Primórdios do montanhismo em Santa Catarina

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Quando se trata de histórico do montanhismo nacional, logo remete-se as manifestações ocorridas nos tradicionais estados do Rio de Janeiro e Paraná, onde sem dúvida, o montanhismo foi praticado com maior coesão, rendendo uma seqüência cronológica de conquistas e feitos notáveis , se tornando os principais centros da prática do montanhismo no Brasil.

Reginaldo José de Carvalho* – SC – Publicado originalmente no Jornal da Montanha**.

O Estado de Santa Catarina, apesar de não ser muito conhecido no cenário do montanhismo, possui algumas pérolas que contribuem para enriquecer a história do montanhismo nacional, muito embora, esta prática se desenvolveu de forma mais sutil, porém, contemporânea  aos principais centros e que merecem ser conhecidas.

Com a chegada dos imigrantes europeus, a necessidade, juntamente com a dificuldade de conectar as cidades para escoar matéria prima  entre os portos com o planalto, foi muito determinada pelas serras, que impuseram desafio aos primeiros exploradores encarregados de abrir as estradas em direção ao planalto, tornando-se as transposições das serras catarinenses grandes empreitadas louváveis e reconhecidas até os dias atuais.

Também com os europeus, houveram os primeiros relatos e registros de ascensões, muitas vezes exploratórias e outras já com cunho montanhístico e contemplativo, dentre as principais, segue em ordem cronológica um pequeno resumo das ascensões históricas nas montanhas de Santa Catarina.

Neste artigo, serão descritos os principais feitos ocorridos entre os anos de 1711 à 1948, somente o que diz respeito aos primórdios, pois a história moderna ainda está sendo construída.

1711: Diversas foram as montanhas  exploradas com a chegada dos europeus, onde as primeiras fontes são de Padres Jesuítas, principalmente na Serra Geral, em Urubici a partir do ano de 1711, quando D. João V ordenou que os mesmos demarcassem o território, procurassem minas e catequizem os índios Xokleng que habitavam naquela região.

Montanhas como Costão do Frade 1370m, Morro Pelado e Morro do Campestre 1385m, são elevações possuidoras de muitas histórias sobre os tais jesuítas, o Costão do Frade principalmente, possui uma escadaria de pedras, feita com mão de obra escrava, com descrições antigas sugeridas serem dos jesuítas.

O segundo ponto mais alto do Estado, o Morro da Igreja 1822m, é detentor de muitas histórias e lendas indígenas e de tesouros escondidos em suas escarpas,  acredita-se que os padres jesuítas foram os primeiros europeus a subirem esta elevação em 1745, seu nome pode ter surgido dos próprios sacerdotes exploradores.

12 de abril de 1791: O primeiro relato documentado que se tem conhecimento sobre a subida de uma montanha em Santa Catarina,  é do Capitão Antônio Marquez d´ Arzão, encarregado em abrir a estrada que ligava Desterro (Ilha de Santa Catarina) aos Campos de Lages, hoje BR 282, chegando em Bom Retiro, nome batizado pelo próprio Arzão, que considerou o lugar um bom paradeiro para sua tropa estabelecer uma vila militar na base do Morro Trombudo 1306m.

Em uma certidão de assentamento, Arzão relata o objetivo de sua escalada ao Trombudo, “…fui assentar por parte desta Capitania de São Paulo, um marco no cume da serra apelidada de Trombudo, que desta Vila do Sertão das Lages” Este marco, feito de madeira de pau Andrade, lavrado em quatro faces com os caracteres SP e SC em referência a divisão territorial das províncias de São Paulo e Santa Catarina.

O Trombudo apesar da altitude 1306m, por estar mais para o interior, afastado da frente de escarpa da Serra Geral, possui pouco desnível, variando entre 300 e 400 metros somente, não sendo muito significativo, mas a ascensão possui um valor histórico, o marco implantado por Arzão, foi encontrado recentemente por topógrafos no topo da montanha, confirmando o fato histórico.

08 de março de 1852: Outro registro digno de nota, se trata da escalada do Morro da Tromba 967m, desta vez, situado na Serra do Mar em Joinville, com maior desnível, agora 900m, essa montanha foi escalada em 8 de março de 1854, pelo imigrante francês Louis Leonce Aubé, intendente e responsável pelas terras dotais da Princesa Dona Francisca Carolina a quarta filha do imperador Dom Pedro I e do Principe francês François Ferdinand da cidade francesa Joinville, herdeiros de um dote de terra onde atualmente está inserida Joinville, região nordeste de Santa Catarina. Essa ascensão teve como objetivo principal a visualização das terras dotais, já que do alto do Tromba, há uma vista de toda a região norte catarinense. Em uma carta endereçada ao príncipe e intendentes do Rio de Janeiro, Aubé relata em francês, pormenores da subida destacando a árdua subida que  foi recompensada pela maravilhosa vista que se tem do topo.

