Travessia Alpha-Crucis, dia 10

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07 de Julho de 2012, sábado 6:30h – Passamos uma noite terrível. Comemos o pão que o diabo amassou com a bunda, e depois recheou cagando dentro. Por várias vezes acordei duma espécie de delírio, tremendo convulsivamente. Noutras ouvia o Jurandir resmungando com voz tremula, coisas indecifráveis, aparentemente em árabe, ou mandarim. Porém neste momento, tudo parecia quieto, e até o frio havia desaparecido. Num estado latente de semi consciência, por vezes me vi em casa, bem e aquecido. Cheguei imaginar que estava tão bom e agradável, que poderia passar o resto da vida ali, o que não seria muito tempo. Mas em algum momento dessa insanidade, tive um lapso de consciência, e me dei por conta que algo sério estava acontecendo. Certamente estávamos com principio de hipotermia, e se algo não fosse feito rápido, certamente era por ali mesmo que íamos ficar.

Lentamente me sentei, e sacudi o Jurandir tentando acordá-lo. Ele a principio também relutou em reagir, mas insisti que se ficássemos ali, morreríamos. Aos pouco fomos reanimando, até que fosse suficiente pra iniciar os preparativos pra partir. Não havia nem mais o que comer, porém sede não passamos. Decidi não vestir mais calça jeans e a camiseta de manga comprida, pois estavam saturadas de água. Achei melhor ficar somente com a jaqueta de nylon, e a calça de tactel que o Jurandir achou, por era bem mais leve. Quanto à bota e meias, essas não havia opção.
Devido a nossa condição extrema, o importante naquela hora era sobreviver. Decidi dobrar e esconder no oco duma arvore aquela roupa encharcada. Isso aliviaria o peso da mochila em alguns quilos. Numa oportunidade mais propícia, as resgataria. Pensei também em deixar o saco de dormir. Mas como poderia saber se não seria necessário pra mais uma noite? Socamos de qualquer jeito tudo que era indispensável nas mochilas, e as 8:00h da manhã tratamos de sumir deste local que ficou batizado de Bivaque Mortal.
A chuva, o vento, e o frio não davam trégua, agora acompanhados de nevoeiro. Batemos de frente com a frente fria, e literalmente, entramos numa fria. Ao movimentar-se, aos poucos fomos recuperando calor, consciência, e reanimamos. Já passava da hora de encontrar culpados pela noite maldita que passamos. Sem dúvida alguma, a primeira caiu sobre a Alpha Omega, em sua situação intransitável, que acabou nos causando um enorme atraso. Mas tudo bem, a vida continua, e como nos deu mais essa chance de sair vivos, vamos aproveitá-la.
Seguimos pelo vale sombrio para depois encarar a subida das encostas íngremes do Carvalho. No seu cume, já nos sentimos suficientemente aquecidos e animados, decidimos ir até os destroços do avião da Sadia que caiu em 1969. Lá deixamos uma marca e fizemos algumas fotos antes de continuar.
Nos cumes a situação era dramática. Vento uivante arremessava com força a chuva fina e gelada sobre nossos rostos. A situação só amenizava em vales. Pra nossa sorte, agora a trilha era bem visível e não havia mais duvidas que era somente questão de tempo pra finalizar a travessia. Passamos rápido pela macega da Ferradura e despencamos para o penúltimo vale. Mesmo num estado deplorável, senti muita felicidade de estar ali, sabendo que estava tão perto de acabar. Subimos rapidamente rumo a Torre do Vigia.
Tudo estava excessivamente encharcado, e ao cruzar a pedras do cume, escorreguei numa pedra afiada e cai com a parte de trás da coxa, ficando quase montado sobre o fio da rocha. Faltou muito pouco pra acontecer um acidente horrível com minhas partes intimas. À tempos já vínhamos observando que o lugar parecia querer nos aprisionar ali pra sempre, e nossa batalha para escapar não estava sendo fácil.
