O vale do Araçaúva

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Entre Rio Grande da Serra e Paranapiacaba, a planície ondulada por morros que preenche o entorno da estação-fantasma Campo Grande costuma passar despercebida aos visitantes. Também, pudera, à diferença da ilustre vila inglesa, esta região de mata igualmente exuberante é pontuada por chácaras e estradas de chão que unicamente têm função de unir a SP-122 com Suzano. Contudo, uma fuçada mais minuciosa revela interessantes picadas transversais, que levam tanto a improváveis mirantes como belas cachoeiras. E assim, numa caminhada sussa partindo de Campo Grande, deu pra conhecer melhor as quedas do vale do Ribeirão Araçaúva, esticar pro Mirantão e finalizar em Ribeirão Pires, via Picadão do Rancho Sapê. Um rolê de meio período de apenas 16km, e que emenda trilhas com vias de terra bem do lado da sua vizinha inglesa mais frequentada.

Dia bonito e fresco, sol radiante e céu azul, e cá estou mais uma vez em Rio Grande da Serra embarcando no latão “424” rumo Paranapiacaba. Mas meu destino desta vez não é a vila inglesa e sim 5km antes dela, a região planáltica acima da SP-122. Comigo embarcam hordas de jovens que fatalmente saltam em direção ao Vale dos Cristais ou rumo à Fumaça, e dou graças a Deus por não ir no vácuo “farofento” deles. Viagem rápida, por sinal, pois 10 minutos depois me vejo saltando no asfalto da oficialmente conhecida como Rod. Deputado Antonio Adib Chamas.
Assim, às 8hrs me vi no “bairro-fantasma” de Campo Grande, pontuado pela estação ferroviária homônima  e por uma simpática capelinha corando um morrote ao lado. Após alguns cliques do Monumento ao Divino Salvador, q parece guardar a decrépita estação feito sentinela, cruzei a linha em direção ao que sobrou da mesma. Diferente da estação da vila inglesa, esta aqui tá abandonada, corroída de ferrugem, entupida de mato e caindo aos pedaços, tanto que placas proibindo acesso e risco de morte servem de aviso. Quiçá por este motivo – o de evitar a divulgação de descaso com a memória ferroviária – um segurança veio ao meu encontro de forma pouco cordial resmungando que era proibido clicar o local. Pena, pois esta estação é datada de 1929 e representa patrimônio histórico inestimável.
Da estação sigo a direção nordeste, ignorando a Rua Ford (que leva a Paranapiacaba) e tomando a Estrada do Rio Claro, praticamente uma linha reta de terra rasgando a planície de banhados em direção as montanhas, ao fundo. Antes de chegar na morraria, porém, outra bifurcação me obriga abandonar a via principal em favor da esquerda, agora sentido noroeste, ignorando o Bar do Flávio. Uma pequena placa apontando Sitio São Fco serve como referência e nos indica ser início da Estrada do Araçaúva, reforçado por outra placa da prefeitura de Sto André indicando aquela região ser área de proteção e recuperação de mananciais. Uma vez nela não tem erro e basta apenas se manter na principal.
Deixando os descampados abertos de banhados atrás e serpenteando a morraria florestada em volta, passo por baixo do zunido eletrostático de torres de alta tensão pra logo em seguida cruzar um pontilhão de madeira de consistência duvidosa, por onde corre o ribeirão q empresta o nome da estrada a leste, o Rio Claro. Este curso d’água praticamente nos acompanhara boa parte do trajeto, que agora toma direção oeste. A caminhada é bem agradavel, envolta pelo frescor da mata densa e úmida, repleta de muitos belos remansos e com a estrada ornada de jardins de lírios-do-brejo e buquês de hortências.
