Pico da Neblina – Parte 5

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Depois duma noite mal dormida pra caramba, acordo às 6. O motivo é meu nariz entupidão, embora a garganta não mais me incomode, graças ao poderoso antibiótico ingerido ontem.


Leia a parte 4 do relato

Choveu e ventou durante quase toda a noite. Pinta uma preguicite de levantar pois o céu mantém-se nublado e a temperatura beija os 8º C. Mas nem tudo está perdido. Marcelo nos chama pra fora da barraca pra ver o rasgo vermelhão do nascer do sol, pintando na banda oriental. É….o dia está prestes a dar a cara a tapa.

O agudo e espaçado som dum breve bipe chama minha atenção. Pepe, indagado, esclarece ser proveniente duma espécie de grilo que habita o Neblina. Seu som nada tem de estridente se comparado àqueles produzidos por seus primos gaúchos. Pesquisando, tomo ciência de que a cantoria é produzida pelo macho pra atrair a fêmea em época de acasalamento. O som origina-se do atrito dos pelos existentes em suas asas. Quanto mais barulhento é seu canto, mais afastada se encontra a fêmea, suavizando-se quando ela já se encontra acochadinha junto dele. Gesto delicado desse animal em baixar a bola quando já conquistou seu par, hein? Tem muito homem que devia aprender com esses insetos tais requintes de sedução, não é mesmo? Os grilos do Neblina, por óbvio, ainda se encontram sozinhos, os queridos.

Infelizmente, não deu pra visitar o pico 31 de março. Tudo tão nublado. Fazer o que lá, se impossível visualizar não só a paisagem circundante como um novo ângulo do Neblina visto duma perspectiva diferente? Só pra dizer que fomos? Nossa vaidade, miúda, nos desobriga da visita ao segundo pico mais alto do Brasil. Bom motivo pra retornar!

Às 8 e 30, em meio a um denso nevoeiro que não dá trégua, iniciamos o caminho de regresso ao acampamento-base. A vegatação encontra-se branquinha de geada. Devido a pouca luminosidade, as teias de aranha são perfeitamente visíveis. À medida que perdemos altitude, as espessas brumas se dissolvem, podendo ser avistado, mais uma vez, o extenso maciço rochoso da serra do Ouro. Mais ao longe a do Gelo. A trilha do acampamento-base ao igarapé do Tucaninho, quando vimos, foi basicamente um declive. Agora, na volta, o que era descida, se torna subida. As pernas, cansadas pela exigência do dia anterior, acusam fadiga, mas nosso ânimo continua animadíssimo.

Consigo, finalmente, ver a féerica coloração azul vermelha das araras canindés enquanto desço do Neblina…ulálálá!! Deveras bizarra a situação em que encontramos Ely quando chegamos às 14 e 15 no acampamento-base: como se houvesse sido congelado, sofrendo, ainda, o efeito daquela antiga brincadeira infantil de estátua, o grandalhão continua esparramado na rede, na mesma posição que ocupava ontem, quando dele nos despedimos rumo ao cume do Neblina.

Próximos, sentados, no chão, eis o famoso Brizola e seu parceiro, Paisano, natural da Colômbia, dono de encovados olhos azuis. Circula à boca pequena um boato de que é fugitivo das Farc, motivo por que evita de ir a São Gabriel pra não topar com membros dessa organização, que, volta e meia, descem o rio Negro pra fazer compras na cidade. Paisano, apesar de seus 70 anos, não se furta de carregar nos costados, mochila pesando mais de 30 kg. Não só a respeito do velho mineiro colombiano pipocam as fofocas. Brizola, também, leva no cangote, uma mochila de maledicências. Dizem as más (?) línguas que sua atividade no garimpo é tolerada por militares e polícia federal em troca de informações sobre a biopirataria na região. Olha, se for verdade mesmo, pela primeira vez, não me nego a admirar seu dedo durismo. Dedura, Brizola, dedura, sim, essa gentalha!!