Novamente mergulhamos na mata e chegamos ao último fundo de vale, onde há uma corda instalada numa canaleta vertical. Este era o desafio final antes de chegar ao último cume. Diante da nossa situação deplorável, merecia respeito. A corda e a pedra estavam escorregadias, frias, e molhadas, e nós também. Enfiei-me no lance com todo cuidado, e Jurandir veio logo em seguida. Depois disso finalmente o terreno começou aplainar. A emoção tomou conta, e mesmo diante daquele tempo cruel e impiedoso que nos castigava, tivemos nosso momento de glória ao pisar no cume do Morro do Canal às 11:45h. Ali estávamos, na 44ª e última montanha da travessia Alpha Crucis, que então fora concluída. Foi uma comemoração bem discreta, modesta, mesmo estando num lugar normalmente badalado. Afinal de contas num dia como aquele, quem mais poderia estar ali comemorando, festejando, e fotografando como se estivesse ganhado na loteria?
Sem perder mais tempo e com a travessia na manga, começamos descer rápido rumo a civilização. Psicológicamente abalados, a descida parecia não ter fim, e a única coisa que animava, era pensar nos famosos pastéis vendidos na base da montanha. Quase na saída da trilha, ainda fixamos uma última marca da nossa aventura, a qual não deve ter tido vida longa. Mas decepção, mesmo foi encontrar a lanchonete fechada. Eram 13h, e tudo estava silencioso por lá. Novamente comemoramos o fim da travessia somente na companhia da chuva, do vento, e do frio. Pelo menos havia um pé de pequenas mexirica carregado. Comi o que pude, e levei outro tanto.
Ao passar na casa do seu Zézinho, contamos pra ele o tínhamos feito, o qual pareceu não ter a menor noção do que estávamos falando. Então resolvemos perguntar sobre algum lugar pra pegar ônibus, já que nem sinal de celular havia. Ele nos disse que teríamos que andar uns 4km até uma localidade chamada Capoeira, e lá haveria ônibus pra Piraquara. Para isso teríamos que pegar a primeira derivação da estrada a esquerda, e depois a direita, e passar na barragem da represa da sanepar, e então mais a frente e sempre subindo, chegaríamos ao dito lugar. Lá fomos nós.
Caminhar por uma estrada depois de tudo que passamos, era algo extremamente prazeroso. Depois de caminhar 3km, passamos na frente duma residência, e havia dois homens batendo martelo. Decidimos confirmar as informações pra certificar que estávamos no rumo certo. O homem que atendeu nos disse que o tal ônibus não operava no sábado, e que a única coisa que podíamos fazer era ir até Piraquara, ou até a BR-277, ambas em torno de 20Km dali. Aquilo foi um balde de gelo adicionado a chuva fria que desde cedo castigava nosso lombo pra lá de surrado. Dentre os poucas coisas que me passaram pela cabeça, o melhor delas foi xingar. Xingar muito, qualquer coisa que fosse, mesmo que mentalmente. E foi o que fiz.
Seguindo pela estrada, e bem mais aliviado, achei que era hora de olhar se já havia sinal no celular, mas ainda não. Tentei levá-lo na mão sem molhar, pra monitorar de tempos em tempos. Numa parte mais alta da estrada e por volta das 15h, finalmente consegui alguns pontos, e liguei pra minha mãe, pedindo que contatasse meu irmão e pedisse que viesse nos pegar no pedágio da BR277, por volta de 17h, e assim ficou combinado. Seguimos animados pela estrada com essa deliciosa expectativa.
Logo a frente passamos pelo centro educacional da Sanepar. Lembrei do lugar, pois foi onde fizemos treinamento do curso de brigadistas de incêndios florestais promovido pelos bombeiros há uns anos atrás. Depois de cruzar a barragem, chegamos à guarita, e o guarda nos disse que tínhamos que contornar a represa logo abaixo, descendo pela esquerda. Assim como o cara do martelo, salientou que era bem longe. Nessa hora a garoa e a brisa forte cessaram, e começou chover e ventar de verdade. O lugar parecia cada vez mais irritado com a nossa presença. Seguimos levando chuva no coro e morrendo de frio. Em certos momentos, até o Jurandir se mostrou extremamente injuriado com nossa sina precária que parecia não ter fim.
