Petrópolis a Teresópolis 2002 – Parte 1

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Atitudes aparentemente impensadas podem resultar, as vezes, em excelentes resultados. O mês de julho havia iniciado e todos os meus planos de férias estavam cancelados. Planejei viajar para a Bolívia com o Élcio, escalar o Illiamani e percorrer a trilha inca, mas nada deu certo. O acúmulo de trabalho me permitiu poucas escapadas neste ano e o stress já alto continuava subindo quando o Pioli me ligou repassando um convite para escalar no Rio de Janeiro.

Não via o Primata desde nossa investida ao Ciririca pelas cumeadas no ano anterior e agora nos convidava para fazer a clássica travessia da Serra dos Órgãos. Tudo muito confuso, o convite em cima da hora, o alojamento no apartamento de uma amiga que ele conheceu um ano antes durante a mesma travessia, muitos talvez e senãos. Encontraríamos-nos em Petrópolis ou Teresópolis, pernoitaríamos no apartamento de uma desconhecida e depois seguiríamos para a trilha com o apoio de um grupo de caminhada local, dali seguiríamos para o Itatiaia escalar o Agulhas Negras ou iríamos para o Bandeira no Caparaó.

Também poderíamos escalar o Dedo de Deus se o tempo ajudasse. A meteorologia prometia tempo horrível para todo o sul e sudeste do Brasil durante o período. Voltando de uma reunião com um cliente o Fiat Tempra apagou em frente ao shopping Muller  e foi guinchado para a oficina. O cenário mostrava-se por demais confuso e negativo para cometer-se mais uma irresponsabilidade. Quando a neblina impede a visão tanto à frente como atrás, tornando parar tão perigoso como avançar pouco se arrisca acelerando. Se a razão de alguma forma está obstruída sigo pela intuição e não me importo com a aparente falta de lógica.

O Primata já havia partido e fazia turismo pelas cidades históricas de Minas para nos dar tempo. Coloquei o carro para uma revisão completa e começamos a separar os trecos prevendo chuva, sol, frio, calor, caminhada e escalada técnica. No Rio de Janeiro avisamos o Hugo Fialho, tio da Solange, para dispormos de um local próximo onde repor as energias, se necessário. Por telefone o Primata nos informava que chovia às bicas no Rio e apesar da aparente irresponsabilidade partimos na manhã de sábado 20/07/2002 com um mapa rodoviário e uma vaga idéia do que nos esperava.

Seguimos pela BR116 até Quatro Barras quando o motor começou a perder força e com muito custo conseguimos retornar até a oficina do qual o automóvel jamais deveria ter saído, ou entrado, ainda não sei bem. Depois de alguma conversa fiada e algumas desculpas esfarrapadas com o mecânico chega a Solange com o outro carro abastecido e pronto para a viagem. Transferimos toda a tralha para o porta malas do Corsa, novas despedidas e finalmente em definitivo na estrada. No ar aquela sensação de que nada estava dando certo e portanto este seria um passeio inesquecível.  

Parecia que estávamos nos dirigindo para a frente de batalha porque todo o movimento seguia na direção contrária. Dia claro com muitas nuvens e temperatura agradável. A Juliana dormiu bastante no banco traseiro e o Pioli saiu-se bem como co-piloto, principalmente ao cruzar São Paulo. A viagem estava tão tranqüila que toquei direto até Resende já dentro do estado do Rio de Janeiro. Paramos num posto para reabastecer e tomar informações e fomos insistentemente aconselhados a deixar a Via Dutra em Volta Redonda para não cruzar a baixada fluminense durante a noite.

Cruzamos Volta Redonda pelo centro da cidade, passando ao lado da CSN, e seguimos pela BR393. A noite provoca estranhas visões na estrada deserta. Uma seqüência de árvores ressequidas, daquelas que se vê nos filmes de terror, repetia-se a intervalos aparentemente regulares. Idênticas contra o céu escuro pareciam sugerir que estávamos rodando em círculos. Depois de Vassouras vimos uma grande linha luminosa no horizonte que se tornava mais brilhante a medida que nos aproximávamos. O incêndio devastava toda aquela paisagem formando uma única frente que avançava incontrolável pelas colinas. As labaredas levantavam-se a grande altura, crepitando aterradoras enquanto espalhavam nuvens de faíscas. Estava perigosamente próximo da estrada quando o ultrapassamos.

Em Três Rios viramos à direta tomando a rodovia Washington Luís em direção da cidade do Rio. Em Cascatinha novamente saímos da auto-pista para cruzar a Serra dos Órgãos com destino a Teresópolis, que de acordo com o Pioli, o Primata estaria nos esperando. A noite rolava agitada pelos botecos e danceterias a beira do caminho. Estrada tortuosa e muito estreita, não tardou em subir vertiginosamente com curvas cada vez mais fechadas. A mata espalhando-se por cima e precipícios revezando-se com paredões na lateral da estrada.

