O que fazer quando QUASE tudo dá errado?

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Quando eu, Lili e minha sogra iniciamos a viagem que seria o nosso presente de aniversário pra mãe da Lili, eu estava tranqüilo, crente que o tempo seguiria perfeito como sempre foi em todas as outras vezes que estive no Atacama, sempre na mesma época, o primeiro trimestre do ano. O que aconteceu me deixou boquiaberto.

O planejado era simples: Viajaríamos os três, faríamos passeios tradicionais do atacama tendo San Pedro como cidade base, e depois minha sogra e Lili voltariam pra casa, ficando eu sozinho por mais 18 dias pra arrematar uns vulcões por lá. E dezoito dias dá pra fazer dez cumes sem muito esforço.

Chegamos em San Pedro às 20:00h do dia 5 de fevereiro depois de pegar um táxi de Antofagasta até San Pedro (longa estória do motivo pelo qual fizemos isso mas chegamos), encontrei com um dos amigos que tenho lá, paguei pelo nosso tour e dormimos no albergue que reservamos. Dia 6 de manhã cedo saímos pro passeio do Salar de Uyuni de 4 dias ao invés de 3 (como fiz da primeira vez). Aliás, este passeio é mais um safári do que um passeio. A razão dos 4 dias era a volta a San Pedro.

Logo no início o Saul, nosso guia/ motorista nos disse que teríamos que fazer um caminho diferente por causa das chuvas, e pra mim aquilo já foi um pouco difícil de digerir, mas não me manifestei. Não passaríamos pela laguna Hedionda, passaríamos por trás do vulcão Cañapa às bordas da laguna de mesmo nome. Foi bom fazermos este caminho, na verdade foi sensacional. A rota é de uma beleza natural incomparável, muito mais apurada. A Laguna Cachi exibe um vulcão lindo cônico na extremidade oposta, e no lado esquerdo da visão, uma pequena seqüência de cerca de 7 montanhas de cinco mil metros, todos provavelmente variando entre 5300m e 5700m seguramente, belíssimos! Estavam nevados desde a base.

Passando pelos geysers Sol de La Mañana, ponto alto da travessia a 4900 metros de altitude, a Lili e sua mãe não agüentaram a força da altitude e o forte cheiro de ensofre. Lili passou bastante mal, pensei que fosse desmaiar de tão pálida tadinha, a Kuka (apelido da minha sogra) ficou só letárgica, bom, pois ela é que mais me preocupava com a altitude. Depois que perdemos altitude chegando a 4270 metros na Laguna Colorada ambas melhoraram consideravelmente.

Ao passar pelo Cañapa, não acreditava em minha visão. Passei por ele no total umas quatro vezes mas nunca me apeteci a escala-lo, desta vez, morri por não poder parar ali por três dias. Estava completamente branco de tanta neve desde a base a 4500 metros. Tinha até uma pequena evidência de avalanche em uma canaleta na esquerda dele, muito, muito bonito. Tem quase 5900 metros este belo vulcão. Estando tão perto ele não cabia em uma foto, precisei de uma panorâmica pra registra-lo.

Passamos a primeira noite em um abrigo novo construído na Laguna Colorada, que bom, pois da outra vez que dormi ali foi no primeiro construído, que é utilizado somente por clientes da agência mais difundida dentre nós brasileiros, a Colque Tours, era acabado! Muito ruim mesmo com banheiros destruídos e o único som que rompia a madrugada era de pessoas vomitando com mal de altitude.

No dia seguinte seguimos atravessando o altiplano parando em Allota e em San Cristobal, cegando finalmente em Uyuni de tardinha. Lá dormimos em um hotel arrumadinho até, muito confortável. Só saímos pra dar uma volta e jantar, tudo incluso no preço de 180 doletas por cabeça. Na manhã seguinte sairíamos cedo, quatro da manhã.