Morro da Tromba. Foto Terra Média Trekking.

1872: Destaca-se também, a primeira escalada do Pico Spitzkopf 940m, traduzido do alemão “Cabeça Pontuda”, montanha detentora de grande documentação histórica e publicações.
O Spitzkopf, possui um perfil bonito e convidativo, está localizado na Serra do Itajaí, município de Blumenau, a área está inserida em um parque Ecológico, o “Spitz” como é conhecido, foi escalado pela primeira vez em 1872, pelo Comandante das Guardas de Batedores do Mato Friederich Deeke entre outros ajudantes.

A escalada não foi por um motivo tão nobre, Deeke e seus batedores estavam caçando e iniciaram uma perseguição a uma anta, o animal aflito e muito ágil nesses terrenos subiu a montanha, após um tempo de perseguição, acabaram chegando no topo, Deeke se encanta com a  vista e desenha a paisagem em um papel que após a escalada foi enviado ao Dr. Blumenau.

05 de junho de 1886: A escalada que serve de referência para o inicio da atividade de montanhismo em Santa Catarina até o momento, trata-se da subida do Pico Jurapé 1149m, situado na Serra do Mar em Joinville, quando em 06 de junho de 1886, o imigrante suíço Johan Paul Schmalz, juntamente com uma equipe de seis pessoas: Bruno Clauser, Hahn, Jacob Schmalz, Otto Delitsch e mais dois sujeitos definidos como “dois alugados”, atingiram o ponto culminante da montanha, após três árduos dias de trabalho, abrindo trilha diante de uma floresta extremamente cerrada.

Foi uma escalada autêntica, pois subiram a montanha “porque ela estava lá”, sem outros objetivos, o Pico Jurapé é uma montanha estética e imponente, com 1100m de desnível e terreno bastante íngreme, sempre intrigou Schmalz que era um  grande apreciador e conhecedor das belezas naturais da região e já fazia tempo que divisava a montanha, até que chegou a hora.

O relato de Schmalz é uma verdadeira pérola, pois o leitor pode ser transportado para a montanha, anotou a escalada minuciosamente em seu caderno de registros, em umas das passagens, relata a dificuldade de transpor um degrau imposto pela montanha, onde os mesmos tiveram que se utilizar de uma corda para transpor um ressalto no relevo, segundo o relato de Schmalz: “Daqui saímos, às 6h30m da manhã, com muita dificuldade e perigos, servindo-nos constantemente da corda. Subimos o barranco até chegar ao dorso o que nos permitiu um deslocamento fácil e sem necessidade da corda”

Realizaram mais um pernoite já na crista final do Jurapé e no dia 6 de junho atingiram o cume do tão almejado pico, Schmalz e os membros de sua equipe ficaram encantados com o que viam do alto do Jurapê, segundo os relatos do próprio Schmalz:

Foi sublime o momento em que pela primeira vez pisaram, gentes civilizadas, neste lugar, o morro mais alto de toda a costa da província. Viam-se as outras serras e cumes, muito abaixo, e nenhum da mesma altura. O panorama que nós tínhamos não pode ser descrito”. Nenhuma nuvem tem embaraçado a vista…

Animados com o feito, a equipe de Schmalz acendeu uma fogueira do alto do Jurapé, com objetivo de informar aos moradores que o pico fora conquistado, Schmalz registrou a escalada colocando uma pequena garrafa com uma carta em uma árvore, conforme relatou:

“… Às 9 h, ascendemos fogo e fizemos grande fumaça para sinalizar a nossa chegada. Porém, o vento forte não deixou a fumaça subir. Por isso foi mal percebida e só em poucos lugares. Como sinal da nossa chegada e desta primeira excursão, coloquei um frasco pequeno com rolha de vidro que continha uma carta de visita minha com a assinatura de todos os companheiros e a data da chegada, no arbusto mais alto (talvez três metros) que há no cume; entre dois galhos. Amarrei-o com fio e cobri com musgo para evitar que caísse antes de que o musgo, que aqui muito cresce, o fixasse nos galhos…

Excursionistas catarinenses no topo da Pedra Branca. Montanha paranaense foi mais frequentada.