Muitas porteiras de chácaras e alguns mirantes depois começamos a descer vendo as luzes da cidade. Coletando informações chegamos até a rodoviária. O lugar estava infestado de bêbados, mendigos e vagabundos com lixo espalhado por tudo que é canto, estacionamos e saímos a cata de informações sobre a Rua Silva Jardim. Passava da meia noite quando ligamos para o Primata e descobrimos que estávamos procurando na cidade errada, ele nos aguardava em Petrópolis, a poucos quilômetros de Cascatinha onde saímos da auto-pista.

Muito jogo de empurra e até hoje ainda não sei de quem é a culpa, mas a bruxa ainda estava junto, isto ficou claro. De novo na estrada fazendo o caminho de volta, a paisagem retrocedendo como num filme rebobinado até entrar novamente em Cascatinha. Em Petrópolis as coisas começam a engrenar. Achamos o endereço com facilidade e após descarregar, guardei o carro em um estacionamento próximo que estava previamente tratado. Conhecemos a anfitriã que nos recebeu carinhosamente colocando todos muito a vontade.

O Primata havia tomado conta de um quartinho e o transformou numa bagunça, espalhando desordenadamente seus trecos pelo chão. Alojamos-nos no chão da sala onde estendemos nossos isolantes e sacos de dormir. A viagem fora ótima, mas estávamos muito cansados e dormimos como pedras antes de começar a discutir quem foi o culpado pelo mal entendido.

Acordamos tarde naquela ensolarada manhã de domingo e após um rápido lanche terminamos de montar as mochilas e partimos para a rodoviária em frente. Distraímo-nos com os gatos sem teto que moram no canal de esgoto que já foi um córrego enquanto esperávamos o ônibus. Dali seguimos até um terminal onde fizemos a baldeação tomando outro ônibus para o bairro Bonfim.

Petrópolis tem um rio poluído e mal cheiroso com duas avenidas, uma de cada lado, e inúmeras vielas que sobem os morros. Um centro histórico relativamente bem conservado, algumas velhas fábricas abandonadas, amontoados de construções sem valor empilhadas pelos barrancos das margens deste rio, de suas duas avenidas e muitas favelas dependuradas nos morros ao redor. Mas os morros que cercam este vale são maravilhosos e fica fácil imagina-lo ainda verde com um rio de águas límpidas e revoltas debatendo-se contra as pedras ao lado de uma tranqüila estrada colonial serpenteando pela sombra do frondoso arvoredo.

Dos numerosos mirantes se descortinam vistas magistrais emolduradas pelas serras. Há pedras para todos os gostos e estágios técnicos, em todos os quintais se iniciam vias de escalada. Pena que algumas acabem debaixo do assoalho de barracos paupérrimos. Motorista por aqui tem que ser muito bom para manobrar nestes corredores tortuosos que chamam de rua. Descemos no ponto final, bem no meio da favela, e começamos a subir. A ruela estreita empina- se ainda mais com as casas empoleiradas umas sobre as outras num labirinto caótico. Do lado esquerdo há um córrego no fundo da grota e muitos terraplenos, quase todos ocupados por botecos.

O sol forte apenas piora o cheiro de urina e sobe-se desviando de montes de fezes espalhados pela calçada. Olhares curiosos nos seguem das janelas e intimidados procuramos esconder as câmaras fotográficas e outros objetos do desejo. Chegamos a um grande lajeado onde corre um riacho, tem um bar e muitas pedras pichadas, é o playground do Bonfim. No chão tem côcô de cachorro e de gente, nos bancos e mesas toscas tem muito bêbado e mulher feia tomando sol nas pedras.

Paramos para a cerveja de despedida e no balcão pedi uma Itaipava, a pérola da região. Enquanto esperava ser atendido sob os olhares atentos da freguesia um nativo de pele escura e alto teor alcoólico aproximou-se, e apontando-me com o dedo disse quase caindo: – Já sei, eu sei sim. Você é franceis ou alemão.Todos dentro do bar olharam fixamente para mim e o silêncio só era quebrado pelo ruído do rio debatendo-se contra as pedras a distância. A copa da Ásia havia encerrado-se poucos dias antes com o jogo Brasil X Alemanha e a derrota para os franceses na anterior ainda incomodava os brios mais nacionalistas.

Pensei rápido e sem gaguejar disparei: – Que é isso cara? Sou pentacampeão!!!  O sujeito desmanchou-se em sorrisos e fez sinal de positivo com ambas as mãos, afastando-se satisfeito enquanto o murmúrio de conversa voltou a encher o boteco. Saí de mansinho com as cervas e rapidamente reiniciamos a caminhada antes que outros tivessem idéias brilhantes de como depenar os gringos recheados de dólares e filmadoras nos mocós da serra.

As duas da tarde registrávamos nossa entrada no Parque Nacional da Serra dos Órgãos depois de ter vencido o último trecho do Bonfim dominado por chácaras que cultivam verduras e hortaliças em terraplenos a moda inca. Uma guarita de alvenaria com teto curvo de concreto abriga os guarda-parques que registram os visitantes e esporadicamente também revistam a rapaziada para impedir a entrada de muita bebida, drogas e armas no parque.

Continua ….

Sem perda de tempo continuamos a subir pela trilha muito batida que corta a floresta em direção ao Açu.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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