A madrugada veio, pegamos as tralhas e fomos, chegando no Salar no momento do nascer do sol que foi fantástico, muito bonito mesmo. Até então, pouca chuva em nosso caminho.
Passamos um tempo lá pirando em fotografias, e depois que a farra acabou voltamos pra Uyuni na hora do almoço. Lá. O Saul organizou um bolo de aniversário pra Kuka! Foi bem legal, éramos um grupo de 11 clientes e 2 dias divididos em 2 carros, e todos nós banqueteamos bifes de llama, saladas, purê de batatas, quinua e mais outras coisas durante o almoço e a sobremesa foi o bolo. Uma farra divertida e boa. Cantamos parabéns em português, espanhol, inglês, e teve um londrino que cantou em chinês!

Aproveitamos um pouco a cidade, e fomos embora com o Saul, adiantando o retorno um pouco já que a estrada é longa e mudaríamos um pouco o retorno também, passando dentro dos limites do departamento boliviano de Potosi. Dormimos em um vilarejo chamado Villa Mar, a 4050 metros de altitude. Um frio da porra ali…

Na madrugada seguinte, cinco da manhã, o carro enguiçou, mas em quarenta minutos enquanto congelávamos a aproximadamente 0 grau ou –2 graus, Saul deu um jeito e partimos.

Quando chegamos na fronteira com o Chile, já na base do vulcão Juriques, meu primeiro objetivo da viagem, a paisagem havia mudado. Licancabur estava coberto com uma grande lenticular que o cobria do cume a 5920 metros até mais ou menos 5000 metros de altitude. Estava nevado até a base a 4600 metros, nunca o vi assim. Ainda não estava completamente branco, mas estava muito nevado.

O Juriques tinha bastante neve também, a face sul tinha uma rampa de neve que certamente tinha cerca de um quilômetro descendo da cratera, uma bela visão. O tempo estava até bonito, tinha céu azul e pouco vento. O Toco estava nevado da cabeça aos pés, muito incomum mas possível. Como estava, estava belo e melhor que nunca pra escaladas pois a neve ajuda, mas isto mudaria radicalmente em dias.

Chegamos em San Pedro pouco antes do almoço, fizemos check in no outro albergue que reservamos, que na verdade era uma casa de família, muito bom. Ali conhecemos dois brasileiros de São Paulo bem gente boa, fica um abraço!

Saímos enquanto a Kuka cochilava um pouco no conforto dos 2450 metros de altitude, e voltamos com tudo programado pro dia seguinte, Geysers Del Tatio pela manhã e Valle De La Luna pela tarde, tudo por 40 dólares por cabeça. Acordamos na madruga e fomos pra rua prontos, aí começa a parte que deu errado…

Quando o carro da Colque veio, a guia nos informou que o passeio havia sido cancelado por causa das chuvas, os carabineiros fecharam a estrada e ninguém passava.

Frustração, nunca passei por nenhum inconveniente por causa de chuva no atacama! Bem, como diz o ditado, há uma primeira vez pra tudo.

Voltamos pro quarto e dormimos. Comecei a tossir. Levantamos lá pelas nove e saí com as duas com a intenção de leva-las a Prkara de Quitor, as ruínas que visitei em 2010. Alugamos as bicicletas mas na hora de chegar lá, eis que um rio que era seco virou uma corredeira. Não era muito profundo, no joelho, mas a Kuka não passaria por ali, lili tampouco, e eu estava de tênis e jeans. Procurei caminhos alternativos, subi um morro ali, andei quase um km procurando passagem e quando já estava dentro da propriedade privada de uma família sendo enxotado vi que era pior, aquela era só a primeira travessia, pra chegar nas ruínas mais 2 travessias eram necessárias. Viramos as costas e voltamos pro centro de San Pedro.

A tarde veio e fomos ao Valle de La Luna, e mesmo sob uma chuva chata que não passava, visitamos o Valle De La Muerte (com tempestade chegando e um vento de pelo menos 60 ou 70 por hora), cânios de sal, anfiteatro, mirador do anfiteatro, três Marias e pedra do coyote, daí voltamos pois não daria pra ver o pôr do sol e a chuva não parava, um saco…

Quando chegamos na cidade chovia sem parar, as ruas estavam alagadas e meio que um pânico geral tomava conta do lugar. Saímos pra jantar agasalhados, com impermeáveis e de lanterna na mãe, pois nem luz tinha. Daí pra frente a luz virou luxo, faltava diariamente de 17h às 10h do dia seguinte.

