Resgate no Aconcagua, uma análise pessoal

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Uma análise final e com pontos de vista pessoais do resgate mais polêmico na maior montanha da América, concentrando todos os fatos e fatores que levaram ao desfecho e as conclusões que podem ser consideradas justas para com a equipe de resgate

Durante os últimos dias acompanhamos nos principais meios montanhísticos e periódicos convencionais um debate desenfreado após a divulgação de um vídeo, com dois escassos minutos, mostrando os últimos momentos de vida do guia ítalo argentino Federico Campanini em um resgate que se prolongou durante mais de 17 horas, em alta montanha e sob condições extremas.

Os meios periódicos convencionais trataram de abordar o tema partindo do ponto de vista humano, num sentido comum, a ação do Governo da Província de Mendoza e através da perspectiva de alguns especialistas. Alguns seguiram o apelo sensacionalista e se utilizaram de comparativos que não remetem à realidade..

O debate nestes meios se centralizou no fato da aparente falta de cuidados com Campanini e seu suposto abandono, revelado nas fortes imagens, cuja divulgação foi extremamente inapropriada.

Mas, no caminho muitos elementos essenciais para compreender esta situação complicada, difícil e extrema, foram sendo perdidos. Estes elementos poderiam ser definidos como liberdade, responsabilidade, decisão, solidariedadee e amor ao próximo. Todos estes elementos conjugados em um terreno fora do comum: o cume do Aconcagua.

Notamos que neste debate foi traçado um paralelo que pretendia comparar a situação como vista através de uma perspectiva que poderíamos denominar “urbana”, sob condições “normais” ou simplesmente “razoáveis” de atuação de um grupo de resgate ou de socorristas.

Vamos agora analisar a atuação através de várias perspectivas, entre elas a esportiva, a do senso coletivo e até a jurídica, desse acidente até então inédito na montanha mais alta da América.

Começaremos entendendo a definição de acidente de montanha, recorrendo à informação disponibilizada pela Comissão Internacional de Socorro Alpino: um acidente de montanha é aquele que ocorre em um meio difícil, isolado e hostil na montanha. Se entende por “acidente” aquela ação na qual involuntariamente o resultado é uma lesão ou dano físico, e por “meio difícil isolado e hostil”, qualquer meio ou entorno potencialmente agressivo para o homem, no qual não é possível sobreviver por um longo período de tempo, e com a impossibilidade de se sair facilmente dele sem correr riscos, e sendo preciso o uso de técnicas, conhecimentos ou recursos humanos e materiais especiais.

Ao final de uma série de decisões tomadas livre e voluntariamente, o guia Federico Campanini e seus clientes se viram isolados numa região próxima ao cume, mais precisamente na vertente leste da montanha. Sob condições climáticas muito difíceis, com temperaturas inferiores aos -20°C, pouco alimento, sem roupas adequadas e água, tiveram que suportar frio, neve e ventos fortíssimos durante praticamente trinta horas, período no qual se encontraram perdidos e longe de seu acampamento.

O montanhismo, mas principalmente o praticado em alta montanha, é um esporte extremo. A decisão de realizar uma incursão em alta montanha tem uma primeira e grande consequência, que se está realizando a atividade por livre e espontânea vontade e por isso que devem ser isentos de responsabilidade terceiros, pelos problemas que puderem ocorrer durante a realização da atividade.

Quando alguém assume livre e voluntariamente os riscos inerentes à prática do montanhismo, consequentemente assume a responsabilidade pelos danos que possa sofrer em consequência desta decisão.

Logo que informado o acidente e em que setor se encontravam Federico e seu grupo, guias, montanhistas, porteadores e socorristas da Patrulha de Resgate se organizaram rapidamente em uma grande operação de resgate, porém sob condições extremas.

Iniciaram a subida ao cume do Aconcagua para rastrear de lá o grupo perdido. Para quem nunca teve a experiência de caminhar em montanha em elevada altitude, com vento, frio e nevasca, é importante frisar que cada passo que se dá implica em um esforço muito maior. Quando se sobe, sentindo o vento soprando contra, perdendo a sensibilidade nos dedos das mãos e pés, com a plena consciência de que ao subir a montanha, seus dedos, orelhas, lábios e nariz podem começar a se congelar, e sob a pressão de que cada minuto se torna importante, com os músculos sendo exigidos por um esforço cada vez maior e o rosto queimado pelo frio e pelo vento.

