Pico da Neblina – Parte 4

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Espreguiço com vontade e pulo da rede. Um baita dia, aquele azulão no céu. Beleza pura quando olho pro pico da Neblina e pra serra do Camelo: estão despejados de nuvens, avistando-se, nos mínimos detalhes, o paredão sul do Neblina, esbranquiçado de liquens, e o paredão sudeste do Camelo, igualmente, coberto por essa associação de fungos e algas.


Leia a terceira parte do relato

Devido à localização, ambos apresentam pouca vegetação, motivo por que a rocha apresenta-se bem exposta. Destaca-se numa árvore, próxima ao local onde fica nossa “cozinha”, diversas orelhas de pau (um tipo de cogumelo gigante) formando degraus naturais pespegados em seu tronco. Lembram, pra quem é católico, pias de água benta. Previdente mundo vegetal esse que tenho o prazer de conhecer. Assim, muitas sementes de árvores resguardam-se no interior de resistentes cascas. Destaco as da castanha de macaco por seu curioso formato que remete às minhas raízes gauchescas. Em formato de cuia, o duro invólucro que as envolvem contém em média quatro a cinco sementes, culminando com uma sofisticada tampa que lembra mitra de bispo.

Deixamos Bebedouro Novo às 8:15, chegando em Pau do Breu, às 9:27. Assim apelidado, o paradouro deve seu nome a uma resina excretada por certas árvores, utilizada na vedação de canoas e utensílios esburacados. Devido ao seu odor, é usada como defumador e, ainda, como repelente de mosquitos. Afora isso, a textura do pau de breu é gosmenta de maneira a impedir que as formigas façam ninho em seus troncos. Uma resina de mil e uma utilidades! Há, porém, outras árvores, cujas vagens destilam, também, uma substância gosmenta, cor de caramelo, duma textura de látex, visando à proteção contra formigas e cupins. Essa natureza não prega prego sem&nbsp, estopa! A quantidade e variedade de cipós são de encher os olhos. Alguns lembram cobras enrodilhadas. Até me pregaram um susto!

Do paradouro Pau do Breu até o do Campeão, onde chegamos às 11:05, há um declive bem acentuado, atapetado de folhas secas, que exige cuidado, porque se bobear, o escorregão está garantido. Claro está que após uma descida, vem o quê? Acertou, meu caro Watson, se pensou&nbsp, numa íngreme subida. Pra diminuir o impacto do ascenso, degraus escavados, naturalmente, no solo, facilitam o esforço despendido. Há muitos animais de caça na área, por isso, não faltam cutias, tatus, capivaras, porcos do mato, antas e mutuns, cujas penas são retintas de tão pretas. Segundo Messias, sua carne é melhor que franco congelado.

Ao longo do caminho, cruzamos com um grupo de yanomamis, espingarda a tiracolo e jamaxi vazio, sinal de que a caçada não foi exitosa. Um feixe de penas de mutum, fincado mais adiante, sinaliza a passagem deles. Paramos uma hora no Campeão onde Pepe fica contando causos, partindo ao meio dia deste paradouro. O caminho, inicialmente, é morro acima. Segue-se uma descida e nova subida, dessa feita bem empenada. Uma trégua, palmilhando um trecho plano, embora de curta duração. O restante da trilha retorna à sua feição aclivosa e áspera, quando às 13 horas, alcançamos a planura do paradouro Laje, cuja altitude já inteira respeitáveis 1.700m.

Pepe explica que a serra por onde subimos fica entre o maciço do Neblina e a serra do Barro. E fico alucinada pela belíssima semente de macaco cujo pedúnculo amarelo, lembra uma minicenoura, encimada por um broto verde em formato de castanha do caju. E não só esta semente me deixa deslumbrada. A redonda cunuri, dum marrom luzidio e tessitura suave, no seu interior, exibe uma coloração verde-pistache. Um colírio pros olhos os líquenes brancos, amarelos e vermelhos, agarrados aos troncos de árvores caídos na trilha. São um contraponto colorido à redudante tonalidade verde-escura da mata.

Almoço a sempre frugal refeição composta de&nbsp, bolachas e suco, enriquecida – ainda bem! – pela mistura de nozes, amendôas, castanhas do Pará e do caju, previdentemente, trazida de Porto Alegre. O Laje deve tal nome a um extenso e empinado lajedo, formado por rochas cobertas de limo escorregadio. Daqui pra frente, tem início um longo trecho pedregoso, estreito, tipo canaleta. Porque se está caminhando dentro duma mata muito fechada e úmida, as árvores são revestidas por musgos que pendem de seus galhos, tornando a paisagem um tanto quanto espectral.

