Pico Maior dos Três Picos – Salinas – Via Leste – cont.

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Acordamos, pegamos as mochilas, já preparadas no dia anterior, e, às 4h30min rumamos para a base da via, aonde chegamos às 5h20min.

Veja a primeira parte

Começamos a nos equipar e organizamos as cordadas: Igor e Márcio seguiriam na frente, identificando o traçado da via, e Fábio, Rogério e Júlio viriam em seguida. Nos primeiros raios de sol, às 6h, iniciamos a escalada. E que escalada! Para quem não conhece a via, trata-se de uma parede de praticamente 700 metros de pura rocha, com todos os tipos de lances de escalada, inclusive duas chaminés, que muita gente considera estranhas. No meu caso as chaminés não me preocupavam nem um pouco. O grau de exposição é um E3 clássico, com as proteções bem distantes umas das outras.

Entrei guiando o mais rápido que podia, pois todos estávamos encucados era com a volta e como achar os rapéis numa eventual e possível descida noturna. Afinal, resolvemos entrar com duas cordadas na via, sendo que uma era de três participantes. A maioria dos montanhistas iria dizer que isso é “doidera” (e o pior é que é mesmo!). As nove primeiras enfiadas são uma série de lances de III e IV graus, em agarras e aderências, nem tão difíceis, mas que requerem cuidado nas passagens, principalmente pelas distâncias entre as proteções. Enquanto subíamos, a ficha ia caindo mais um pouco… Já tínhamos escalado por cerca de duas e meia e parecia que nem tínhamos saído do chão, porque sempre que olhávamos para cima ainda tinha muita rocha para subir.

De repente, eu já estava quase na P4 (parada 4), e via o pai fechando a última cordada lá embaixo, o Márcio logo antes de mim, Fábio e Rogério mais abaixo, praticamente todos à francesa, quando aparece uma nova dupla iniciando a escalada. Só que eles começaram a subir e, para não nos atrapalhar, creio eu, em alguns trechos saíram do traçado original da via. Só que subiam com uma velocidade e uma facilidade incrível. Pensei comigo: “esses dois são …!”. Aquilo que eu demorei 2 horas para subir, eles subiram em uns 40 ou 50 minutos. E o mais incrível e bonito de se ver é que o guia dessa dupla parecia subir andando os lances de IV em aderência e agarras. Suas mãos serviam apenas para equilibrar. O cara parecia flutuar. Eu realmente fiquei impressionado. Assim, rapidamente ele chegou até mim. Conversamos rápido e ele me disse que estava passando pela Leste para ganhar tempo, pois estava indo com seu parceiro para o setor dos tetos, mais à esquerda, para tentar acabar uma conquista que havia iniciado no ano de 2001. Tratava-se da via identificada com X1, no livro de Tartari. Ele me passou orientações e seguiu praticamente andando pelos lances acima.

Na P4, o Fábio, que puxava a segunda cordada, chegou até mim e então me disse: “Igor, viu quem passou por nós? Esse aí é o Alexandre Portela!”. Aí entendi o porquê da facilidade dele para “andar” naquela parede. Foi realmente uma honra encontrar uma das lendas vivas do montanhismo brasileiro, ainda mais numa via clássica como a Leste.

Conforme o Portela nos alertou, continuei guiando o mais rápido que podia, pois estávamos em 5 pessoas na Leste, e segui tocando para cima. Passei em dois pontos cruciais da via, onde normalmente os escaladores acabam errando o caminho, mas, para minha surpresa, havia duas setinhas indicativas feitas com magnésio. Foi o Portela que deixou o caminho indicado para a gente.

Chegamos então no bloco, na base da primeira chaminé da via, e logo em seguida a segunda cordada se juntou a nós. Um dos lances mais legais da via é exatamente sair do meio dessa chaminé e fazer a horizontal para a esquerda para se chegar à P9. Um lance simples, mas de domínio, e também é “bem aéreo”, como se diz na linguagem montanhista. Na P9, comecei a puxar as mochilas, e meu braço direito já deu uma reclamada. Resolvi chamar o Fábio para ele então guiar o próximo lance, que era um V grau em diagonal. Ele passou, e eu dei segurança para ele. Aproveitou e utilizou umas peças móveis em umas fendas, conforme orientação do pessoal no dia anterior. Em seguida, o Márcio passou e seguiu atrás do Fábio. Nesse trecho da P9 até a P11, o Fábio guiou, e nós ficamos meio que em uma cordada única de 5 pessoas, meio embolados, a fim de ganharmos tempo. A verdade é que já estávamos escalando há mais de 7 horas, e o cansaço batia forte em todos nós.