Schmalz além do Pico Jurapé 1149m, escalou o Araraquara 1222m, embora seus descendentes possuidores de seu acervo, não possuem o relato desta escalada, pois um de seus cadernos de anotações foi extraviado, mas muito provável que as datas sejam próximas.

19 e 20 de julho de 1892: Nos dias 19 e 20 de julho de 1892, foi registrada uma nova escalada ao Spitzkopf 940m, desta vez, realizada pelos excursionistas Otto Wehmuth, Christian Imroth, Fritz Alfart, Hermann Gauche Sênior entre outros, sendo a primeira ascensão da montanha para fins de excursionismo. Após esta ascensão, o Spitz começou a ser freqüentado com mais freqüência.

1899 – 1900:  Imigrantes italianos do município de Nova Trento, no vale do rio Tijucas, escalaram  diversas montanhas em torno da cidade com a finalidade de implantar cruzes e oratórios nos cumes das principais montanhas das cercanias como o Monte Barão de Charlach 1.148 m, Monte Lima 1.090 m, Monte Bela Vista 850 m e Monte Morro da Onça, atual Morro da Cruz 525 m.

Este tipo de atitude se deve a devoção dessa comunidade que utilizou  as montanhas como locais de peregrinação, nesse caso, queriam pedir a paz para o inicio de um novo século. Até o momento, os participantes dessas empreitadas ainda encontram-se no inominado, porém, as cruzes ainda estão lá no alto dos morros como no Morro do Barão 1148m.

17 de julho de 1929, foi fundado o primeiro clube de montanha do Estado, o Spitzkopf Klub, tendo como presidente: Otto Huber, secretário Rudolf Hollenweger, tesoureiro Alfredo Gossweiler, rancheiro, guarda da cabana, Fritz Hasse. Proprietários Paul Scheidemantel, Gauche (alfaiate) e Wünsch. O clube foi fundado com com a finalidade de conservar a picada de acesso a fazer uma cabana no alto, para abrigar visitantes que por ventura subisse o Spitzkopf.

Excursionistas descançando na base do Spitzkopf – Autor: Adalberto Day

Foram implantados refúgios para os excursionistas e infra estrutura que hoje atualmente é um Parque Ecológico, fruto da consciência dos primeiros freqüentadores e proprietários.

No ano de 1948, surge em Joinville o Centro Excursionista Monte Crista – CEMC, fundado no dia 20 de novembro do referido ano, com o objetivo de promover atividades ao ar livre, principalmente explorar as belezas naturais da região.

Tratava-se de um grande e unido grupo, formado principalmente por rapazes e moças joinvilenses descendentes de alemães e suíços. A criação do CEMC foi uma atitude de vanguarda na época, pois ainda havia poucos clubes instituídos no Brasil.

Com o lema “Fazemos excursões para melhor conhecer as belezas naturais de nossa querida pátria”, através desse objetivo, realizavam atividades com freqüência nas montanhas da região como ao Monte Crista 967m, o Morro da Tromba 967m, o Jurapé 1149m e o Castelo dos Bugres 998m, além de muitos outros recantos naturais da região e de outros estados.

Foi com o CEMC, as primeiras manifestações de escalada em rocha no estado de Santa Catarina, quando nos idos dos anos 1950. Nessa época, aproximadamente em 1955, o clube iniciou a formação do corpo de guias onde foram realizadas algumas práticas em rochedos da região, principalmente no Monte Crista, mas de forma pouco expressiva.

Diante desta seqüência histórica, nota-se que o  montanhismo e a escalada em Santa Catarina se fazem presentes há muito tempo e que provavelmente outros estados devem possuir informações semelhantes que merecem ser resgatadas e reconhecidas.

Atualmente, em Santa Catarina o montanhismo foi consolidado como prática, formando vários núcleos distribuídos nas regiões do Estado. Estes núcleos estão desenvolvendo o montanhismo local, surgindo sempre diversas conquistas de montanhas e descobertas de novos setores de escalada, tanto nas serras, como também pelo litoral catarinense, possibilitando continuar a escrever as linhas da história desta maravilhosa atividade.

* Reginaldo Carvalho é montanhista e geógrafo, pratica montanhismo há dezesseis anos. Exímio conhecedor da Serra do Mar local onde realizou diversas empreitadas como ascensões, travessias, aberturas de rotas de escalada e conquista de montanhas virgens.

** O jornal da Montanha é uma publicação impressa mensal. Sediada em Quatro Barras destina-se a divulgar o montanhismo do Sul do Brasil.Para assinar e mais informações: [email protected]

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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