O caminho, muito empenado, exige que se use as raízes como agarras na subida. Ainda bem que abundam a torto e a direito. Até então encapsulados no interior duma mata compacta, formada por árvores de grande porte, com pouca penetração de luz solar, a vegetação cede lugar a um habitat povoado por uma infinidade de bromélias, arbustos e palmeiras. Pequenos veios d’água brotam no terreno pedregoso. À medida que se ganha altitude, entramos numa zona em que a claridade começa a dar o tom. Um corredor, formado por açaís e bromélias, precede a nossa chegada ao Mirante onde chegamos às 16 horas. Esta região apresenta uma crista quase contínua de serras destacando-se dentre elas a do Imeri onde estão o Neblina, o 31 de Março e o Camelo.

A visão subjacente do vale, das serras e dos picos a perder de vista é espetacular. Dois picos, porque mais altos e pontudos que os outros, destacam-se ao sul: Brás de Aguiar e Guimarães Rosas. O primeira tem o cume em forma de pirâmide, já o segundo o tem mais achatado. À nordeste, o largo platô da serra do Barro, avistada durante a navegação no Cauaburis, embora dum ângulo bem diferente do que entrevejo agora. Araras e tesourões rasgam o céu. A altitude&nbsp, beira os 2.120 m. Nuvens gordalhufas projetam zonas de sombra no verde compacto da floresta, situada bem, mas bem abaixo de onde nos encontramos. Pepe aponta a serra pela qual subimos, coberta duma espessa vegetação, sucedida por essa zona aberta, ensolarada, tão distinta da mata cerrada pela qual até bem pouco trilhávamos. Do Mirante até o acampamento base, levei uma hora e meia porque parei muito pra fotografar e apreciar a vegetação tão distinta daquela até então percorrida.

No solo pedregoso&nbsp, distingo, entre outras pedras, blocos de granito branco. Os elegantes açaís destacam-se no azul do céu. Filetes d´água escorrem entre as pedras, formando pequenos poços de água bem clarinha, evidenciando a origem calcárea das rochas. E as flores, antes raras, agora abundam, destacando-se belos exemplares de orquídeas. As agora onipresentes bromélias são figurinhas fáceis. Algumas abrigam em seus reservatórios minúsculas pererecas. Difícil fotografá-las, todavia Ely foi recompensado pela sua paciente procura, capturando em sua lente Nikkon o diminuto anfíbio. Depois duma descida cujo desnível é 120 m, chega-se às 17 e 30 ao acampamento base, plantado às margens do córrego Tucano. &nbsp,

Como estamos numa época de pouca chuva, escorre por entre seu leito pedregoso um fio de água cristalina e fria. Por isso, não sigo o bom exemplo de Marcelo que, corajosamente, toma um banho completo. Limito-me tão-somente a uma pífia lavação de mãos e rosto, salgado de tanto suor destilado. A perspectiva do Neblina e do 31 de março é bem diferente daquela avistada no Bebedouro Novo. Aqui, exibem os dois picos seus paredões noroeste. Mais uma vez – merda, merda e merda – encontram-se envoltos por uma aureóla de nuvens.

Bem em frente ao acampamento, a serra do Montilla e ao longe a do Baruri. O rango, pra variar, vai ser massa com, tchan tchan tchan, molho rosé. Lili faz um arranjo com maçarandubinhas (flores secas cujo formato lembra uma rosa, embora duma coloração amarronzada) para enfeitar nossa mesa, que nada mais é do que uma lona estendida no chão. Sobre a fogueira, feita com galhos e pedaços de madeira catados pelos índios, pendem as borbulhantes panelas. Nosso incansável guia desdobra-se em dois, não, três Pepes. Enquanto cozinha, arruma nossas redes e, ainda, tem tempo de pegar algum remédio na ambulância, como é chamada a branca caixinha retangular de primeiros socorros. Tão bom tudo isso: o ruído de água escorrendo entre as pedras do córrego, os pios dos pássaros se recolhendo pros seus ninhos e as risadas dos índios, provavelmente, zombando de nós, os caras-pálidas, enquanto a lua crescente desponta no céu estreladíssimo.

Pico da Neblina

Acomodadas num espaço pequeno, coberto com uma lona azul, as redes tiveram de ser colocadas bem próximas umas das outras, o que impediu que eu me esticasse, confortavelmente, na minha. O resultado foi uma noite mal dormida, custando horrores a pegar no sono. Se preguei olho 3 horas, foi muito, razão por que desperto às 6:30, sem contudo, sentir vestígio algum de cansaço. Afinal, hoje é o dia do ataque ao cume do Neblina e a adrenalina corre lépida e faceira através de minha corrente sanguínea.

Vejo que o tempo está nublado…hum….só falta chover durante a subida, meu jesus cristinho!! Nem bem expulsara tais presságios negativos, um leve chuvisco dá o ar da graça. Entretanto, graças ao bom São Pedroca, é de pouco monta: molha apenas carrapato, hehehe. Um pouco depois das 8, o céu começa a desanuviar, mantendo-se levemente toldado. Ely, quando embarcara na voadeira, ao sair da comunidade Yá-Mirim, cortara o dedão do pé. Mas seus males não pararam por aí. As bolhas, adquiridas no primeiro dia de trekking, só pioraram ao longo dos dias de dura caminhada. Seus calcanhares estão em petição de miséria. Perdeu não só um naco de epiderme como um pouco de derme. Desiste, e não podia ser outra sua decisão, de fazer o cume. Difícil escolha a do paulista. Nem sei como conseguiu forças pra caminhar durante esses três dias. E tem a volta, por isso se resguarda, permanecendo no acampamento, juntamente com Bosco e Orlando que lhe fazem companhia.