Depois de caminhar um absurdo na chuva, vi uma pick-up vindo. Tentei dar com a mão pra tentar uma carona por menor que fosse, mas o otário passou a mil arremessando a água das possas, e nem deu bola pra gente. Despejei uma caçamba de ofensas ao sujeito tosco e sua mãe. Jurandir se mata de rir. Quilômetros a frente, ao cruzar a estrada sobre a barragem, voltei a ver a pick-up do nojento junto com outros tantos carros de pescadores. Desejei que não pescasse um único lambari, e que furasse os 5 pneus daquela merda na volta. Nessa hora eu já estava especialmente irritado, pois a hora combinada com meu irmão se aproximava, e mesmo num passo rápido, nada da tal BR. A única coisa que chegava sem cerimônia, era mais chuva, vento, frio, e também meus chingamentos, que nessa hora já eram direcionados diretamente a São Pedro.
Não demorou muito pro celular tocar. Era meu irmão querendo saber por que ainda não chegamos. Como devíamos estar longe, sugeri a ele que viesse ao nosso encontro. Porém o maior problema naquela hora era explicar onde estávamos naquele labirinto de estradas. Tentei usar como referência as placas do caminho Trentino, porém estas estão por toda parte. Até esse momento não sabíamos que estávamos indo para outro lugar, que não o pedágio da 277. Achei irrelevante citar um armazém que acabamos de passar, com nome de Persegona. Somente depois do resgate fui descobrir que a esposa do meu irmão é parente do dono do estabelecimento, e sendo assim, saberiam exatamente onde era o lugar. Me senti perfeito idiota por não ter dito. Poderia até ficar por lá fazendo um super lanche, protegidos da chuva, até que chegassem.
Somente quando estávamos a 500 metros da BR, que fui notar que saímos em outro lugar, muito além donde imaginava. No ponto do ônibus a moça bonita e perfumada, que contrastava totalmente conosco, informou que ali era Borda do campo, de São José dos Pinhais. Como a trincheira estava bem em frente, foi fácil passar as coordenada pro meu irmão, que por volta de 18h e com muita chuva, finalmente encostou o veículo do nosso lado. Não há como descrever a alegria de rever meu irmão, cunhada, e sobrinho, e também adentrar um ambiente aquecido, com bancos macios pra acomodar o traseiro, ouvindo uma música, enquanto contávamos nossas glórias e desgraças.
Na rodoferroviária, nos despedimos do Jurandir, que tomaria o próximo cipó pra Paranaguá. Lá se ia meu grande amigo de travessia, parceiro da maior jornada de nossas vidas, por quase 10 dias consecutivos de pura aventura pela serra do mar do Paraná. Mas ficou a certeza que ali estava um grande cara, e que muitas outras viriam pela frente.
Na casa da minha mãe, pude dar aquele abraço, e matar uma saudade que não parecia de dias, mas sim de anos. Quando se sai da rotina, a percepção de passagem de tempo muda radicalmente. Isso mostra como temos uma vida mecânica, bitolada, o que faz parecer que o tempo voa. Um dia pode ser um ano, dependendo da forma como se vive.
Depois dum bom lanche, fui obrigado a abrir mão da festa junina da empresa, pois não tinha mínimas condições de participar mesmo sabendo do banquete que me esperava. Disse até logo, e carreguei pela última vez a bagagem encharcada da Alpha Crucis até o carro, e em instantes estava em casa.
Ao abrir a porta, novamente a sensação de que muito tempo se passara. Era muito bom estar ali de volta, vendo o lar com outros olhos depois de tudo que passei nestes nove dias da dura travessia. O banho foi algo dum prazer inexplicável, e já na cama, me rendi ao sono profundo, induzido pelo esgotamento severo, mas com o sentimento da mais plena felicidade e dever cumprido, por ter realizado meu maior sonho de montanhista: A travessia ALPHA CRUCIS.
Dever cumprido!
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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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