Chegamos e paramos todos na entrada da segunda chaminé. Comemos uns chocolates, bebemos um pouco de água, tudo muito rápido, pois sabíamos que o tempo estava contra nós agora também. Depois dessa breve parada para alimentação, passei a me sentir bem melhor.

Na segunda chaminé entrei guiando novamente. É um lance exposto, mas tranqüilo se a pessoa estiver acostumada com chaminés. Em seguida veio o Márcio. Içamos todas as mochilas e o Fábio subiu. Enquanto o Márcio fazia a segurança para o Júlio e o Rogério subirem a chaminé, o Fábio fez minha segurança para eu passar o artificial, que pode ser feito em livre com graduação de VI sup. Mas, para mim, depois de torrar no sol durante horas naquela parede, qualquer lance já ia me parecer um décimo grau. Era tamanha a vontade de chegar ao cume que eu entrei no artificial com umas 3 costuras apenas. Ia clipando minha ancoragem nas chapas, velhas e finas, e trocando com uma outra corda soleira que clipava na próxima chapa. Quando cheguei lá pela quinta ou sexta chapa, o Fábio me perguntou se eu tinha levado mais costuras… Aí que eu percebi que não… Como não tinha mesmo o que fazer, toquei pra cima e cheguei ao platô da próxima parada. O Fábio veio em seguida e costurou todas as chapas para o restante do grupo subir sem a possibilidade de pendular em caso de queda.

Na parada após o artificial, ventava forte e muito frio. Assim que o Márcio chegou, toquei pra cima, entrando na diagonal e horizontal para a esquerda. Era tanta vontade de chegar logo no cume e sair daquele vento gelado, que nem vi como eu passei nesse lance. Só sei que toquei até a antepenúltima parada e montei a segurança para o Márcio subir, pois ele também já estava detonado. Em seguida veio o Rogério e, mal ele chegou, eu já segui outra diagonal, agora para direita.

Como já estava quase escurecendo, não encontrei a última parada dupla, praticamente no topo. Dei segurança mesmo de corpo para o Márcio e falei para ele passar direto por mim e ir até o topo. Acho que de tão cansado, o Márcio me perguntou o que ele iria fazer no topo. Alguns minutos depois veio o Rogério, e o Júlio em mais uma cordada e o Fábio arrastando o tinha ficado para trás. Chegamos finalmente ao topo com o sol acabando de se pôr… E a noite chegando… Eram quase 18h. Foram doze horas de escalada tradicional.

Bem como já estava escuro mesmo, o Fábio sugeriu que lanchássemos e que descansássemos. Afinal, mais escuro não ia ficar mesmo… Colocamos nossos anoraques, headlamps, arrumamos nossas coisas e olhamos um para a cara do outro e pensamos em coro: “anoiteceu”.

Tentamos localizar a via Sylvio Mendes para descer, mas só identificamos alguns totens, sem, contudo encontrar o primeiro grampo. Mas, parando e refletindo um pouco, julgamos que a atitude mais prudente e segura seria pernoitar no cume mesmo. Disse ao Fábio que mesmo que encontrássemos os primeiros grampos, o que seria de nós se, por algum motivo, não encontrássemos os seguintes? Ele concordou comigo e chegamos à conclusão de que melhor do que se arriscar nessa descida, com a possibilidade de ficarmos pendurados em alguma parede, seria passar a noite no cume mesmo. E foi o que fizemos…

Retornamos para a região central do cume onde o Márcio, o Júlio e o Rogério já tinham arrumado uma grutinha para bivacarmos. Estava começando a esfriar bastante e ventava muito lá em cima, mas a noite estava linda. A vista de lá também estava espetacular, com o céu limpo e estrelado.

Por volta das 22h, vimos o último pessoal que desceu do Pico Maior (uma cordada que chegou ao topo cerca de uma hora e meia antes da gente e que subiu por outra via) descer pela trilha do Capacete. Suas headlamps pareciam dois vaga-lumes na trilha. O frio era intenso e não dava para ficar muito tempo fora da grutinha. Encurtando um pouco mais essa parte do nosso bivaque, essa deve ter sido a maior noite de toda a eternidade, pois a hora não passava de forma alguma. Passamos um perrenguizinho básico. Quando ventava, a coisa ficava mais feia. Dormir estava difícil, sair da gruta era ruim por causa do vento frio.
Ficamos lá jogando conversa fora e rindo da nossa própria desgraça, imaginando quem seria o autor da próxima idéia doida de entrar em vias desse tipo, à vista, e com cordadas de três, pois dessa vez a culpa foi inteiramente do Márcio! E bem feito para nós por toparmos qualquer parada!

