pq a lama q precedia a mesma afundou minha perna até a altura da coxa. Sem chance! E agora?

Foi ai q me ocorreu andar rio acima e buscar algum pto favorável á travessia, q fosse mais estreito entre as margens ou q tivesse algum tronco caído servindo de “ponte”. E não bastou andar menos de 5min (varando mato) q este pontilhão natureba foi de fato encontrado. Chamei e Lau e juntos atravessamos o pouco amistoso rio em segurança por cima dum enorme gigante da floresta tombado. Do outro lado, bastou margear o rio até o pto onde fugiramos da rota e logo encontramos a continuidade da picada, que se pirulitava vale afora. Aqui, numa aprazível prainha e minúscula prainha fluvial, tivemos mais um pit-stop as 13:30hrs. A Lau pra descansar e beliscar alguma coisa, e eu prum comedido tchibum, sempre me firmando nas pedras e arvoredo pra não ser levado pela forte correnteza. Apenas a titulo de curiosidade, o Ribeirão Três Bocas tem gde importância histórica, pois foi ele q norteou a colonização do Norte Novo e, consequentemente, a fundação da “Capital do Café”.

 

Dando continuidade a jornada por conta dos pernilongos insuportáveis, tomamos a trilha e nos pirulitamos pela mesma sem segredo, sempre cercados de verde e exuberante mata ciliar. Inicialmente acompanhando o rio, não demorou pra vereda embicar e começar a subir a encosta do vale, ganhando altitude rapidamente. No caminho, fui engolindo td sorte de teias de aranha, sinal q faz um tempo q ninguém palmilhava aquela simpática vereda. Há alguns obstáculos básicos, mas nada q uma agachada, pulada ou desviada não resolvesse. Ainda assim o pouco de mato alto na trilha nos deixou com trocentos carrapichos colados ás meias e ao tênis. Mas fazer o quê, faz parte!

Logo emergimos num estradão avermelhado de chão ao lado duma imponente e retorcida cajamanga. Na sequencia, tropeçamos nos fundos do Sitio Sto Antônio, já as margens duma via asfaltada maior q é conhecida como “Estrada da Cegonha”. Uma vez nessa estrada bastou seguir pela mesma no sentido leste, pois ela interceptaria a PR-445 alguns kms adiante. E tome chão, agora descendo a serra suavemente, onde tivemos um último vislumbre do Vale do Ribeirão Três Bocas, este aos pés do serrote conhecido como Morro das Mulheres. Hora depois caímos na Rodovia Celso Garcia, onde não demorou muito pro busão passar e nos largar na “Pequena Londres”. E assim totalizamos um simpático circuitinho de algo de 16km feitos em 5hr, cujo trajeto teve formato de “ferradura mutante”.

Como já foi inicialmente mencionado, o Morro das Goiabeiras e o das Mulheres estão longe de figurarem como “montanhas” desafiadoras. Pelo contrário, são simpáticos morros q integram pequenos serrotes rurais, q podem ser percorridos em curtas caminhadas. As trilhas são nítidas e evidentes de longe, onde é interessante reparar como a vegetação destas elevações contrasta com a dos capões de mata, dos vales estreitos e dos campos em sua base. Como a ascensão é curta e o desnível, pequeno, é recomendável emendar qualquer outro atrativo relativamente próximo ou inventar algum circuito diferenciado. Varar um pouco de mato ou margear os rios próximos tb dilata consideravelmente qq programinha sussa breve. Mas aí cabe ao andarilho saber tirar proveito das elevações q dispõe ao seu redor. Sim, são altitudes bem modestas, insignificantes até. Mas esse tb deve ser o mesmo pensamento q o nepalês ou peruano de passagem deve ter da nossa, por exemplo, Mantiqueira. Mas isso não impede de saber tirar proveito da geografia disponível. Basta apenas um pouco de criatividade, perseverança e disposição.

 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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