Os membros deste grupo de socorristas, tanto os voluntário como a Patrulha de Resgate, colocaram em risco suas próprias vidas, com o risco de congelarem ou sofrer um edema. Existe o risco de morrer durante o resgate de outros montanhistas, ou talvez, quando terminado o resgate, se lesionado, não poder trabalhar durante os dias restantes da temporada e não conseguir o dinheiro necessário para o sustento durante o resto do ano, até a temporada seguinte, sem cobertura de seguro e nenhum suporte do governo por qualquer problema de saúde no caso dos guias e dos porteadores voluntários.

Enquanto se preparavam para sair, pegaram seus próprios equipamentos (roupas, mochilas, cordas, fogareiros, estojos de primeiros socorros), reuniram entre os montanhistas solidários o indispensável, deixaram seus clientes e colocaram suas próprias vidas em perigo para iniciar o resgate.

Agora vejamos o seguinte, o limite de responsabilidade em toda atividade de socorro corresponde que o socorro deve ser prestado sem que ofereça risco ao próprio socorrista e nem a terceiros. Existe uma regra não escrita que diz: “na montanha a vida é prioridade”.

Então é importante analisarmos este ponto. Quando os socorristas sairam de suas barracas ou de algum dos refúgios, nas péssimas condições climáticas que imperavam naquele momento, ultrapassaram o limite de responsabilidade expressado acima. E isso eles fizeram com espírito solidário, valente e sem esperar qualquer recompensa financeira em troca.

Então que tipo de responsabilidade civil caberia aplicar a estas pessoas como consequência do resgate? Nenhuma. Que tipo de responsabilidade penal caberia lhes aplicar? Nenhuma, porque já atuaram excedendo as suas obrigações, colocando-se desde o momento em que sairam de suas barracas em atividade de risco.

Quando chegaram ao cume, encontraram quatro pessoas vivas, mas Federico estava quase no final do “pescoço da garrafa”, a parte mais difícil e de maior comprometimento quando se escala, da rota argentina do Glaciar de los Polacos, com grande inclinação, aonde um passo em falso significa cair 1.500 metros na pendente do glaciar.

Nesse contexto, com poucos recursos humanos, visibilidade muito baixa, sem condições de armar e carregar eficientemente uma maca, expondo ainda mais suas próprias vidas, tentaram levantar e subir Federico novamente ao cume para poder iniciar a descida pela Rota Normal.

Caminhar esses últimos 400 metros até o cume, com neve recém caída, vento, frio, cansaço, ar rarefeito, pois estavam a quase 7.000 metros de altitude, depois de muitas horas de esforço físico e mental acaba resultando em um esforço descomunal. Mas neste caso não era somente um esforço descomunal. Era o esforço que tinham que fazer essas pessoas para poder salvar também suas próprias vidas, porque era a única forma de sair deste lugar e situação.

Agora, com relação aos socorristas membros da Patrulha de Resgate, poderíamos ter várias reflexões. São pessoas dedicadas, com amor à montanha e ao próximo, até porque se não fosse assim, não estariam desempenhando sua profissão neste ambiente tão hostil. Mas não possuem os melhores equipamentos e também não contam com financiamento ou apoio para se capacitar continuamente em tarefas de resgate em montanha. São o reflexo da falta de apoio governamental aos grupos especializados. E ainda assim desempenham um grande e valoroso trabalho.

Agora vejamos, existe algum limite em sua atividade de resgate no Aconcagua? Qual é a cota máxima de altitude até a qual deveriam prestar serviços? Se lembramos que na Europa, grupos especializados e mais bem equipados que trabalham em torno dos 3.000 a 4.500 metros de altitude.

Até o momento não existem respostas para estas perguntas. Acredito que a Patrulha de Resgate não tinha realmente a obrigação legal e nem profissional de sair nas condições climáticas que se encontravam para realizar um resgate no cume do Aconcagua.
Ainda considero que não tenham a obrigação legal ou profissional de realizar resgates em elevada altitude, porque isso acaba não sendo nem razoável e nem lógico, pois atenta o princípio já apresentado a respeito de resgates, especialmente em montanha.