Ely, definiu, com acuidade a função de Brizola: síndico do Neblina. Tantas as estórias que se contam por aqui que vá lá discernir ficção de realidade! Ah, tal apelido deve-se à propaganda em favor do carismático político gaudério na eleição presidencial de 1989. O garimpeiro, sabiamente, não se deixou iludir, nadica de nada, pela verborragia arrogante de Collor. Ely troca duas lanternas, um tubo de Gelol e alguns analgésicos por quase 3 gramas de ouro (a cotação desse metal está em torno de 40 reais o grama) que Brizola trouxera da Venezuela. Aqui, nos cafundós da selva amazônica, o escambo, ainda, é moeda corrente! Normal, garimpeiros trocarem ouro por objetos de que necessitem.

Desde que se chegou no acampamento-base, há 2 dias atrás, o tempo permanece nublado. Nem uma resteazinha de sol conseguiu furar o bloqueio da compacta massa gasosa que encobre nosso céu de anil. À tardinha, ventos de rajada que se prolongam durante boa parte da noite, me deixam um tantinho preocupada, enquanto, deitada na barraca, tento dormir. Bate um receio de sair voando junto com a tenda. Enfim, vencida pelo cansaço, pego no sono, ninada pela adorável vibração dos tuque-tuques metálicos arrotados pelos sapos-martelos.

Os sons da floresta

Outra noite mal dormida. Se preguei os olhos foi apenas por umas 3 horas, se tanto. Brizola aparece enquanto estamos nos aprontando pra deixar o acampamento. Pede um analgésico pra Cobal, amigo seu. O motivo – bizarríssimo – deve-se à queda do garimpeiro que se estatelou de bunda, amassando as bolas nas pedras, pode?

No acampamento-base, há umas flores lindas, parecem lanternas vermelhas com pingentes brancos. Partimos, às 8 e 30, em meio a um céu nublado, rumo ao Bebedouro Novo. Agora que já não tenho a ansiedade da vinda, curto mais a paisagem e os sons que povoam este rincão amazônico. A mudança na vegetação é nítida enquanto se vai perdendo altitude: as palmeiras rareiam, a variedade e quantidade de flores, que se concentram no trecho Neblina-Mirante, onde a forte incidência da luz solar permite uma intensa floração, deixam de colorir a paisagem e as exuberantes bromélias, cativas dos campos de altitude, são deixadas pra trás.

À medida que penetramos no confinamento da zona escura e cerrada da mata, torna-se mais audível a vibração dos sons da floresta. É algo indizível, só estando aqui pra saber. Raros os momentos de absoluto silêncio pois logo são preenchidos pelo matraquear das gritadeiras araras canindés, dos quase imperceptíveis ruídos de folhas que, num balé gracioso, evoluem no ar antes de pousar no chão, do estrondo de árvores desabando, de galhos partindo-se, do sonoro pio de aves e cricrilar de insetos, de cascas de árvores se soltando dos troncos. Uma sinfonia de barulhinhos bons. Não à-toa, Villas Boas pirou o cabeção e deu uma guinada de 360º, alterando sua concepção musical após uma estadia de alguns meses, embrenhado na mata amazônica.

Alcançamos Bebedouro Novo às 15 horas. Suada e suja após quase 4 dias sem banho, vamos Lili, Marcelo e eu até o rio Cuiabixi. Lavo o cabelo, pedindo emprestados o xampu e o condicionador de Lili. Enquanto lá estamos, Messias aparece. Quando o jovem yanomami percebe minha nudez, vira, envergonhado (?!), os olhos, mantendo-se, durante o tempo todo de sua permanência no rio, de costas pra mim. Salvo quando vai buscar água pra encher as garrafas, num ponto mais acima do que nos encontramos, quando, então, arrisca um olhar fugidio em minha direção. Que malandrinhos esses guris. Não perdoam nem uma velhota como eu, hehehe.