Após passar alguns casebres abandonados, me deparo com nova bifurcação pontuada por uma igreja evangélica. Recordo que da ultima vez que estive aqui tomei a esquerda, sentido oeste, rasguei mato e finalmente cai na Pedreira de Rio Grande da Serra. Ao invés disso sigo reto, mergulhando cada vez mais vale adentro, tocando sempre pro norte. O agradável silêncio da pernada, sempre em nível, só é rompido pelo estardalhaço de cães estridentes que normalmente habitam as poucas chácaras e sítios que margeiam o caminho, que de Rua Antonio Fco Lisboa passa a se chamar Mario de Andrade, agora nos cafundós do bairro rural do Jd Joaquim Eugenio de Lima.
Logo adiante surge uma bifurcação e me mantenho na via da esquerda, ou seja, a que começa a subir suavemente a encosta do morro sgte. Abaixo consigo observar duas pequenas casas mocadas na encosta do contraforte oposto, em meio a mais puro verde. Mas logo a subida aperta e um tempo depois alcanço o selado da serra pela qual palmilho. E dali comecoa a descer pro outro lado, perdendo altitude aos poucos. Nesse trecho, uma picada a direita, meio escondida, travessa desperta minha atenção e resolvo dar uma fuçada. Assim começo a sibir a forte a íngreme e escorregadia encosta, me valendo as vezes do arvoredo ao redor pra me firmar. Não dá nem 5 minutos me vejo no topo daquele belo morro, numa clareira com visual panorâmico privilegiando td aquela região rural de Campo Gde. Subitamente surge um senhor da mata que se assusta com minha presença, mas ao me identificar como andarilho ele sossega e até me passa algumas infos. Diz q trabalha próximo dali, aquele topo se chama Mirantão e que a trilha é usada tanto como atalho (entre os morros) como pra remover lenha. Na verdade, a região tá cheia de pequenas veredas, algumas adentrando em sítios e chácaras onde dificilmente não haverá um cachorro pra te receber, ele frisa.
Me despeço e prossigo pela picada, agora descendo pro outro lado do morro até desembocar novamente na estrada anteriormente palmilhada, só que bem mais adiante. Não demora e logo aparece outra bifurcação, mas aqui tomo o ramo da direita, que toca pro fundo de vale a oeste e literalmente circunda o sopé do morrão logo adiante. A precária via de chão, chamada de Rua Carlos Lacerda, desce suave e não tarda em fazer a volta ao redor do supracitado morro. A mata em volta não deve em nada á da vila inglesa, lembrando muito a Estrada do Taquarussu pelo odor intenso de damas-da-noite ornando ambas margens.
Uma vez no fundo do vale a rota começa a fazer a volta, desviando sutilmente pra oeste, e surgem pequenas casinhas de arquitetura singular ao do que parece ser um minúsculo boteco caindo aos pedaços. Mas após um trecho farto de mata densa q envolve um setor estreito do vale, começo a ouvir o murmúrio de água próxima em abundância. Vindo do norte, um simpático límpido córrego se esgueira a beira da via, despencando em inúmeras quedas ao largo de toda sua extensão. Aquele era o ribeirão que empresta o nome ao vale, o Araçaúva. Uma trilha leva a suas margens mas eu opto por desescalaminhá-lo na raça mesmo, tomando cuidado com suas pedras e lajes lisas feito sabão. Num piscar de olhos desemboco num trecho represado do rio que formando um enorme e convidativo piscinão, q decerto deve ser bem frequentado em dias mais quentes. Pausa pra descanso e muitos cliques daquele maravilhoso lugar de fácil acesso. Olho procelular e não eram nem 10hr.
Dando continuidade a pernada por aquela agradável estrada de chão, a paisagem se mantem inalterada, os sítios rareiam e a tranquilidade preenche o ambiente com o som inconfundível do Araçaúva marulhando, agora mais manso e menos furioso, bem ao lado.O vale até então fechado se expande, ampliando seu horizonte de brejos e planície, com a morraria verde elevando-se logo atrás. Mas logo mais adiante o som inconfundível dum pancadão tocando ao longe me diz estar próximo da urbanização. Dito e feito, tropeço com o final da via anteriormente percorrida, a Mario de Andrade, onde alguns barracos e casebres se dispersam ao largo da via. Uma placa do Córrego das Nascentes em recuperação ambiental contrasta com a aparente degradação daquele minúsculo bairro periférico.
