A Serrinha de São João Novo

1

São João Novo é um minúsculo distrito do município de São Roque, 60km de São Paulo, que nasceu as margens da EF Sorocabana lá pela década de 20. Repleto de morros numa região predominantemente rural, deles o que mais se destaca é uma tal Serrinha, elegante e abaulada corcova que se eleva cerca de 1050m acima do nível do mar. Conhecido por mapas antigos como Morro Santo Antônio, seu cume é repleto de blocos rochosos, tem bela vista da Metrópole e é facilmente acessível por estrada de chão. Mas pra andarilhos mais exigentes, é também possível chegar ao alto da Serrinha por íngreme e tortuosa trilha, que é o assunto deste rolê de pouco mais de meio período. Bate-volta sussa que emendou inclusive um simpático ferro-trekking pela Sorocabana.

Já havia tempo que desejava conhecer as estações ferroviárias além do limite oeste da linha Diamante da CPTM. Quando fui no Morro do Sabiá, ano passado disse pra mim mesmo que daria continuidade á pernada pela Sorocabana. Pois bem, a ocasião surgiu em conjunto com a idéia de perambular por São João Novo, acessível diretamente de Itapevi por transporte público. Logo, abri mão desse transporte pra “matar dois coelhos numa cajadada só” realizando o breve ferro-trekking até a estação desejada partindo da anterior, a Amador Bueno.
Assim sendo, após rápida e sacolejante viagem linha Diamante saltei as 9hr na última estação, no caso, a Amador Bueno.  O lugar não deixa de passar a impressão de cidade de faroeste á margem da ferrovia, uma vez que se resume a uma pequena praça e duas ruas principais onde orbita o comércio local. Com dia limpo e bem-disposto imediatamente pus me andar, abrindo mão até da sagrada passada matinal na padoca. Sim, fominha do jeito que sou já pus-me a beliscar o lanche dentro mesmo do vagão da composição.
Dali então me pirulitei pela continuidade da linha férrea sentido São Roque. Há uma evidente vereda que acompanha os trilhos a todo momento, embora estes as vezes sumam por completo, soterrados por terra, pedras ou até mesmo mato. O primeiro quilômetro é bem urbanóide, e a paisagem é bem largada e até decepcionante. Apesar da presença de mata abundante em volta e da cia constate dum afluente do Córrego do Sabiá, a proximidade com a civilização não deixa de entrever neste trecho não apenas bastante lixo ou descarte irregular, mas principalmente ruinas de residências tombadas de barrancos. Aqui o clima de degradação impera, mas não por muito tempo.
Esta primeira impressão logo se esvai quando se passa pelo lado duma placa “Vende-se galinha caipira”, o que nos convida literalmente a entrar “na roça”. Os horizontes se expandem permitindo avistar as verdejantes serrinhas ao norte, elevando suas corcovas elegantemente naquele quadrante. A vereda some e ressurge inúmeras vezes ao lado dos trilhos, e enormes voçorocas de mamonas e amoras reforçam o clima interiorano da pernada. Trechos abertos se intercalam outros mais frescos, proporcionados pela frondosa vegetação durante a aproximação das encostas da morraria sgte. A trilha sonora é o silêncio absoluto, embora vez ou outra impere algum ruído oriundo da SP-274, via que interliga Itapevi a São Roque.
Perto de 3kms andados passamos pela divisa de Itapevi/São Roque, assinalado pelo largo caminho que cruza nosso caminho e que leva pra morraria do Vale do Sabiá, ao norte, rolê detalhado em minucias noutra ocasião. Perto dali uma discreta picada adentra na mata e alcança uma bica cravada na encosta, ideal pra abastecer o cantil ou molhar o gogó. Depois o caminho se alarga um pouco mas logo se estreita novamente, tangencia uma fazenda repleta de pinheiros e mergulha num trecho de vegetação mais fechada. As encostas ao meu lado se elevam e parecem me emparedar nos trechos onde o morro foi dinamitado, deixando expostos enormes boulders que podem fazer a festa de escaladores locais.