Limpinha e revigorada, volto pro acampamento, mas a quantidade das miudinhas e ruivas abelhas aramãs, obriga-me a procurar refúgio dentro da nuvem de filó rosa que envolve a rede, onde estico o corpo com satisfação. E assim, fico ali, protegida daquelas pentelhudas, enquanto converso com Ely sobre fotografia. Nossos papos sobre o assunto são intermináveis. O pobre querido continua com os pés em frangalhos. Dá dó de olhar seus calcanhares inflamados. Nem sei como ainda consegue caminhar. Tem um quê de estóico esse homem. Em seu lugar, eu há muito teria jogado a toalha. Lili, deitada na rede ao lado, com voz pausada, conversa com Marcelo sobre suas andanças por este mundão. Moça mais viajada não conheço. E segundo alardeia, deve ser uma cozinheira de mão cheia. Lili, me aguarde, viu? Ainda vou a Minas, provar de teus quitutes! Marcelo, desde que iniciou a expedição, pegou no meu pé. Vira e mexe imita a personagem Bozena, do seriado Sai de Baixo, gozando de meu sotaque gaúcho com um “porque lá em Pato Branco”. E arremedando minha insaciável curiosidade (reconheço que atordoo um pouco os guias com perguntas mis), criao uma frase que vira bordão e motivo de hilariedade geral: “Pepe, uma flor é vermelha por quê? Por quê, Pepe a flor é vermelha?” E não pára por aí o espírito gozador do fofo.

No decorrer de nossa convivência, simulou um flerte comigo, fazendo bico com os lábios, num simulacro de beijinhos. Nem dá pra acreditar que esse palhaço, doutor em matemática, obteve seu grau, defendendo tese sobre a mecânica dos corpos celestes. Chique né? Orlando, um dos carregadores yanomamis, vermelho de febre, provávelmente, causada pela malária, pede um analgésico. Assim, forneço-lhe os últimos que trago comigo pra amenizar seu desconforto térmico. Pouco importa se eu fico sem. Ele é que tá precisado, não eu. É dureza a vida de quem habita esta floresta, podem crer!

Após a janta, Pepe Legal, com seu bom humor habitual, narra algumas estórias de sua vida. Abandonando a casa paterna aos 14 anos, rodou pelo Pará fazendo biscates, quando, dois anos depois, foi trabalhar num garimpo no alto Tapajós, ele mais um irmão. Fincou raízes durante 6 anos até o assassinato desse seu mano. O motivo Pepe não revela. Presumo que tenha sido ou por desavenças de dinheiro ou por causa dum daqueles tragoléus tão comuns entre garimpeiros. Foi daí que abandonou a garimpagem a pedido de sua mãe. Descasado, suas duas filhas vivem com a ex-mulher em Manaus. O gesticulante guia, animado por nossa atenção, explica entre coçadas na cabeça, gesto bem típico seu, que o barco vindo de Manaus, quando o rio Negro tá cheio, demora três dias pra chegar a São Gabriel. “Um fandango só, música ao vivo, três refeições (enche a boca, satisfeito, ao falar do rango), camarote a 800 real. E quem tem pouca grana, usa o redário.” Interrompo e indago quanto custa a rede. “240 conto”, responde, ajeitando as bolas, naquele típico gesto bem masculino. E, ignorando a interrupção, prossegue, imperturbável: ” no deque superior se joga cartas”, acrescenta, com um sorriso levemente nostálgico. “Quanta gente, Pepe, cabe no barco?”, indago eu novamente, dando corda de modo a evitar que o papo esmoreça. “Ah…..acomoda bem umas 200 pessoas”, responde ele com seu sotaque gostoso de nortista, justificando que “quando o rio tá baixo, demora uma semana pois o barco à noite vai atracando nas praias”, finaliza ele, coçando pela enésima vez a cabeça. E me inteiro que, além das paradas noturnas, há as habituais: uma em Barcelos e outra em Santa Isabel, onde quem quer desce enquanto o barco descarrega mercadorias e pega nova carga. Bacana demais deve ser essa trip, né?

Aos apressados – pra quem tem urgência urgentíssima, o lance é ir de avião mesmo – sempre resta o recurso da lancha expressa cujo trajeto leva 24 horas, ainda que esteja o rio na vazante. Tão bom saber disso tudo ao vivo e a cores! A robusta lua crescente ilumina a clareira situada adiante da armação onde nossas redes estão penduradas.

Eu espicho o pescoço pra curtir melhor sua luminosidade enquanto me aninho no saco de dormir já que o frescor da noite exige tal aconchego. E o conversê perde seu vigor até cessar por completo. Que peninha….não me incomodaria nem um pouco de escutar Pepe Legal desfiar seu rosário de causos a noite inteira. Seria uma novena pra lá de interessante, hehehe. Infelizmente, nem só os pássaros obedecem ao toque de recolher, aqui, nas entranhas da mata amazônica, acabando-se o que era doce….por enquanto!!

Continua…

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