Pois bem, dali toco sempre pra noroeste pela via principal, sempre por estradas maiores sejam elas de paralelepípedos, asfalto e de terra mesmo. Primeiro tomo a José Carlos Pace, na Vila Niwa, e na sequência toco pela empoeirada Estrada da Maratona indefinidamente, envolto num ambiente q não raramente me remete a qq cidade do interior. No final, cerca de menos de 40min depois, é preciso atentar que a via rural palmilhada muda de nome pra Rua Cambuci, como q acompanhando uma linha de torres de alta tensão. Ao desviar dum morrote a estrada começa a descer em direção a uma ampla baixada, uma área larga de várzea e bem alagada. Mas de longe já é possível avistar a vereda mergulhando entre dois verdejantes vales, a noroeste.
Passando por cima dos trilhos da RFSSA, alcanço a vereda avistada e simplesmente toco por ela indefinidamente. Aqui não tem mais erro. Aquela é a famosa picada do Rancho Sapê (ou da Fazendinha, como tb é conhecida), q rasga um bom trecho de mata nativa da região. Antes de começar a trilha, vale a pena subir numa alta encosta da pasto ralo a esquerda, q dá uma panorâmica bem representativa da região, contemplando desde a Serra da Comunidade, em Paranapiacaba, até o maciço da Serra do Poço, mais ao sul.
Bordejando então sinuosamente a encosta direita, a picada se alterna de chão, lama, grama e pedregulhos. Marcas e erosões indicam q a galera de duas rodas tb frequenta a região, e não é pra menos. A rota tem pouco desnível e basicamente se mantem estável o tempo todo, ornada de flores na margem esquerda. Água não é problema, pois logo abaixo corre água cristalina no fundo do vale. Mas cuidado. Fui descer a suave encosta afim de me abastecer do precioso liquido e tomei um baita susto com uma enorme cobra tomando sol no caminho, que por sua vez se pirulitou mata adentro mais apavorada do que eu.
A pernada prosseguiu inalterada, embalada pelos raios do sol filtrado lindamente pela copa do arvoredo, até que finalmente a picada findou num estradao de chão maior as 11:30hr. Dali em direção uma estrada de paralelepípedos é um piscar de olhos, e não tarda a cair no perímetro urbano de Ribeirão Pires, na Vila Lopes pra ser mais exato. Daqui já tem busao pra estação, mas como ainda tava bem disposto resolvi seguir a pé. Toquei toda a Rua Eugenio Roncon, passando sob a Rod. Indio Tibiriça (SP-031), pra finalmente seguir pela Av. Francisco Monteiro até o centrão do municipio. Antes de embarcar no trem pra Sampa, abasteci a mochila com latas de cerveja gelada pra bebericar durante a volta, encerrando assim o rolê bem antes das 14hrs. Tempo suficiente pra chegar em casa e ainda por cima alcançar os finalmente e sobras do almoço.
A caminhada acima descrita não tem nada de espetacular, desafiante e muito menos  selvagem. Foi apenas uma forma saudável de matar o tempo ocioso conhecendo locais q aparentemente carecem de atrativos naturebas, ou q passam despercebidos em detrimento de outros mais notórios. O Araçaúva, Mirantão e o Rancho Sapê são apenas alguns deles. Do Mirantão, aliás, deu pra avistar outros morros de altitude respeitável assim como córregos com desnível considerável bem próximos, aos quais meu olhar já despertou interesse. Mas claro q tudo vai ser bisbilhotado no seu devido tempo. Resumindo, nem todo rolê precisa ser selvagem ou perrengoso pra valer a pena. Basta apenas estar disposto a fazer algo diferente pra não ficar mofando em casa, mesmo tendo tempo pra caminhar. Seja onde for.
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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