Partimos. Auderiano, Delegado e Messias, nos acompanham. Perto do acampamento-base, fundas escavações denunciam a existência dum garimpo velho, detonando o terreno circundante. A primeira parte da trilha até o igarapé do Tucaninho se faz, atravessando um brete enlameado. Já sabia de sua existência e por isso comprara umas lindas botas sete-léguas bicolores azul e laranja. Nem foi preciso, contudo, calçá-las. Minhas botas de trekking deram conta do temido lamaçal. Bromélias mis, e musgo, muito musgo recobrindo os troncos das árvores, alguns duma linda tonalidade rósea. Quando já envelhecida, essa vegetação tão verde quando jovem, adquire uma esmaecida tonalidade marrom. Dois bacuraus (também conhecidos como curiango ou noitibó), ave que guarda certa semelhança, não só na aparência como nos hábitos noturnos, com a coruja, encontram-se, placidamente, pousados numa pedra. Sua alimentação consiste de insetos, como traças e mosquitos, motivo por que voa baixo. Foi a única ave que nem se abalou com nossa presença. Deu pra fotografar e filmar as impassíveis criaturas na boa.

Brota uma quantidade legal de flores nesse trecho, destacando-se lindos cachos de orquídeas de variegadas colorações e numerosos espécimes de plantas carnívoras. Ao chegarmos ao Tucaninho, abastecemos nossas garrafas nas águas avermelhadas embora claras deste igarapé. Do céu, que se tornou densamente nublado, começa a baixar uma bruma que encobre o paredão noroeste do Neblina cuja coloração escura transmite uma sensação de clausura. Já se começa a sentir um ar fresco e visto uma camiseta de manga comprida.

Do igarapé do Tucaninho até o Mirante é puro trepa-pedra. Uma sucessão de lances rochosos, em número de seis, exigem o uso de cordas, ancoradas em raízes de árvores, para ajudar tanto na subida quanto na descida. O grau de dificuldade não ultrapassa o primeiro grau. Mais pra boulder que escalada propriamente dita.

À medida que se ganha altura, avista-se outra serra, a do Ouro, deixando entrever entre a vegetação que reveste seus paredões, trechos de arenito avermelhado. Uma mancha branca, no meio da vegetação que reveste o vale situado 600 m abaixo, denuncia um garimpo velho, justo no sopé da serra do Ouro. O ruído matraqueante das araras canindés, cortando o cinzento do céu, é o único barulhinho bom que se escuta. Do Mirante até o topo, mais trepa-pedras que dispensam, todavia, o uso de corda, salvo um mais empenado próximo ao topo.

A vegetação, até então abundante, rareia a olhos vistos e quando estamos a justos 200 m do topo, apenas gramíneas crescem entre as escuras rochas. Messias e eu somos os primeiros a atingir o cume do Neblina às 16:10. O jovem quando põe o pé naquele lugar, considerado sagrado pelo seu povo, grita entusiasmado: Neeebliiinaaaa!! Hasteada num mastro, a bandeira brasileira acena, trêmula, as boas vindas. Os demais integrantes da expedição não tardam a chegar. Abraços e congratulações são trocados entre nós. Emocionada, verto algumas lágrimas, enquanto Lili me dá um abração. Marcelo procura o tal livro de assinaturas mas não o encontra. Eu nem faço questão de tal registro. Pra mim é dispensável. Basta saber que consegui chegar onde havia planejado. Essa é minha satisfação. O resto é fricote.

Faz frio e venta no cocoruto desse colosso rochoso com seus respeitáveis 2.993 m. Seria suportável o frio se se pudesse enxergar a paisagem ao redor. A espessa névoa não permite que se distinga nada além de 10 m. Como num passe de mágica, na direção leste, as nuvens, por breves instantes, dispersam-se e somos agraciados pela fugaz visão da magnífica paisagem que se descortina abaixo de nós: vales, picos e serras a perder de vista. Dura pouco, infelizmente tal cenário!

Resignados, tratamos de jantar e nos deitamos cedo, porque o frio deve beirar os 6º C. Lili, Marcelo e eu ocupamos uma barraca enquanto Pepe, Messias, Auderiano e Delegado ocupam outra. O topo, de pequenas dimensões, não comporta mais que 4 tendas. Minha garganta começa a doer e, sem hesitar, engulo um Bactrim F. Alegremente, nós três tagarelamos por um bom tempo enquanto o sono não vem. Eita vida boa essa!! Quero mais e mais e mais provar dessa adrenalina!! Tô viciada, tá ligado?

Continua…

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