Depois dessa noite interminável, começa a nascer o sol. Foi fantástico! Está certo que estávamos tão cansados e doloridos que mal conseguíamos bater fotos, mas o nascer do sol lá de cima é maravilhoso! Impossível descrever.

Sem perder muito tempo começamos a procurar os grampos da descida, os quais encontramos rapidamente com a luz do dia. Ficamos meio ressabiados, porque o Fábio nos contou a história de uma dupla que foi descer pela Sylvio Mendes e acabou caindo na via do lado, de nome Os Intocáveis. Ficaram em maus lençóis e foram resgatados pelos lendários Sérgio Tartari e Sérgio Poyares.

Às 6h30min, iniciei o primeiro rapel e logo consegui localizar a próxima parada dupla. Antes de iniciar cada lance de rapel, olhava o croqui e ia identificando os grampos da via durante a descida. E assim fomos descendo… Depois de sei lá quantos rapéis atingimos a P2 da Sylvio Mendes, antes de fazer a caminhada em horizontal para a esquerda por dentro da mata. Estávamos todos com sono, cansados, moídos, mas estávamos todos bem e felizes. Vimos que a decisão de bivacar no cume foi a mais prudente e correta. Seria realmente muito arriscado e perigoso fazer mais de 10 rapéis, alguns em diagonal, por entre paredes, fendas e chaminés, no escuro, sem conhecer a via, sem nunca ter estado lá.

Caminhamos um pouco e fizemos o último rapel, chegando ao colo entre o Capacete e o Pico Maior. Era uma segunda-feira linda e maravilhosa. Aquelas paredes imensas pareciam brilhar com o sol. Descemos a trilha igual um foguete direto para o acampamento, aonde chegamos por volta das 10h30min. Tomamos um banho geladíssimo, o que nos deixou praticamento novos. O Paulo Mascarin, dono do abrigo, aguardou até nos avistar no último rapel de descida para seguir para o RJ. Agradecemos imensamente sua atenção e preocupação.

Juntamos nossas coisas e partimos de volta para Resende, afinal, somos meros trabalhadores assalariados e não podemos nos dar ao luxo de faltar ao serviço em plena segunda-feira. Cada um já ensaiava o que ia dizer para o respectivo chefe. Mas uma coisa ainda nos incomodava… Estávamos simplesmente desesperados de fome, de modo que por volta das 13h ou 14h (nem me lembro mais direito), paramos em um pequeno restaurante no vilarejo de Bonsucesso (ou seria bairro? ou distrito?) e simplesmente comemos feito 5 animais selvagens famintos após a época da seca na floresta. E rimos muito da nossa empreitada. Ficamos repassando cada momento da escalada, da noite em claro e no frio, dos rapéis… Lembramos tudo. Foi muito bom!

Se eu tivesse que resumir a excursão eu encheria o peito e diria: “FOI F…! … EM TODOS OS SENTIDOS!”. E foi mesmo, foi a escalada mais difícil e mais longa que já fiz. Aquela montanha é fantástica, e o local é também especial. O pouco de frio que passamos durante o bivaque no topo não foi nada de perto da coisa maravilhosa que é subir aquelas paredes e contemplar a vida e a beleza das montanhas. E de quebra, ainda tivemos a honra de dividir alguns metros de cordada com o lendário Alexandre Portela, que ficou durante grande parte de nossa escalada pendurado em alguns tetos à esquerda da via Leste. Obrigado pelas setas estratégicas, Portela!

Não posso deixar de registrar e agradecer a companhia dos parceiros de escalada e Geanistas Fábio, Márcio e Rogério, que são feras das montanhas e mandaram muito bem! Amigos, essa escalada vai ficar na nossa memória! Vocês são feras! E ainda o grande prazer que foi estar mais uma vez escalando um via dessa dificuldade junto com meu pai, já com seus quase 60 anos, e que acompanhou a gente igual a um jovem. Como dissemos na excursão, o “tiozinho da touca” marcou presença no cume do Pico Maior. É isso aí. Galera, foi demais, FOI F…..!!

Igor Spanner
Grupo Excursionista Agulhas Negras – GEAN
Afiliado à FEMERJ
www.grupogean.com

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