Nada mais podíamos fazer, dia 11 lili e Kuka foram embora e eu fiquei sozinho na cidade cheio de esperanças, mas a situação não mudava. Minhas tosses aumentavam…

Chequei a previsão de tempo e havia uma janela de um dia e meio nele, dava pra cume. Me preparei mas quando pensei em pagar pelo transfer até a fronteira não pude. A fronteira havia fechado. Para o outro lado, sentido Leste, a fronteira também estava fechada no Paso de Jama. Estava preso no Chile com mau tempo.

E nada de boas noticias, a infecção respiratória piorou, o tempo seguia péssimo, no jornal local a notícia era de que as áreas mais afetadas pelo La Niña e Inverno do altiplano boliviano eram Calama, Toconao e San Pedro de Atacama, que beleza não?
 
Exército na cidade desde dia 12, descarregaram uns 150 colchões pra desabrigados. Em Toconao 20 casas caíram por causa da chuva, e essa vila fica a só 36kms Se San Pedro, já fui até lá pedalando ano retrasado. Cinco anos que vou pro Atacama sempre nessa mesma época e nunca vi nada nem perto disso…

Lamentável…Dia 14 teve reunião na cidade entre a prefeitura e os empresários de turismo, a portas abertas, adivinhem? Entrei na reunião e assisti.
 
Foi prometido muita coisa, coisas que são prometidas há anos alguns amigos de lá me dizem, mas o pior de tudo, é que a previsão é de que o mau tempo siga até a primeira semana de março. Deu tudo errado, perdi a batalha e aceito a derrota. Voltei pra casa três dias mais tarde. Pior foi ter que pagar mais de 500 dólares pra antecipar o vôo, facada que dói…
 
Dói mais ainda ir pra casa sem a chance de ter subido uma montanha sequer…Nem pude tentar, não saí do albergue. Mais, quando decidi voltar já eram 22 dias consecutivos de chuva, a defesa civil chilena não saía mais da praça, ficavam de prontidão ali. A cidade estava abarrotada de turistas até dia 12, no dia 14 parecia fantasma, vazia. Todo mundo que conseguiu foi embora.
 
Da última vez que falei com o amigo Chritsian, ele me disse que um gringo insistiu que o levasse até a fronteira (fechada) pois queria escalar o Juriques (um dos meus objetivos). Quando chegaram lá, além de não passarem pela fronteira quase atolaram na neve.

O Christian nunca viu aquilo, tinha meio metro de neve acumulada a só 4250 metros de altitude. Onde eu, minha sogra e minha esposa Lili estivemos 5 dias antes e quase não havia nada, pouca neve, voltando do Salar de Uyuni. Quando fomos, dia 6 de fevereiro, estava completamente seco.
 
Licancabur e Juriques estavam cobertos por um manto branco de 1 metro de profundidade. Quando isso tudo derreter, o risco de inundações é eminente. Os guias lá de cima dizem que escutam avalanches mas não podem ver, já que o whiteout lá em cima não se desfaz!!! Inacreditável, inacreditável…
 
Tiro que saiu pela culatra, voltei pra casa com o rabo entre as pernas…não tive chance de nenhuma escalada.

Cheguei em casa dia 17 a tarde já ofegante e muito cansado. Dia 18 piorei muito e dia 19 de manhã fui parar na emergência do Hospital Nossa Senhora de Lourdes, no Jabaquara. Fiz um raio x e o médico confirmou a pneumonia, dá pra acreditar?

Um tiro que realmente saiu pela culatra e me causou danos.

Estou no antibiótico tão forte que nunca ouvi falar, um só por dia, no quarto dia de tratamento já me sentindo melhor, pelo menos agora chego ao banheiro sem ficar completamente exausto, não tenho força pulmonar!

Em Itanhaém, na casa de praia pra me recuperar e logo logo retornar a São Paulo, esperar este verão infernal acabar pra atacar as montanhas brasileiras…

Que desgraça…

Abrazos a todos

Parofes

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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