Se fosse determinada uma cota de altitude, isto talvez significasse que se pode colocar em segundo plano os demais fatores, tais como clima, condições de terreno, requerimentos técnicos e perigos objetivos e subjetivos de um resgate a ser realizado.

Um dos parâmetros que poderiam ser utilizados para quem sabe futuras discussões, poderia se basear na cota máxima estabelecida nos seguros de vida e responsabilidade civil de montanha, contratados pelas federações européias, que cita a altitude de aproximadamente 5.400 metros sobre o nível do mar.

Infelizmente se fala muito dos mortos e sobre culpa, mas ninguém comenta que foram resgatadas três pessoas depois de dois dias de buscas, quando todos já tinham a intuição de que já estavam mortos, o fato deles terem sa salvado é quase um milagre, pois conforme indicações, terem passado duas noites no cume, sem equipamento, é quase impossível.

A luta na montanha, é contra si próprio. E contra a presença áspera e permanente da qual, quando se fala do Aconcagua também se fala da morte. E respeitá-la é o básico. Por isso, a reação diante de qualquer situação, lá em cima, é a de que “a prioridade é a vida”, e foi isso que acabaram fazendo os socorristas, lutaram pela sua.

No caso de Federico Campanini e seu grupo de clientes italianos, se combinaram todos os perigos objetivos e subjetivos possíveis de se encontrar em um resgate de montanha. E todos os argumentos apresentados constituem, ao meu ver, os fatores determinantes para isentá-los de qualquer tipo de responsabilidade.

Acredito na verdade que todos eles, voluntários e policiais, merecem mesmo é o reconhecimento público por seu trabalho, dedicação e coragem.

Veja alguns depoimentos de alguns andinistas sobre o caso

“Houve algo que falhou, fizeram cume muito tarde. E o problema é que depois o guia se perdeu, certamente produto de um edema. Isso desencadeou tudo”
. Rudy Parra, com 50 anos de experiência em montanha.

“É preciso ter muito cuidado. Pela falta de oxigênio, lá em cima se perde a razão, não pensa. Tem que ter uma força de vontade enorme, não pode se sentar porque se dormir, morre, literalmente”. Rudy Parra, com 50 anos de experiência em montanha.

“Os socorristas estavam a muitas horas trabalhando a 30 graus abaixo de zero, tinham feito cume em quatro horas quando se faz em oito. Seu corpo começava a falhar, tinham que voltar e ainda assim permaneceram até o último momento”. Fernando Pierobon, com 31 anos de experiência em andinismo

“Por isso não entendo: se exigiram até o limite para salvar vidas, estiveram lá em cima em condições que ninguém imagina, fizeram cume várias vezes em poucas horas. Realmente alguém acredita que quiseram abandonar Federico?”. Horacio Frechi, piloto do helicóptero que buscou e encontrou os três italianos e o guia.

“A altitude te ganha a cabeça. O frio te congela o corpo e isso, em questão de segundos, significa perder uma extremidade. E Campanini já não se movia, não falava, não reagia. Não ia se salvar”. Rubén Massarelli, guarda parque da Sección Horcones, um dos encarregados do resgate.

“Mirko estava cego e congelado, mas com ajuda se mantevo de pé. Matteo conseguiu caminhar até o cume e depois o desceram em maca, mas se não conseguisse subir, também teriam que tê-lo deixado. Se necesitam 12 homens para carregar alguém desvanecido”. Rubén Massarelli, guarda parque da Sección Horcones, um dos encarregados do resgate.

“O que se conseguirá com isto é que percamos esse valor pelo qual todo mundo nos reconhece. Se nenhum resgatista quiser voltar a tentar salvar a vida de um desconhecido será compreensível”. disse alguém que esteve na operação de resgate e que prefere não se identificar.

Entre 1926 e 2009, 126 pessoas morreram no Aconcagua. Este ano 3.844 homens e mulheres obtiveram a permissão para subir ao cume, morreram seis.

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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