Mas logo, quando a via férrea tende a fazer uma curva pro norte, o avanço se faz com as mãos afastando toda sorte de vegetação arbustiva no caminho. Mas felizmente os trilhos estão lá, dando as caras pra servir de referência. Pouco mais a frente uma pequena ponte de madeira sobre um rio seco é cruzada nos mesmos moldes que a famosa Funicular (de Paranapiacaba), mas numa versão bem mais reduzida. E após mais um relativo trecho de mato crescido a minha frente os horizontes se ampliam na mesma forma em que a luz do sol indica estarmos nos afastando dos morros a margem da via. As primeiras residências de São João Novo despontam na margem esquerda, e um trio de jovens sentado na linha me cumprimenta, escondendo sua “cannabis” cujo cheiro não da pra esconder.
Assim, após quase 6kms depois ter deixado Amador Bueno alcanço a simpática casinha de madeira que figura como a estação de São João Novo, e hoje funciona pra velar moradores locais. Aqui vale frisar que a estação antes ficava a cerca de 1km dali, nas proximidades da SP-274, foi uma das pioneiras da linha por ser fundada em 1875 e se chamava São João Velho. Mas na década de 20 a linha ramificou-se obrigando a mudança da estação pra localização atual, passando a se chamar São João Novo. A velha foi demolida e o trecho da antiga linha foi utilizado posteriormente pra ser a atual rodovia que interliga Itapevi a São Roque.
Voltando ao rolê, após uma breve descansada nos bancos defronte a estação, ganhei as vias asfaltadas que fossem na direção noroeste. No caso, acompanhei o emplacamento do “Pesqueiro Serrinha”, onde já se ganha altitude de forma considerável conforme se anda a partir da estação. No final do asfalto, quase no alto dum ombro serrano, a via se divide em duas vias de chão: a opção da esquerda vai pra Serrinha da forma sussa, por estrada; mas eu pego a outra via, que segue reto na encosta de um morro. Ali já tenho o primeiro contato visual com meu objetivo na forma dum grande e verdejante serrote que se estica na direção norte e com 3 evidentes corcovas, sendo a do meio mostra-se coroada por enormes rochas.
Pois bem, seguindo reto pela estrada de terra é preciso atentar pra esquerda, onde uma pequena cabana de madeira fechada será referência. Abandono então a via palmilhada e me mando pelo largo carreiro que nasce da frente da rústica  residência e desce ao pé da serra. Aqui a porteira tava fechada mas bastou me esgueirar de boa através do arame farpado. A larga vereda aparenta ser uma antiga estrada de extração, mas ela desce bem até um determinado ponto antes da base da serra. Onde provavelmente haverá algumas toras de eucalipto empilhadas.
Dali é preciso desviar pelo gramado á direita q descer na diagonal através dos arbustos, abrindo eventualmente caminho por algum mato. Mas após alguma ralação logo reparo num buraco na mata onde finalmente encontro a bendita trilha que certa vez me foi soprada. A picada então desce o resto aos ziguezagues até o fundo do vale, onde corre um correguinho cristalino, e depois começa a derradeira ascensão por meio da íngreme e acentuada encosta da serra. Degraus irregulares e lisos de terra são vencidos com muita cautela, me firmando na mata ao redor, fazendo o suor escorrer farto num piscar de olhos.
E assim prossegue a subida, sempre aos ziguezagues pela íngreme e acidentada vereda de terra. Pelas frestas é possível ver o quanto se ganha de altitude rapidamente, mas o tempo de contemplação é pouco pois minha atenção se concentra mais na precária vereda, cheia de buracos e pedras soltas traiçoeiras. Minha intuição que aquele caminho é de caça é logo retificado quando vejo um gambá morto, preso num barbante rente á trilha. Mas após coisa de meia hora nesse ritmo a vereda desemboca noutra maior, um caminho de extração que termina a ascensão na diagonal.
