Perrengue na montanha

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Todo mundo tem uma história de perrengue para contar. Já acumulei algumas dezenas delas, que com o tempo fui esquecendo ao passo que novas perrengues foram acumuladas. Olhar para trás e avaliar o que aconteceu é um tanto que divertido, mas na hora…

Quem não passou por uma perrengue na montanha é por que não é montanhista. Os riscos são inertes às pessoas que almejam realizar projetos pouco comuns, pois um dia ou outro, depois de se avaliar tecnicamente e fisicamente capacitado, você parte para um desafio maior.

Lembro que meus primeiros perrengues foram muito leves comparados com os mais recentes. Uma vez fiquei apavorado por ter me perdido na Serra do Mar em São Paulo, outra, lembro que mesmo sabendo onde eu estava, tive que lutar contra cipós que enroscavam em minha mochila quando eu descia um rio na Maromba no Rio, depois que eu realizei uma travessia no Planalto de Itatiaia, que, diga-se de passagem, hoje é proibida.

Perrengue de verdade é quando a situação começa a fugir do seu controle e por isso a probabilidade de acontecer algo errado, que possa inclusive te levar à morte, é grande.

Em minha primeira experiência em alta montanha, experimentei o que é ter um princípio de edema cerebral por má aclimatação. Não foi nada demais, na verdade o tempo todo eu e meu parceiro, o Maximo Kausch, estávamos com o controle da situação, pois era só dar meia volta e descer. Entretanto, como não tínhamos experiência, naquela oportunidade achamos que havíamos passado por um grande perrengue.

Pedro Hauck e Maximo Kausch no cume do Cerro Plata aos 18 anos de idade.

Pouco tempo depois, escalamos sem equipamentos mínimos o Vulcão Osorno no Sul do Chile. Aquela sim foi uma situação de perrengue, entretanto, como não tínhamos na verdade a mínima noção de segurança e equipamentos de gelo achava que estava tudo bem, mas bastaria um deslize pela parte de um de nós para dizer adeus à vida.

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:: Os inconsequentes do Vulcão Osorno.

Em 2002 eu me vi diante do diabo quando fiquei, no cume do Huayna Potosi, na Bolívia perdido no meio de um White Out. Para quem não sabe, White Out é quando no meio de uma tempestade você perde a visão devido à neve e neblina. Literalmente o que se enxerga é um branco total.

Eu estava desescalando com o Leonard Moreira a segunda parede da montanha que leva ao cume. São 200 metros de escalada numa inclinação de 60° mais ou menos. O problema, além do White Out, era que um dos crampons do Leo estava solto e ele não conseguia descer. Vi o cara levar um pacote de vários metros e só parar lá embaixo na boca de uma greta… Fiquei desesperado, mas enfim a queda até ajudou, pois chegamos à base mais rápido. O problema era se orientar no meio do branco total com as pegadas da ida tampadas pela neve fofa.

Na Bolívia em 2002. Na foto Fabio Rogerio, Leonard Moreira, eu e Maximo.

Foram horas que se passaram como se fossem minutos. Não sei como fiz para não errar o caminho e cair numa greta, mas enfim consegui , mesmo desidratado e sem nada de energia do corpo.

Em 2004 vi pela primeira vez, e espero que única, gente morta em montanha. Eram dois alemães que caíram no Glaciar Polacos no Aconcagua, numa escalada que nem é muito difícil. Isso me mostrou que com no gelo a responsabilidade é grande, pois com a falta de atrito, você numa eventual queda ganha muita velocidade.

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:: Morte no Aconcágua – Coluna Pedro Hauck

Passei vários perrengues escalando em gelo. Uma vez no Chile eu vi uma avalanche vir em minha direção no Glaciar Colgante do Cerro Morado, foi muita sorte eu não ter sido engolido por ela, mas ficou passada a lição. Escalada só na época correta, pois gelo derretendo não tem sustentação.

Esse é um problema sério que está levando à morte muitos escaladores. O aquecimento global é uma realidade e eu venho acompanhando de perto as mudanças ambientais que estão sendo causadas pela retração das geleiras. Um dos perigos que advém deste problema é a atenuação do permafrost, ou seja, o descongelamento das rochas, que as tornam mais instáveis e propensas a cair.

Na Argentina em 2004, eu fui atingido por uma pedra do tamanho de uma bola de Handball. Tive sorte por não ter fraturado um osso, mas até hoje tenho uma cicatriz pequena do machucado que se formou. E se tivesse pego na cabeça?

A escalada no Cerro Negro por Pedro Hauck, Argentina 2008.

Infelizmente nas escaladas técnicas estamos cada vez mais tendo que nos deparar com este desagradável contratempo. Na supercanaleta do Cerro Negro na Argentina este ano, eu tive por várias vezes desviar das chuvas de pedras que vinhas das porções rochosas da montanha. A escalada teve que ser muito rápida para não sermos atingidos por elas, por isso solamos a via, pois era mais arriscado levar uma pedrada na cabeça do que cair nos 60° de inclinação da rota, embora se eu caísse, eu com certeza iria ter o mesmo final daqueles alemães no Glaciar Polacos quatro anos antes.

Algumas perrengues acontecem por que você não está preparado para o desafio, seja em experiência ou em equipamentos, outras ocorrem, pois é natural da via ou montanha que você está escalando, há escaladas que são realmente arriscadas e fazem seu coração saltar pela garganta. Nestes dez anos de montanhismo já passou de tudo comigo por todos esses motivos.

Tenho um amigo que tem uma filosofia bem simples que é uma formula para quem quer escalar, mas sabe da diferença entre perrengue e tragédia. Quando você está escalando e passou por dois perrengues seguidos, não espere pelo terceiro, pois aí já não tem volta.

Isso depende muito da sua avaliação. Eu por exemplo, por ter me acostumado com perrengues já cheguei na terceira muitas vezes sem perceber, como no Cerro Negro, quando depois de ter passado por uma chuva de pedras, ter escalado solando e estar já cansado depois de mais de 12 horas de atividade física extrema e ininterrupta, peguei um principio de tempestade no cume. A sorte é que foi só um principio. Se tivesse tido um White Out como houve naquela outra história, eu provavelmente não estaria aqui para contar esta experiência.

Muita gente critica, fala mal etc. Eu não acho que sou irresponsável por fazer estas coisas. Aliás, tenho tanta história de perrengue para contar que poderia escrever um livro. Felizmente estou vivo e nunca sofri nada de grave com elas, pois soube avaliar o que eu era capaz de fazer. Várias vezes desisti e em outra tive sorte.

Eu entendo que neste mundo demasiadamente normatista, e urbano as pessoas venham me criticar por que eu tenho este pensamento. Entretanto que graça tem uma aventura se você não corre risco. Se assim for, procure por uma montanha russa e não por uma montanha de verdade. No fim tudo vira conversa de acampamento base mesmo. Mas tenha cuidado! Faça o que eu falo, mas não o que eu faço.

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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