Dez minutos pelo estradão saio da mata fechada e me deparo com descampados de pasto mais íngreme e os rochedos avistados lá de baixo. Daqui abandono a estrada e me pirulito intuitivamente pro alto, pelo pasto, onde não raramente é preciso desviar dos dejetos de vacas e cavalinhos, presentes aos montes aqui. Cochos espalhados reforçam a idéia que o alto do morro é reservado pra rebanhos. E assim, alternando aderências rochosas e pasto ralo alcanço a beirada da serra, onde sento numa pedra sobressalente de modo a deixar a brisa refrescar meu rosto e apreciar a paisagem. A vista da beirada serrana contempla apenas o quadrante leste, com destaque tanto pra paisagem rural de Itapevi como das grandes elevações que se estendem além dela, como o Voturuna, o Pico do Jaraguá, a Cantareira e, no meio disso tudo, a geometria alva da cidade de São Paulo.
Mas ali não é o alto, pois é o inicio duma região planáltica, e o topo mesmo ta mais pra sudoeste, coroado por enormes rochedos que parecem emular Stonehege. Mas dali a direção é intuitiva, seja pelo pasto mesmo, trilhos de boi ou um carreiro maior, provavelmente da fazenda á qual pertence aquele trecho da Serrinha.
O topo por sua vez já não tem clareira, caminho nem nada, apenas pasto salpicado por enormes monólitos rochosos. No entanto, a vista panorâmica do altos dos 1050m dali prestigia São Roque, o Saboó, Vargem Grande e a Pedra Balão, além da sinuosa estradinha que percorre o restante da cumieira da Serrinha, ao norte. Pausa de alguns minutinhos pra descanso e simbora, pois o tempo urgia. Dali foi só rasgar o pasto até ir de encontro a via de chão avistada, chamada de “Estrada da Serrinha” e dali descer a mesma pelo ombro serrano ao sul, até chegar na bifurcação do início.
Voltei tudo rapidamente até a estação pois tava morrendo de sede e até aquela altura meu cantil tinha esvaziado faz tempo. São João Novo propriamente dita tem cara de cidadezinha pacata do interior, onde veículos circulam lado a lado com charretes e cavalos. Olhei no celular e eram ainda apenas 15hr, e mesmo sendo cedo decidi não retornar pelos trilhos por estar sem saco pra isso. Afinal, já tinha matado a curiosidade em conhecer aquele trecho desde Amador Bueno. Ao invés disso, fiquei de boa esperando o busão até Itapevi tranquilamente, no ponto logo á frente da simpática pracinha central dali. Claro, tomando minha cevada gelada, prêmio constante de chineladas por aqui.
Pra finalizar o dia, na volta dei ainda uma passadinha na Fau (USP), afim de prestigiar a exposição itinerante “Machu Picchu – A Cidade Perdida dos Incas”, patrocinada pelo consulado peruano. A mesma consiste em painéis e diagramas que revelam detalhes da organização social da famosa cidade pre-colombina. De quebra, tem ainda as lindas fotos do fotógrafo peruano Martin Chambi, de descendência indígena, que registram o quotidiano da cidade perdida em 1920. Bonita exposição que não me tomou sequer quinze minutos pra prestigiar por inteiro.
A Serrinha ou Morro Santo Antonio é um programa de morro rural similar ao Morro do Saboó (São Roque), porém muito mais rústico. Se não tiver paciência pra encontrar a trilha que nasce na base é perfeitamente possível alcançar o alto através da Estrada da Serrinha (saindo de São João Novo), e lá do alto descer pelo emaranhado de vias extrativistas, fazendo tudo relatado aqui no sentido contrário. Pra abreviar mais o rolê aborte o ferro-trekking e venha a São João Novo direto de busão a partir de Itapevi. Ou se tiver tempo de sobra até pra eventual pernoite, prossiga pelos trilhos da Sorocabana além de São Roque, programa que quando eu animar devo refazer algum dia. Fica a dica.










Compartilhar

Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

1 comentário

Deixe seu comentário